terça-feira, 20 de novembro de 2018

Guiné 61/74 – P19212: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (41): O Cama 16 que afinal não estava internado e uma G3 desaparecida no Cacheu

1. Em mensagem do dia 18 de Novembro de 2018, o nosso camarada José Eduardo Oliveira (JERO) (ex-Fur Mil Enf.º da CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos duas histórias, uma passada no HMP e outra já na Guiné, relacionadas com estranhos desaparecimentos.


O CAMA 16

A caminho dos 90 anos de idade – já fiz 78 – continuam-me a vir à memória os meus tempos da vida militar. Foram 4 anos que “nunca mais me largam”…
Confesso que estas tristes e recentes histórias de Tancos e Chamusca me “tocaram” desagradavelmente mas não é sobre isso que vou “falar” hoje.

Em termos militares fiz a minha recruta na EPC (Escola Prática de Cavalaria), de Santarém, em Agosto e Setembro de 1962 e nos 2 anos seguintes vi a “Estrela” quase todos os dias, pois era nessa zona de Lisboa que se situava o Hospital Militar Principal.

Nos meus tempos no HMP estive em Dermatologia cerca de um ano (entre Junho de 63 e Maio de 64) como Chefe de Enfermaria. Era caso singular no Hospital pois era o único militar fora do “quadro” (era “miliciano”), que desempenhava esse tipo de funções. Tinha ficado em 1.º lugar no meu curso do CSM e “calhou-me a sorte” dessas funções de chefia para as quais não estava minimente preparado.

Passei meia dúzia de dias junto do militar do “quadro” que ia substituir (por ter sido mobilizado para a guerra do Ultramar) e fui assinando “papéis” comprovativos da “carga hospitalar”, de que iria ser responsável nos tempos mais próximos.
A Enfermaria tinha 70 camas, o que correspondia em termos de “carga” a 70 colchões, 140 lençóis, travesseiros, almofadas, mesas de cabeceira, montes de seringas, instrumentos diversos para tratamentos e muito mais “coisas” que me dispenso de descrever para não fatigar o leitor.

Havia ainda uma sala de tratamentos e outra para as consultas de dermatologia, onde se sentavam o médico-chefe e um médico-estagiário para as consultas externas dos civis ligados a instituições militares (Manutenção Militar, Oficinas Gerais de Fardamento, etc). Era então director do HMP o Dr. Ricardo Horta Júnior.

Além destas responsabilidades tinha comigo uma equipa de cabos milicianos e alguns soldados que era suposto ajudarem-me no meu desempenho. Em poucos dias percebi que os meus camaradas milicianos era uns “sornas”, que entravam sempre tarde porque o ”chefe” era “miliciano” e não os iria castigar.
Entrava às 8 da manhã – estava “desarranchado” e dormia (por minha conta) num quarto de uma casa particular na zona de Campo de Ourique – e não tinha horas de saída…

No final do primeiro mês de “chefe” comecei a dar por falta de “coisas” que estavam descritas na “carga da enfermaria”, mas que só existiam no papel. Como é que eu me ia desenrascar!?
Depois de algumas noites mal dormidas lembrei-me de consultar o Sargento Enfermeiro Sineiro, que era meu conterrâneo. Já o tinha visto no Hospital e fui ter com ele e apresentei-me, dizendo quem era e a que família de Alcobaça pertencia.
Não podia ter tido melhor sorte.
Disse-me como me desenrascar pois já tinha muitos anos de vida hospitalar.
Se tivesse na “carga” 6 seringas e só tivesse uma em condições “partia” essa em 6 bocados e fazia um ”auto de aniquilamento”, descrevendo a “existência” de seis “avariadas”, e pedindo o seu abatimento na carga. Depois de deferido o seu “aniquilamento” tinha apenas que fazer a requisição de 6 novas seringas.
Desde que houvesse algum “bocado” do material em falta era só fazer o auto para apresentar os “bocados” do total do material a substituir.

Assim fiz e resultou inteiramente.
Respirei fundo e guardei para mim estes novos “saberes”. Passados alguns meses estava tudo em ordem no que respeita a material.
Mas surpresas das surpresas faltava-me um doente: o “cama 16”.
Fiquei para morrer. Como é que isso podia acontecer?
O encarregado anterior da Enfermaria já estava no Ultramar (julgo que em Angola) e ainda não havia telemóveis!!!
Encontrei o registo do “faltoso” e soube onde era a sua morada em Lisboa. Com diversas ajudas consegui contactá-lo através de telefone fixo e fui ao seu encontro. Ao vivo e a cores…

Era um rapaz de “famílias bem” que tinha “comprado” a sua estadia em casa ao anterior responsável da Dermatologia.
Ofereceu-me umas “massas” para manter o seu anterior estatuto. Mas não teve sorte nenhuma.
No dia seguinte queria-o na Enfermaria junto da sua “cama 16”. E assim aconteceu. Finalmente “carga completa”.

O tempo passou e já estava um mestre em gestão hospitalar quando fui mobilizado para a guerra. Tinha 2 anos de vida militar e pensava que regressaria a Alcobaça dentro em breve, como eu julgava que merecia.
Puro engano.
Fiz as malas sim mas foi para seguir para o RI 16 (Regimento de Infantaria 16), de Évora e em 8 de Maio de 1964 embarcava no “Uíge” a caminho da Guiné como Furriel Enfermeiro Miliciano da CCAÇ 675.
E mal sabia eu que os meus conhecimentos em fazer “autos de aniquilamento” iriam ajudar muita gente. Fora e dentro da minha Companhia.


UMA G3 DESAPARECIDA NO CACHEU

Mas para terminar o tema só vou contar mais uma história que, julgo eu, nunca foi contada e terá sido esquecida pelos seus principais intervenientes há muito tempo.
Não garanto todos os pormenores porque estão passados muitos anos mas penso que o que descrevo seguidamente estará muito próximo dessa realidade de há mais de meio século!
Quando faltava apenas um mês para terminar a nossa comissão e regressarmos a casa um soldado do tipo “Chico esperto” pediu emprestado a um nativo uma canoa e meteu-se no Rio Cacheu para caçar um crocodilo, cuja pele serviria para fazer uma mala e um par de sapatos para depois do regresso oferecer à sua namorada.

Está claro que se fez acompanhar da sua espingarda “G3”, porque os crocodilos não se apanham à mão. Deu umas remadas e nem ao meio do rio chegou.
A canoa virou-se e quando o “caçador de jacarés” veio ao de cima a sua “G3” estava desaparecida. Nadou para terra e algumas horas depois confidenciou aos camaradas o que lhe tinha acontecido.

Perder a arma de combate que lhe estava distribuída queria dizer que era candidato a algum tempo de prisão, que lhe faria perder o regresso a casa que estava tão próximo.
Por sorte o Comandante de Companhia estava em Bissau e o seu 1.º Substituto era o Alferes Mendonça, que era miliciano. Fez-se uma reunião nessa noite no “escritório” do 1.º Sargento Santos para tentar resolver a “bronca”.

Depois de muitas e variadas opiniões resolveu-se “inventar” um ataque do inimigo às 3 da manhã com granadas de morteiro, que iriam “cair” numa arrecadação que iria arder violentamente.
Quando o incêndio estivesse extinto tudo que nessa altura “faltava” na Companhia (colchões, lençóis, pneus e uma espingarda G3) teria sido consumido pelo fogo. O Furriel Enf Oliveira faria um auto de aniquilamento no dia seguinte para ser enviado para o Batalhão em Farim. E assim se fez.

Respirámos todos de alívio e um mês depois deixámos Binta e, via Farim com passagem pelo Oio, viemos para Bissau para embarcar no “Uíge” a caminho de casa. Já lá vão mais de 50 anos.

O crocodilo do Cacheu há muito que deve ter netos ou mesmo bisnetos!

José Eduardo Reis de Oliveira
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 – P10563: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (40): O avô da Matilde, um vizinho especial

4 comentários:

Luís Graça disse...

Jero, já estava com saudades tuas e das tuas histórias. Quem sabe, sabe, e nunca esquece. E tu és um dos nossos contistas de primeira água...

Devia ter lido estas duas histórias antes de acabar a minha comissão na Guiné... Éramos de rendição individual, os graduados da CCAÇ 12... Quando chegou o meu "periquito", em março de 1971, fui fazer o meu espólio... Bolas, faltava um colchão!, diz-me o quarteleiro... Tinhas dois colchões à minha responsabildiade... Mas, como ? Dei voltas à cabeça, até que compreendi que uma gajo na tropa não podia ser nem solidáreio nem porreiro,. ou seja, bom, ou seja, "anjinho"...

Era frequente a malta das várias subunidades que passava, em trânsitio, por Bambadinca, em geral a caminho de Bissau (ou de regresso de Bissau), dormir uma ou mais noites nas nossas instalações hoteleiras... Requisitava-se um colchão, quando não havia vaga... Fazia isso a csmaradas que conhecia...

Alguém ficou com dois colchões em Bambadinca e eu, depois de 22 meses de sangue, suor e lágrimas, lá tive aicma por cima que pagar um colchão à tropa... Ficou-me atravessada, essa, e nunca soube quem me tramou... Simular um ataque ao quartel não dava, porque nunca mais houve nenhum ataque ao quartek desde que a CCAÇ 12 (a companhia dos "pretos"...) foi para Bambadinca...

José Botelho Colaço disse...

Gero é por essas e por outras parecidas que os sargentos tipo Sineiro mandam mais na tropa do que os oficiais. Um abraço.

Valdemar Silva disse...

Muito interessante, calhando 'O Cama 16' era desarranchado.
Nós, na CART 11, tínhamos material a mais, principalmente granadas de bazuca e de morteiro, não fosse perder-se alguma nas operações, a rapaziada sempre ia gamando uma ou outra pelos aquartelamentos de passagem. Em Piche, Cabuca e Canquelifá queixaram-se disso.
Falava-se que num ataque a Madina Mandiga a nossa tropa respondeu com grande poder de fogo ao IN, mas verificou-se, depois, que não houve ataque nenhum e não passou de uma forma para resolver um grave problema de desaparecimento de munições.

Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

Rectificação, nossa tropa de Madina Mandiga era que lá estava aquartelada e não a da CART 11.

Valdemar Queiroz