Guiné >Cacheu > CCAÇ 3 > Cacheu > Barro (1968) > Os "jagudis" montando uma emboscada
Foto: © A. Marques Lopes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1690
1. Em mensagem do dia 3 de Dezembro de 2018, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos este relato de um combate algures na Guiné, ocorrido sob o seu comando, ou não. Verdade para nós antigos combatentes, ficção para os mais novos que tiveram a sorte de crescer sem a ameaça de terem de participar na guerra.
UM COMBATE ALGURES NA GUINÉ
Francisco Baptista
O pelotão seguia pela estrada de terra batida, como já acontecera tantas vezes, para ir fazer segurança a uma coluna de reabastecimento. Nos últimos dias era frequente verem pegadas estranhas, possivelmente de guerrilheiros que atravessavam a estrada. Enfim teriam reactivado um carreiro na zona da companhia, que podia trazer complicações. Faziam sentir a sua existência em ataques frequentes de armas pesadas ao quartel mas nunca tinha havido um confronto directo, com armas ligeiras no mato, entre uns e outros.
O alferes seguia à frente dos militares brancos e à frente dele seguiam quatro soldados milícias africanos. De repente dá-se conta que o soldado milícia da frente recua e lança um olhar aterrorizado para trás. De imediato dispara uma rajada de G3 para a mata em frente e os soldados seguem-lhe o exemplo. Da mata respondem as costureirinhas e outras armas e durante alguns minutos o silêncio da floresta é substituído pela barulheira infernal da batalha. Atrás do alferes está um cabo armado com o lança-granadas aflito porque não consegue fazer fogo com a arma. Está aflito e medroso porque não consegue reagir para se defender e defender o grupo e manifesta isso repetidamente ao comandante que só lhe diz que se resguarde e que tenha calma. Com receio de que as munições se esgotassem, pela rapidez com que os homens disparavam manda moderar a intensidade do fogo e nesse entretanto olha para o lado e vê o soldado milícia mais próximo com o rosto pousado sobre a terra. Sem ter tempo para se condoer, a hora era de acção, somente pensou, este já "lerpou", sem pensar sequer se aquela bala lhe poderia ser destinada. O soldado africano da frente, o que tinha dado o alarme, de cara assustada, morreu também. Sente uma adrenalina furiosa que o empurra para a vingança, para um ajuste de contas com o inimigo pela perda desses dois homens.
Os mortos do nosso grupo, seja qual for a sua origem, cor ou religião deixam-nos a alma marcada com cicatrizes negras que jamais desaparecem.
O tiroteio terminou, a calma voltou à mata e à bolanha próxima, os macacos-cães calam-se e as árvores da floresta choram silenciosamente a perda das vidas de dois filhos da Guiné. Entre os combatentes do outro lado não soubemos se houve perdas Acabou por não se saber se os guerrilheiros se preparavam para aguardar a coluna e atacá-la, pôr minas na estrada, emboscar o pelotão ou simplesmente iam passar, hipótese mais plausível.
Porque a nossa missão ainda não terminara, fazer segurança à coluna auto, que vinha a caminho e porque a perseguição ao inimigo podia acarretar outros perigos e mortes, o alferes procura refrear o seu instinto guerreiro que não conhecia e o surpreende.
Foi neste troço de estrada retratado na foto, um pouco mais à frente ou um pouco mais atrás, que aconteceu este combate entre o meu pelotão e os guerrilheiros do PAIGC. Ficava situado na estrada entre Buba e Nhala, a poucos quilómetros de Buba, antes da Bolanha dos Passarinhos.
Foto: © Francisco Baptista
Contra os desmentidos do Estado Novo e posteriormente dalguma opinião pública, que a quis negar, porque não quis compreender o abandono desses territórios, a guerra existiu, com muitos feridos e mortos, na Guiné com muito barulho de armas ligeiras, pesadas com bombas potentes da artilharia dum lado e do outro e bombas de avião.
Nos dias seguintes o capitão diz ao alferes para nomear alguns militares do pelotão para serem louvados. Todos os homens reagiram com coragem e disciplina a essa situação de combate imprevista. O alferes que o antecedeu e que morreu num acidente ao pisar uma mina anti-pessoal , alguns meses depois de estarem na Guiné, sendo um jovem de acção e motivado para o combate, tanto em Portugal como na Guiné, tinha-lhes dado uma formação agressiva e guerreira.
Todos mereceriam um louvor mas como só alguns o podiam obter resolve nomear seis que ao longo dos meses, sob o seu comando lhe pareceram os melhores. Não indica o cabo cujo lança granadas se encravou que se irá queixar disso quando ele já nada pode fazer. Um louvor dar-lhe-ia muito jeito, já que pensava ir para a GNR ou para a PSP depois da tropa. Mais uma mágoa menor que não esquece, a juntar às outras.
É uma estória de guerra real ou fictícia porque os ex-combatentes só falam destas memórias em dias de convívio com outros camaradas ou em dias cinzentos com algum desconhecido ou um barman e podem descrevê-las com realismo ou fantasiar porque a sociedade civil nunca lhes deu muito crédito, como se fossem caçadores ou pescadores mentirosos.
Terá acontecido na área do batalhão ou da outra companhia independente onde estive ou algum camarada ma contou.
São factos que aconteciam por toda essa terra de água e florestas, martirizada pela guerra, de que ninguém se orgulhava e dos quais os protagonistas têm dificuldade em falar.
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Nota do editor
Último poste da série de 29 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19145: Blogoterapia (289): Aquele toque a finados é uma coisa que me arrepia... (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)
12 comentários:
Francisco Baptista, o meu abraço.
Adorei este "conto". Este sim, um conto de Natal, dos muitos que foram vividos por todos os que estiveram em Angola, Guiné ou Moçambique sem esquecer as distâncias dos que passaram por Timor, Macau ou Cabo Verde.
BS
Francisco Baptista:
Esta pode ser uma história verdadeira, porque não?
Pode haver erros da idade, já lá vão 50 anos, a memória não é de chip de computador.
Eu só venho aqui comentar, porque nessa época, todo o ano de 1968, de Abril a Dezembro, estive em São Domingos, no bcaç1933, e Barro era uma guarnição comandada pelo nosso batalhão. A CCAÇ3 era uma companhia também dependente do comando do batalhão, e tinha 2 Pelotões, - dos Jagudis - que estavam em Barro, os outros tinha um em SD e outro em Ingoré ou Susana, já não sei ao certo.
Conheço e identifico essas matas desta bela foto, real, penso eu. Nunca fui a Barro, mas andei perdido nos rios em deslocações de abastecimento a Susana, e estas minhas reais histórias, são de arrepiar agora, porque andei metido no barulho e era um alferes miliciano do SAM - Conselho Administrativo - que por vingança de um oficial superior me mandava 'comandar' estas deslocações pelos rios e meio da selva, para ir parar ao cu de judas, numa aldeia perdida de felupes, com arcos e flexas. Hoje sei que estive em perigo e não havia ninguém preparado para uma eventualidade que felizmente não aconteceu.
Ficam as imagens destas 'tretas' todas para quem quiser acreditar.
Fomos socorridos por um T6 e um Heli, ao fim de 2 dias perdidos do mundo, em locais onde nem Cristo passou.
Não sei se algumas vez nos encontramos, mas só em São Domingos, ou no Cacheu, ou Susana ou Varela.
Vibro muito com este ano de 2018, em que dia após dia me lembro de passagens em 1968, naquela terra junto à fronteira do Senegal, SD, isolada de tudo.
Ab,
Virgilio Teixeira
EX Alf Mil do SAM / BCAÇ1933/ Nova Lamego, São Domingos, 1967/69.
Caro Virgílio Teixeira, na qualidade de editor do poste venho esclarecer que a foto é apenas uma ilustração, escolhida por mim, que não tem nada a ver com a narrativa.
Por outro lado, o Francisco Baptista não é teu contemporâneo, andou por Buba (carta de Xitole) entre 1970/71 e Mansabá (carta de Farim) entre 1971/72.
Abraço
Carlos Vinhal
Camaradas,
Só venho aqui dizer que, para além daquilo que o Carlos Vinhal esclareceu, existem (existiam...) muitas matas idênticas por toda a Guiné (pelo menos "pedaços" dessas matas, como é o caso).
Saudações
Alberto Branquinho
Francisco Baptista
É um facto, os ex-combatentes só falam do que se passou na guerra da Guiné quando se juntam nos encontros-convívios. Do que haveriam de falar? E ainda bem, agora também têm outras coisas para falar.
Este teu extraordinário 'que aconteceu' era exatamente assim, mas o barulho das rajadas, dos rebentamentos e da gritaria de toda a gente, dificilmente se teria dado/ouvido alguma ordem para ser respeitada. Era tudo a disparar nos primeiros cinco/dez minutos.
O ex-Fur.Mil Cândido Cunha com seu Pelotão da nossa CART11 e mais NT de Piche montaram uma emboscado ao IN, situação rara, prós lados de Piche, na célebre 'batalha de Sinchã Lali' (que belo nome). Ele contou, depois, os momentos do tiroteio, grande barulheira, gritos de insultos e poeirada durante uma meia hora, para tudo se ir acabando e todos descansando com um grande cheiro a pólvora.
O Cunha contou que uns tempos antes, foi de noite, se começou a ouvir a aproximação do IN e foi a nossa cadela-mascote 'Judy', que andava sempre atrás dele, que teria dado o alarme quando o IN entrou no emboscada e se teria gorado um maior 'ronco' da NT, que mesmo assim lhes infligiu baixas, apreensão de armamento e recuperação de bens que antes tinham sido roubados à população.
….E cá estamos a recordar quase cinquenta anos depois.
Valdemar Queiroz
Com a qualidade a que nos habituaste mais uma estória que se confunde com os anos e as recordações da guerra.
Parabéns Baptista e um abraço
Francisco Baptista
Com essa tua facilidade narrativa, qual a razão para não "trabalhares mais" esta arte?
Não são só as tuas memórias civis, com que nos brindas, do teu mundo transmontano que deves deixar para memória futura. Já é tempo de deitares cá para fora "a tua Guiné".
Grande abraço
JPicado.
Caro Carlos Vinhal,
Mas a fotografia é uma realidade ou ficção, é que fiquei sem compreender a história de uma emboscada na Guiné, e a foto de Cacheu, Barro, ou ?
A narrativa é uma coisa, a fotografia é de quem? e Onde?
Ab,
Virgilio Teixeira
Caro Virgílio Teixeira, eu precisava de uma foto alusiva a uma emboscada, procurei no Blogue e encontrei esta que é do Coronel Marques Lopes. Pela legenda depreende-se que seja algures por Barro, em 1968, e os "artistas" são militares da CCAÇ 3.
Abraço
Carlos Vinhal
Ok está esclarecido agora, é gente do meu tempo, da CC3 e o coronel Marques Lopes por acaso não conheci.
Abraço
Virgilio Teixeira
Camarada Virgílio Teixeira
Talvez ajude informar que, ao tempo, o coronel Marques Lopes era alferes miliciano e já tinha estado numa outra Companhia antes da CCAÇ 3, tendo, nessa outra, sido ferido em combate.
Assim, talvez, por acaso, o reconheças. Ou não?
Cumprimentos
Alberto Branquinho
Já bastante fora de tempo, vou procurar ser mais claro e fiel à verdade.
Somente depois da polémica sobre a localização da primeira foto que o Carlos Vinhal postou me lembrei da segunda foto, entretanto já postada pelo Carlos, que o alferes Luís Folque, que esteve alguns meses comigo na C.Caç 2616, em Buba, me enviou há três ou quatro anos juntamente com outras. Foi também nesse troço de estrada que a foto retrata que passados alguns dias morreu o furriel Ferreira, ao tentar levantar uma mina. O Ferreira além de especialista em minas e armadilhas era também comandante do 4º pelotao, era um óptimo camarada e todos sentimos muito a sua morte.
Dou os meus parabéns ao Virgílio Teixeira que tem um acervo enorme de fotos e por tanto se documentar talvez até consiga reconhecer melhor os sítios do que os outros. Eu seria mais da opinião do Alberto Branquinho quando diz que havia e haverá muitas matas idênticas na Guiné. Ao Valdemar Silva lembro uma coisa que se praticava e ele bem sabia: as ordens de comando também se comunicavam através do passa-palavra.
Carlos Vinhal mais uma vez agradeço-te por ilustrares sempre bem os meus textos sem esperares que eu te envie o material necessário que sabes que geralmente nunca tenho. Desta vez tinha essa foto que só mais tarde me lembrei dela.
A responsabilidade da legenda, da 2ª foto é minha, bem sei que me denuncia como um dos actores involuntários desse acontecimento, o que não nunca me agradou muito, mas senti-me um pouco compelido para poder falar com mais autoridade sobre o assunto. Enfim era assim! Estávamos lá, as coisas aconteciam.
Um abraço
Francisco Baptista
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