1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2015:
Queridos amigos,
Não hesito em dizer-vos que é um romance que merece a vossa atenção, uma trama muito bem urdida. Só lamento que lá bem perto do final o autor se tenha cansado e precipitado os acontecimentos deixando-os na orla da inverosimilhança, tudo, nesse final, tem acordes operáticos, isto quando vem numa larga sequência de episódios trabalhados na base de uma certa realidade histórica, condimentados, como é óbvio, pelo poderio da ficção onde se agitam esplendorosos afetos.
Um estreante a merecer o nosso aplauso.
Um abraço do
Mário
Dois amigos, dois destinos, por José Alvarez (2)
Beja Santos
“Dois amigos, dois destinos”, por José Alvarez, Âncora Editora e DG Edições, 2014, é uma obra de sabor autobiográfico, explora com engenho o drama clássico de uma nobre e fortíssima amizade que prometia desabar num confronto de contra guerrilheiro e guerrilheiro. O autor assenta o travejamento do seu romance histórico em várias gerações, tudo começa em Cabo Verde, depois um menino mestiço que medra na Guiné e vem estudar para Portugal e viverá pungentemente a sua adesão militante que o afastará dos amigos e da mulher amada, tudo se irá passar no contexto da crise académica de 1962. De um lado, Tomás, o amigo que estuda no Técnico e Joana, a universitária apaixonada por Eduardo, o militante do PAIGC que foge de Portugal e se torna assessor de Amílcar Cabral. Há mais protagonistas, a mãe de Joana, o pai de Tomás, que um dia mais tarde estreitarão afetos. Tomás está desencantado com os estudos, oferece-se para a Marinha, parte para a Guiné. Joana dá luz o fruto da sua relação com Eduardo, Eduardo Tomás.
Amílcar Cabral confia a Eduardo uma importante missão: “Terás de percorrer todo o cenário de guerra, a fim de elaborares um quadro com os efetivos das tropas portuguesas, respetivos locais de aquartelamento e, se possível, as suas deslocações sistemáticas. Essas informações ser-nos-ão preciosas para que a nossa direção militar atue segundo um plano global”. Eduardo começa por falhar a missão que é incumbido em chão Felupe, mas não desanima. Ainda em Lisboa, começa a dar-se um desenvolvimento afetivo entre Joana e Eduardo.
Estamos na Guiné, em 1969, Tomás foi colocado numa lancha de fiscalização pequena, a F 1151, aqui encontrou com imenso agrado o seu adversário direto da equipa de râguebi da Agronomia, Manuel Lima. Entretanto, Eduardo dá conta da sua missão, cruzou vezes sem conta os trilhos e as picadas da Guiné, atravessou todos os cursos de água em canoas. “Espiara dúzias de aquartelamentos da tropa portuguesa, perdidos na mata, recolhera informações dos movimentos militares, estudara o trânsito fluvial, conhecera as horas de patrulhamento das unidades da Marinha portuguesa”. Eduardo fizera-se homem, cedo se apercebeu da existência de tensões entre cabo-verdianos e guineenses. A lancha portuguesa está sempre em movimento, o autor descreve os contactos dos marinheiros com a tropa na quadrícula, em Empada. O encontro entre Nino Vieira e Eduardo ficou muito longe do cordial. A base do PAIGC fica em Sare Tuto, Eduardo é integrado no pelotão de Salin Bari, uma relação que vem desde a Casa dos Estudantes do Império, há para ali rancores velhos, Salin “rachara” na PIDE. Prepara-se um grande ataque a Buba, a lancha de fiscalização percorre o rio à procura de indícios dos guerrilheiros. O autor pincela a atmosfera de tensão que paira em Buba, sabe capturar o leitor. A professora primária, Lara, informa Nino sobre o que se passa em Buba, este esboça um plano que leva ao rapto de um alferes, destinado a diminuir o moral das tropas portuguesas. Enquanto isto se passa, os fuzileiros detetam uma cambança do IN na foz do rio Sahol, a jusante de Buba, apreendem muito material e uma canoa com o motor fora de bordo, mais um prisioneiro. Como nos dramas clássicos, a aproximação física de Eduardo e Tomás é cada vez maior. O plano para sequestrar o alferes português é bem-sucedido. Os fuzileiros interrogam Lar, ela é suspeita de passar informações, nisto explode o grande ataque a Buba. E os fuzileiros partem à procura do IN, vão a caminho de Sare Tuto, é a vez de Tomás ser capturado, aqui enfrenta Eduardo que prepara um plano para libertar o seu grande amigo. Os acontecimentos precipitam-se, a ação é descrita vertiginosamente, Tomás recupera no Comando de Defesa Marítima da Guiné onde conversa com Alpoim Calvão, conta-lhe a verdade dos acontecimentos. O bi-grupo comandado por Salin Bari fica numa total confusão após aquela estranhíssima fuga de Tomás. Mais furioso fica Nino Vieira, Eduardo é acusado de traição. Enquanto aguarda a sua transferência para prisão em Conacri, Amílcar Cabral vem visitá-lo, e veio a grande confissão: “Pode ter a certeza que nunca o trairia; por isso lhe conto a verdade, ainda que ela me seja fatal. Esse tenente português era o meu melhor amigo. A ele devo a libertação da prisão do Aljube e a fuga do país. É como se se tratasse de um irmão. Quando dei conta que o tinha prisioneiro no grupo de combate, encontrei-me perante o dramático dilema: entregá-lo e não trair a causa ou libertá-lo traindo. Pesei as duas situações e a amizade foi o que mais pesou”.
Chegou a hora da Operação Mar Verde, assim quer o destino que Tomás vá até La Montagne, em Conacri, onde Eduardo se encontra numa situação deplorável e no ponto mais baixo do desalento. Os amigos reencontram-se, Eduardo relembra a Tomás que não tem para onde ir, em Portugal será sempre um terrorista e ali é um prisioneiro de guerra. Fala-lhe no filho que está em Lisboa, Eduardo é transportado, chegara a hora da retirada, mas antes de chegarem à embarcação há uma flagelação em que Eduardo fica moribundo e depois morre. O epílogo da obra decorre no estado universitário, Eduardo Tomás é um vitorioso e há para li dois casais felizes, Tomás e Joana, José e Maria João. Final feliz.
Estamos diante de um romance histórico raro, há muita investigação, preocupação no desenho dos retratos e dos ambientes. Mas fica-se com um sabor de deceção na medida em que o autor a certa altura se cansou do que estava a escrever, começou a acelerar e a fuga de Tomás roça o inverosímil, faltou aqui o expediente alquímico que podia ter transformado este romance numa obra inexpugnável, vencido que fora o desafio de encontrar uma arquitetura que superasse o convencional drama clássico do confronto entre dois grandes amigos. A despeito desta fragilidade, estamos perante um livro que é referencial: pela pesquisa de laboratório, pela força dos sentimentos, pelo pendor luminoso da sua mensagem. Por tudo isso, “Dois amigos, dois destinos” é obra coroada da literatura luso-guineense, um passo seguro para o melhor conhecimento de povos irmãos.
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Nota do editor
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Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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