Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Novembro de 2015:
Queridos amigos,
Trata-se de uma edição recente e não hesito em recomendar
a sua leitura. Enfrentando o tabu da unidade Guiné-Cabo Verde, este mestre
em História aparece bem preparado e com a bibliografia em dia. Lamento que
Pedro Pires continue monolítico e ponha em Momo Turé e alguns outros
militantes de pouco relevo a conceção e a execução de um complô que levou ao
assassínio de Cabral e à prisão relâmpago de centenas de cabo-verdianos em
Conacri, é uma explicação tão absurda, um bom anestésico para usar até à
independência e no qual só os fanáticos da unidade Guiné-Cabo Verde têm
coragem em propalar. É um livro, como iremos ver, em que a história dos dois
povos e a sua presença na luta são medidos passo a passo, nos dois níveis. É
uma vertente aliciante que poucos investigadores querem explorar, com os
dados possíveis, já que há muitos silêncios que provavelmente nunca serão
decifrados.
Um abraço do
Mário
O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano (1)
Beja Santos
Eis aqui uma boa oportunidade para ver as diferenças entre o PAIGC da luta armada na Guiné e o PAIGC clandestino em Cabo Verde, sonhando com desembarques que nunca aconteceram e até mesmo numa guerrilha do tipo cubano. “O PAIGC perante o dilema Cabo-Verdiano (1959-1974)”, por José Augusto Pereira, Campo da Comunicação, 2015, é uma dissertação que o autor apresentou para obter o grau de Mestre em História dos séculos XIX e XX. Tem prefácio do Comandante Pedro Pires. Trata-se de uma investigação rigorosa e muito cuidada, o leitor não irá encontrar aqui nada de surpreendente, mas é um trabalho bem elaborado onde o investigador contextualiza as economias e as estruturas sociais da Guiné e de Cabo Verde, historia a vida do PAIGC e aprofunda a questão da unidade entre a Guiné e Cabo Verde e releva os múltiplos obstáculos que foram dificultando o sucesso da consigna, bem como os inúmeros obstáculos que se puseram à propaganda do PAIGC nas ilhas de Cabo Verde. Temos aqui trabalho sério, que merece recensões aprofundadas.
O Comandante Pedro Pires perdeu mais uma oportunidade de fugir aos jargões da propaganda e de nos trazer, com propriedade e de acordo com a experiência que teve na luta armada, uma reflexão séria sobre os entraves de viu na dita unidade Guiné-Cabo Verde. Preferiu passar em revista alguns dos episódios bem conhecidos do público sobre as lutas de libertação nacional, tudo com emoção e carga apologética. Em certos momentos, cede à demagogia dizendo enormidades como a de que uma das razões maiores dos assaltos às bases do PAIGC no interior da Guiné tinha a ver com a alta qualidade das mercadorias comerciadas pelos Armazéns do Povo… Estamos mesmo a ver os Estados-Maiores a desenhar operações conhecendo a localização deste e daquele Armazém do Povo, dando instruções para apanhar à mão bens não disponíveis nas lojas de Bissau e víveres desinteressantes para a Manutenção Militar. Igualmente quando se refere ao assassinado de Amílcar Cabral, o Comandante Pedro Pires socorre-se de uma lengalenga de intrigas, deturpações e maquinações montadas pelos colonialistas e um punhado de traidores. Acontece que o Comandante prefacia um livro onde há o cuidado de registar os enormes diferendos entre guineenses e cabo-verdianos no início dos anos 1960 e que tinham a ver com estratégias de uma Guiné para guineenses e um Cabo Verde para cabo-verdianos. Voltamos ao magro refrão de Momo Turé e outros libertados em 1969, aos corruptos da Marinha do PAIGC e às manobras deletérias da PIDE, isto anos depois de Aristides Pereira ter dito ao jornalista José Vicente Lopes que havia gente graúda da Guiné, em lugares de topo, que sabia da conjura, caso de Osvaldo Vieira e até de Nino Vieira. É lamentável.
Falando de Cabo Verde, reconheça-se que a sua argumentação é ajustada, ele próprio foi preparado em Cuba para esse tipo de operações, não havendo condições estes militantes cabo-verdianos foram desviados para a guerrilha guineense onde tiveram desempenho da maior importância, caso de Silvino da Luz, Agnelo Dantes e Osvaldo Lopes da Silva, este último foi o estratego do fogo de artilharia sobre Guileje. Ele diz que o PAIGC incluiu na sua estratégia de luta contra o colonialismo e pela independência nacional a probabilidade do desenvolvimento da luta armada em Cabo Verde. É verdade, são situações bem documentadas.
Estamos agora entrados no trabalho de José Augusto Pereira. Dá-nos um quadro do funcionamento das duas economias, das migrações cabo-verdianas, das respetivas estruturas sociais dos dois territórios. Refere igualmente a presença portuguesa e cabo-verdiana nos “Rios da Guiné”, presença diluída, é certo, mas com marcas. Os cabo-verdianos são mercadores, velejadores, traficantes de escravos, como mais tarde serão os escolhidos para representar o poder português depois das guerras de pacificação. Entre os séculos XV e XIX, os cabo-verdianos eram negreiros, envolveram-se na colocação de mão-de-obra escrava em Cuba e no Brasil, e goste-se ou não, aos olhos dos autóctones eles eram os representantes do poder colonial. A animadversão entre os dois povos tem esta base estrutural. E há mais, como o autor sublinha: os cabo-verdianos combatiam os africanos, a derrota infringida em Bolor pelos Felupes às forças portuguesas foi concretamente a um contingente de tropas cabo-verdianas. Os cabo-verdianos estiveram igualmente ligados às explorações agrícolas, a partir de meados do século XIX. Eram os cabo-verdianos e alguns africanos cristianizados que estavam à frente das pontas, feitorias agro-comerciais que se vulgarizaram nas margens do rio grande. Tudo se separa e algo aproxima a Guiné de Cabo Verde. Veremos adiante que o lema da unidade foi excelente para animar a luta, encontrar quadros preparados para as relações externas e para a delicadeza de certas operações militares. Mas as desconfianças e os ressentimentos teriam um dia de vir ao de cima. Como vieram.
O autor, bem municiado pela bibliografia mais adequada, fala das origens do PAIGC e lembra que hoje um ramo da historiografia contesta a criação do PAI em 19 de Setembro de 1956. Um dos argumentos mais exibidos é que os militantes africanos que estiveram na génese de organizações como o Movimento de Libertação Nacional das Colónias Portuguesas e do Movimento Anticolonialista, entre os quais se encontrava o próprio Amílcar Cabral, desconheciam a alegada fundação do PAI em 1956. Dado seguro é que Cabral participa na reunião de 19 de Setembro de 1959, aí apareceu uma estratégia e aí se definiu quem partia para a clandestinidade e quem lutaria no interior do território, desencadeando a fase da subversão. Embora nada haja de novo na exposição, é extremamente útil recordar a atmosfera de Conacri, onde inicialmente o PAIGC encontrou hostilidade e a posição do Senegal, onde fervilhavam movimentos nacionalistas que pugnavam pela independência da Guiné e Cabo Verde. Só o talento de Cabral é que permitiu superar as animosidades e relegar para a sombra os concorrentes que jamais se souberam impor no campo das armas e na organização da luta. Dá-se importância ao que aconteceu no Congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, e o autor explana detalhadamente a ação do PAIGC na frente diplomática, como é de todos sabido quem dirigia os contactos era Cabral embora tivesse vários apoios como Onésimo Silveira na Escandinávia. Até ao seu assassinato, e particularmente nos anos de 1971 e 1972, Cabral apareceu sempre como a voz autorizada e o azimute da política externa.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 6 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17027: Notas de leitura (927): Fundação João XXIII - “Férias solidárias”: o espírito de cuidado com a Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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