terça-feira, 27 de novembro de 2018

Guiné 61/74 - P19237: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulo 71: A última carta (, "de amor, ridícula"), com data de 9 de junho de 1974, escrita sem saber que a sua mâe já tinha morrido no dia 1... Foi também a única, em centenas, que nunca chegaria ao destino...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > O Dino, no rio Fulacunda, junto ao "porto fluvial"

Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita
, "Em Nome da Pátria"), do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à direita] (*):

José Claudino da Silva, chapeiro em Amarante
Quase a chegar ao fim da sua viagem pelas memórias de Fulacunda, socorrendo-se do seu "roteiro literário-sentimental", o autor evoca aqui, no capº 71,  "a última carta" que escreveu à sua Amélia, namorada e futura esposa, com data de 9 de junho de 1974, sem saber que a sua mãe tinha morrido no dia 1...

Passa por alto ou por cima de acontecimentos (coletivos) como o 25 de Abril e a retração do dispositivo das NT ou os primeiros contactos "pacíficos" com o PAIGC em Fulacunda.

Recorde-se, por outro lado  que o autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. 

O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. 


2. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Cap 71º


71º Capítulo > A ÚLTIMA CARTA

Estou muito perto de terminar esta partilha confidencial de emoções que guardei, sem nunca ter intenção de divulgar. Entre o drama e a comédia, tentei dar-vos uma visão dum soldado que escreveu apenas por amor, num tempo de guerra.

A partir de Março de 74, e talvez por influência da mãe e do irmão, a Amélia deixou de guardar o correio que lhe enviava. Embora eu continuasse a escrever, já não o fazia tão assiduamente. No meu mapa, não está marcado que tenha escrito, por exemplo, no dia 25 de Abril de 1974. Sei que festejei esse acontecimento em Fulacunda mas não me lembro como foi.

Ora, como é lógico, e partindo do princípio que me norteou, não quero citar nada que não possa provar. Contudo, mesmo assim, ainda consegui reaver alguma correspondência sem grande relevância,  excepto a última que escrevi.

Esta última carta tem 12 páginas que perfazem um total aproximado de 2700 palavras. Como digo, a última que escrevi na Guiné. Sendo a última, vou transcrever algumas frases, aleatoriamente:


“Fulacunda Domingo 9 de Junho de 1974.

Desejo que esta carta te encontre de boa saúde, eu não me sinto muito bem.
Ficarei bem se amanhã conseguir falar-te.
Quando a gente está na cama doente é que pensa em mais coisas.
Sofri mais nestes 24 meses na Guiné que no resto da minha vida”.


Com 2700 palavras fazem-se muitas frases, mas nesta carta quase adivinhando o que poucas horas depois iria suceder, estão também alguns desabafos e um estranho balanço amoroso.

Confio no vosso sentido de humor ao lerem o que vos ofereço e lembro-vos que as cartas de amor são sempre ridículas.

“Quando vim para aqui não queria ocultar-te nada no entanto tive de ocultar-te muitas coisas. Ataques que sofríamos e não queria que ficasses em cuidado porque na verdade passamos muitos perigos. Estou até a recordar-me de uma vez em que fui para o mato numa operação para assaltarmos um acampamento de terroristas mas que só por felicidade eles não estavam lá. Mas bem isso não te interessa.

Se tu tens razões para pensar que eu tenho outra eu quero que sejas sincera e me digas se eu tenho ou não razões para pensar que tens outro.

Primeiro: Pouco depois de eu vir para aqui num aerograma dizem-me que tens outro namorado.

Segundo: Numa visita que a minha avó fez a tua casa vê um rapaz a sair de lá.

Terceiro: Quando fui de férias e nos chateamos, logo que te deixei, ficaste pouco aborrecida o que demonstra pouco interesse.


Desculpem, mas estou confuso, não tenho o quarto motivo. Não interessa! Adiante!

Quinto: Nunca atendes-te um pedido meu com a solicitude que devias.

Sexto: As cartas que me escrevias e muito mais os aéros, chegavam a ter três semanas de atraso e mais, sem que te preocupasses com isso.

Sétimo: Em 24 meses recebi cinco fotografias e isto porque te supliquei quase sempre que as mandasses.

Oitavo: Tu não respondias em condições às minhas cartas mostrando dessa maneira um total desinteresse por aquilo que te mandava.

Ainda teria muito mais coisas para te dizer…”


Francamente!... A guerra colonial, comparada com a minha guerra amorosa, ficou nitidamente a perder.

Atenção! Na quinta página ainda afirmo que esta ingrata me vai pagar com juros. Pois, mas na sexta página, depois de dizer que ela até havia de morrer, digo:

“Tens beijos de fogo que me acendem o coração.

Vou dormir e nem quero sonhar contigo.

Já dormi e fui ver se a chamada que marquei para falar contigo pode ser feita. Por acaso pode por isso amanhã às 14H30, quatro horas e meia da tarde aí na Metrópole vou tentar mais uma vez falar-te”.


Esta última carta devia ser a única a não chegar ao destino. Nas páginas 9 e 10 escrevi a história da Bela Adormecida. Na página 11 tem um poema da minha autoria, para ser cantado na música de Gianni Morandi “Non son degno di te”[1964] [Vd. vídeo no You Tube, disponível aqui, com legendas em português do Brasil]

Ultimo parágrafo:

“Havias de ter os lábios gelados quando beijares outro que não fosse eu, havias até de te transformar numa estátua de gelo”.

“Dino”


Acham que foram as bombas, os tiros, em suma, a guerra… que me fizeram sofrer mais?

(Continua)

3. Nota detalhada dobre o autor e sinopse dos postes anteriores [vd. aqui]
________________

5 comentários:

Luís Graça disse...


Arquivo Pessoa
Obra AbertaOBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO

Álvaro de Campos

Todas as cartas de amor são

Todas as cartas de amor são
Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas).

21-10-1935

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). - 84.
1ª publ. in Acção, nº41. Lisboa: 6-3-1937.

http://arquivopessoa.net/textos/2492

Luís Graça disse...

Dino, e logo a seguir casaste com a Amélia e foste feliz para sempre!... É verdade ?... Deliciosa, esta "carta de amor, ridícula"... Eu acho que todos (ou quase todos) os "namoros" np tempo da guuerra da Guiné aguentaram, com alatas e baixos, crises de desespero e ciúme... "Elas" aguentavam muito melhor do que "eles"... E depois o que fazia uma mukherm, no Norte, se rompesse com o namorado depois de 2 anos de guerra ? Muitas ficavam para "tias"...

Luís Graça disse...

"Elas aguentavam muito mais do que eles"... Deram provas de grande resiliência, de coragem, de abnegação, de amor... Não apenas nessa altura, mas durante séculos, desde que os portugueses descobriram que o mar não era uma fronteira... "Ele" ia para as "Índias", só voltava, quando voltava, dois anos depois... "Ela" ficava cá estoicamente, fazendo o papel de "pai e mãe"... No final dos anos 50, as coisas mudam e de que maneira!... O êxodo rural e a guerra dão às muçlheres às protagonismo às mullheres, que ficam na retaguarda a gerir o "patacão da guerra" e as "remessas do emigrante", a ocupar os lugares deixados pelos homens (nas fábricas, nas esvritórios, na administração pública, nos cmapos...). Escolarizam-se, ganham liberdade económica, fogem ao controlo social da família e da comunidade...

É preciso perceber isso, para entender hoje como são as relações entre homens e mukheres, em Portugal...

Valdemar Silva disse...

Luís, tudo isso é verdade.
Muitas localidades havia que ficavam, praticamente, com meia dúzia de homens, ou por eles trabalharem longe, ou emigração, ou na tropa, e eram as mulheres a mãe/pai para tudo.
Ainda agora, existem localidades em que tudo é no feminino: a casa das Ferreiras, a bouça das Bernardas, a taberna das do Pinto, os netos da Queiroza.
Tempos do caraças.
Ab.
Valdemar Queiroz

Luís Graça disse...

Ficamos a saber coisas interessantes sobre a situação na Guiné em 1974, no fim da guerra: po exemplo, o correio (tanto as cartas como sobretudo os aerogramas) chegava atrasado ao seu destino, no mato, "três semanas ou mais"...

O Dino diz que sofreu mais em 24 meses de Guiné do que no resto da sua vida de jovem adulto, nascido em 195o (sem pai nem mãe, é verdade). E isto, apesar do Dino não ter sido um operacional... Teve um ou outra saída para o mato...

AS sete razões de "divórcio" que o Dino apresenta à sua futura mulher são ditadas pela "síndrome do mato"... E acabam com um terrível anátema:

“Havias de ter os lábios gelados quando beijares outro que não fosse eu, havias até de te transformar numa estátua de gelo”... Nâo há dúvida que o ciúme é uma coisa patológica... Tão patológica como a paixão: "“Tens beijos de fogo que me acendem o coração.Vou dormir e nem quero sonhar contigo"...

Ó Dino, felizmente que a Amélia não chegou a receber esta tua carta, tão cruel !... Por outro lado, tiro-te o quico, és o primeiro camarada, macho, a abrir o coração, desta maneira, tão franca quanto despudorada, e tão ingénua e tão bonita ao mesmo tempo...

Vou ter saudades de Fulacunda e de um certo "tuga" que por lá passou...