1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Janeiro de 2015:
Queridos amigos,
Trata-se de um romance invulgar, e não vale a pena dizer que envereda pelo drama clássico de dois seres que vivem uma nobre amizade e vão ser separados por uma guerra em que cada um vai estar do seu lado da barricada.
O autor condimenta com rigor o seu romance histórico que se inicia em Cabo Verde, de onde partirá um casal para a Guiné e o filho desse mesmo casal irá estudar em Lisboa onde se vive a crise académica de 1962. Eduardo, o guineense, partirá para Conacri, onde será assessor de Amílcar Cabral. Tomás, desencantado com o seu curso no Técnico, vai para a Marinha e conhecerá a guerra, sobretudo no Sul.
Um livro a não descurar, singular e bem urdido.
Um abraço do
Mário
Dois amigos, dois destinos, por José Alvarez (1)
Beja Santos
A literatura sobre a guerra da Guiné manifesta-se incansável. Nos últimos anos, o leque de subgéneros parece apertar-se, polariza-se no género memorial e no romance. Ao que parece, estes sexagenários e septuagenários que andaram aos tiros entre lalas e florestas herméticas sentem-se mais libertos, desatam a língua com o quanto basta de pudor, espanejam as recordações sem azedumes, põem de lado preconceitos, aproveitam as suas vivências e condimentam-na de histórias com maior ou menor percentagem de ficção.
“Dois Amigos, Dois Destinos”, por José Alvarez, Âncora Editora e DG Edições, 2014, é um romance singular, com boa tessitura, tem por detrás o estudo e o reconhecimento direto de ambientes, situações, trajetórias. O autor fez o serviço militar na Guiné, primeiro no comando numa Lancha de Fiscalização e mais tarde chefiando a secretaria do Comando da Defesa Marítima da Guiné, tendo igualmente sido Ajudante-de-Campo de dois Comodoros, isto entre 1971 e 1973. E praticou râguebi, modalidade desportiva que vai ter relevo na narrativa dos acontecimentos antes, durante e depois.
Meticuloso, apercebemo-nos de como travejou a sua escrita pelo que escreve nas notas:
“Comandando uma Lancha de Fiscalização Pequena, pude conhecer em detalhe a bacia hidrográfica dos rios Buba, Cacine e Cacheu, bem como as localidades de Bolama, Empada e Buba, onde encontrei gente conhecida, designadamente os fuzileiros do meu CFRON (Curso de Formação de Oficiais da Reserva Naval) e o comandante do aquartelamento de Buba, meu amigo e antigo colega do Liceu Camões, Filipe Moreira Lopes. Com ele, Buba voltou a conhecer tempos mais tranquilos, rompendo com um passado negro de ataques e emboscadas. Na secretaria do Comando Naval da Guiné tive acesso a documentos classificados sobre a atividade do inimigo, nomeadamente do seu líder Amílcar Cabral, sem dúvida uma das personagens incontornáveis da História de África, razão pela qual figura também como personagem deste romance. Procedimento idêntico utilizei em relação a Nino Vieira. Para descrever Bolama foi preciosa a ajuda do meu amigo Engenheiro Fernando Tabanez Ribeiro. Ao Engenheiro Luís Pires de Moura, velho amigo dos tempos de râguebi e meu companheiro da Guiné com experiência no mato como oficial do Destacamento de Fuzileiros Especiais 4, devo a ajuda que permitiu descrever a ação de um grupo de combate. Uma referência em especial a Agnelo Vieira de Andrade, atual proprietário de Tchada Lapa, na ilha do Fogo, Cabo Verde, que me abriu as portas da sua casa para que eu sentisse aquele ambiente, ajudando-me ainda na pesquisa do passado da ilha, facultando-me fotografias de São Filipe nos anos 30”.
É pois um romance que abraça várias gerações, tudo começa em Cabo Verde, nos anos 30. Vicente Filipe veio ao mundo na ilha do Fogo, corria o ano de 1918, fruto dos amores clandestinos de Barbosa e de uma crioula de São Filipe. Vicente enamora-se de Eduarda, filha de senhora fidalga em fase de profunda decadência. Toda esta tensão é entremeada por descrições de fomes e saques, festas em São Filipe com as cavalhadas e um ágape bem próprio da terra: “Na mesa destacavam-se garrafas de vinho tinto e branco de Chão das Caldeiras. Mulheres negras trouxeram balaios com fruta, melão, papaia e manga para a sobremesa. Na parte mais recata do pátio, havia uma mesa com queijos frescos de cabra, bolos de fécula de milho, doces de leite e bebidas espirituosas com destaque para as garrafas de grogue e ponche de Santo Antão”. Enquanto os amores de Vicente Filipe e Eduarda se confirmam, o pai Barbosa caminha para a ruína e Vicente é bem-sucedido na procura de emprego em Mindelo. Eduarda decide partir para se encontrar com Vicente e vão refazer a sua vida na Guiné. Desse amor entre um mulato bastardo e uma fidalga branca irá nascer na Guiné Eduardo, um dos dois amigos.
Estamos agora em Portugal, em 1962, um grupo de estudantes discute a guerra colonial, entre eles Tomás e Joana, e ficamos a saber que Eduardo vive na Casa dos Estudantes do Império, acabara de receber convite para integrar o PAIGC. A amizade entre Tomás e Eduardo faz-se no râguebi, jogam no Estádio Universitário o Técnico contra o CDUL. Para comemorar a vitória do Técnico vão ao Quebra Bilhas, o último retiro que resta em Lisboa, ai no Campo Grande. Estamos a caminhar para a crise universitária, vai haver uma manifestação na cantina. Eduardo que escuta as emissões da BBC ouviu a notícia da prisão de Rafael Barbosa, Mamadu Turé e Albino Sampa. Na manifestação de 24 de Março a polícia de choque atua, Eduardo e Joana enfiam-se pelos balneários do estádio e conseguem escapulir-se. Eduardo descobre que o seu colega, o guineense Salin Bari não aguentou o interrogatório da PIDE e prestou declarações, Eduardo chamou-lhe cobardolas. Joana e Eduardo vivem o seu romance e contrariedades não faltam, a começar pela animosidade da mãe de Joana. Eduardo e Joana encontram-se numa casa da Praia das Maçãs. Eduardo é levado pela PIDE, nada confessa e é levado para os calabouços do Aljube. É nesta detenção que Eduardo rememora a sua infância em Bolama. José, pai de Tomás, consegue a libertação de Eduardo. Este encontra-se com Joana que está grávida dele, e comunica-lhe que vai partir para lutar no PAIGC, é um encontro dilacerante, Joana prefere não lhe dizer que está grávida. Em Outubro, Eduardo envia uma carta a Joana: “Magoei-te profundamente ao recusar a tua companhia nesta nova fase da minha vida. Fi-lo, porém, com plena consciência das dificuldades que me esperam e sobretudo pelo muito que te quero. Ao recordar a minha infância na Guiné e aquilo que a minha mãe sofreu, como companheira de um marido revolucionário, decidi não repetir o mesmo contigo, ainda que soubesse que te perderia para sempre”. E após uma fuga aventurosa, Eduardo parte para Conacri e encontra-se com Amílcar Cabral, de quem se tornará assessor. A sua primeira missão será em Dakar, terá um acolhimento hostil dos cabo-verdianos, nada interessados numa hipotética unidade entre a Guiné e Cabo Verde. Encontra-se com Senghor, discutem política africana, apercebe-se das sérias reticências que o líder senegalês tem de Sékou Touré e os seus sonhos expansionistas. E em 1963 começa a guerra na Guiné e Joana começa a trabalhar em Lisboa.
(Continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 30 de Outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15304: Notas de leitura (771): “Tráfico no Rio Geba”, por Estevão Sousa, Edições Vieira da Silva, Dezembro de 2014 (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário