terça-feira, 1 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20194: Blogues da nossa blogosfera (111): os alentejanos de pele escura: "Ribeira do Sado, / Ó Sado, Sadeta, / Meus olhos não viram / Tanta gente preta." (Blogue Comporta - Opina, 2/1/2010)





Imagens, sem data, documentando a presença de descendentes de escravos negros na lezíria e ribeira do Sado



Fonte: Blogue Comporta-Opina (2010), com a devida vénia..



1. Com a devina vénia, transcreve-se do blogue Comporta-Opina, este texto interessante sobre a colonização do vale do Sado por escravos oriundos da Senegâmbia, já provavelmente a partir do séc. XVI (*).




Comporta-OPinia > 2 de janeiro de 2010 > 




Durante séculos a Lezíria e Ribeira do Sado foram um território desabitado, com fama de insalubridade, rodeado de charnecas e gândaras. Apenas a exploração das salinas implicava a deslocação de trabalhadores temporários, funcionando o rio como via de comunicação e escoamento de diversos produtos regionais e locais, de onde avultava o sal, produto que, pelo menos desde o século XVI a meados do século XX, constituiu a principal actividade económica das regiões ribeirinhas entre Alcácer e Setúbal.


O paludismo, localmente conhecido por febre terçã ou sezões, era um mal endémico, correndo ainda hoje a versão que a pouca população existente em períodos anteriores ao século XX era constituída por africanos - supostamente imunes à doença - aí fixados pela Coroa como forma de assegurar alguma agricultura.


Lenda ou não, o certo é que Leite de Vasconcelos na sua monumental "Etnologia Portuguesa", refere e descreve os chamados pretos de Alcácer ou mulatos da Ribeira do Sado, correspondentes a habitantes desta região que apresentavam nítidos traços africanos.


Alentejanos de pele escura

Ribeira do Sado,
Ó Sado, Sadeta,
Meus olhos não viram
Tanta gente preta.

Quem quiser ver moças
Da cor do carvão,
Vá dar um passeio
Até São Romão
.

(do cancioneiro popular de Alcácer do Sal,
Alentejo, sul de Portugal)
Ribeira do Sado é o nome de uma região que se estende ao longo do vale do Rio Sado, no sul de Portugal, a partir de Alcácer do Sal e para montante, não longe de Grândola, a Vila Morena. São Romão do Sado é uma das aldeias existentes na referida região.

Quem agora for passear pela Ribeira do Sado, já não verá gente verdadeiramente preta diante dos seus olhos, nem encontrará moças da cor do carvão propriamente dito na aldeia de São Romão. A mestiçagem já se consumou por completo. Mas são por demais evidentes os traços fisionómicos observáveis em muitos dos habitantes da região, assim como a cor mais escura da sua pele, que nos remetem imediatamente para a África a Sul do Sahara.

Nem sequer é preciso percorrer a Ribeira do Sado. Se nos limitarmos a dar uma ou duas voltas pelas ruas de Alcácer do Sal, por certo nos cruzaremos com uma ou mais pessoas que apresentam as características físicas referidas. São os chamados mulatos de Alcácer, por vezes também designados carapinhas do Sado. O seu aspecto é semelhante ao de muitos cabo-verdianos, mas eles não têm quaisquer laços com as ilhas crioulas. São filhos de portugueses, netos de portugueses, bisnetos de portugueses e assim sucessivamente, ao longo de muitas gerações. Quando falam, fazem-no com a característica pronúncia local. São alentejanos.

É frequente atribuir-se ao Marquês de Pombal a iniciativa de promover a fixação de populações negras no vale do Rio Sado. Mas não é verdade. Existem registos paroquiais e do Santo Ofício que referem a existência de uma elevada percentagem de negros e de mestiços em épocas muito anteriores a Pombal. Segundo tais registos, já no séc. XVI havia pessoas de cor negra vivendo nas terras de Alcácer.


O vale do Rio Sado, no troço indicado, é um vale alagadiço onde hoje se cultiva arroz. Até há menos de cem anos, havia muitos casos de paludismo nesse troço. A mortalidade causada pelas febres palustres fazia com que as pessoas evitassem fixar-se naquela região.


No séc. XVI, muitos portugueses embarcavam nas naus, o que agravava ainda mais o défice demográfico existente. Terá sido esta a razão por que, naquela época, os proprietários das férteis terras banhadas pelo Sado terão resolvido povoá-las com negros, comprados nos mercados de escravos. Os mulatos do Sado dos nossos dias são, portanto, descendentes desses antigos escravos negros. (**)


[Nota, a posteriori: a autoria deste texto, não das imagens, deve ser atribuído ao nosso camarada Fernando de Sousa Ribeiro, que o publicou aqui, originalmente, sob pseudónimo ("DEnudadp"), no blogue "Da Kappo", da angolana Paula Santana ("Koluki"). 

Link: https://koluki.blogspot.com/2008/07/be-my-guest-ii-denudado.html ]

_______________

Notas do editor:

(*) Últino poste da série > 7 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19756: Blogues da nossa blogosfera (110): O livro "Imagens e Quadras Soltas", de JERO e Manuel Maia, no Blogue da Tabanca do Centro (José Eduardo Reis Oliveira)

(**) Vd. poste de 30 de setembro de 2019 > Guiné 63/74 – P20192: Agenda cultural (703): Livro do nosso camarada ranger António Chaínho "A escrava Domingas". (José Saúde)

9 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

Luís, o texto intitulado "Alentejanos de pele escura" é meu! Fui eu que o escrevi! Juro que fui eu! O texto é meu, desde as quadras populares (exclusive, claro) até ao fim.

O que o blogue "Comporta - Opina" fez foi transcrever ipsis verbis o conteúdo de um post publicado em 2009 num fórum neonazi (!!!), chamado Stormfront, por um membro do dito fórum que usa o nick "Looking for a fight", que talvez seja um antirracista infiltrado no fórum. O post está neste endereço: https://www.stormfront.org/forum/t592627/. O membro do fórum "Looking for a fight" indicou os endereços de onde retirou os textos que transcreveu, mas o blog "Comporta - Opina" omitiu-os.

O texto "Alentejanos de pele escura" foi publicado pela primeira vez em 2008 no blog "Da Kappo" (escrito propositadamente com K), da angolana Paula Santana, que é economista, vive em Londres e usa o nick Koluki. Um dia, Koluki convidou-me a escrever um post destinado ser publicado no seu blog, sobre um tema que eu muito bem entendesse. Como Koluki é negra, lembrei-me de falar sobre os negros que deram origem aos "mulatos de Alcácer".

«Como é que um gajo do Porto se atreveu a escrever sobre pessoas de Alcácer do Sal?», poderás perguntar. Por incrível que pareça, tudo começou na tropa!

Em Mafra, numa das casernas destinadas aos cadetes do 1.º ciclo do C.O.M., eu partilhei um beliche com um "mulato de Alcácer". Ele dormia na cama de cima e eu na de baixo. Não consigo lembrar-me do nome dele, por mais que me esforce. Do que eu me lembro (bem demais) é do seu aspeto nitidamente mestiço, da sua inconfundível pronúncia alentejana, assim como do racismo de que ele era vítima por parte de alguns outros cadetes instalados na caserna. Este "mulato" era troçado e gozado por eles de todas as formas e feitios, naquilo que agora se chama bullying. Como eu não o gozava, e além disso partilhava o beliche com ele, esse "mulato" deu-se bem comigo e contou-me as suas origens e a razão de ser do seu aspeto físico. Ele foi um excelente companheiro, que sofria muitíssimo com as manifestações de racismo de que era alvo, apesar de ser um português da Metrópole como os restantes cadetes.

Mais tarde, no meu pelotão em Angola, houve um soldado que era de Grândola, chamado Nunes. De vez em quando, este soldado fazia referências aos "mulatos de Alcácer", nas conversas que tinha comigo e com o resto do pelotão.

Depois de ter passado à disponibilidade e ao longo dos anos que se seguiram, continuei a ter uma certa curiosidade pelos "mulatos de Alcácer". Fui a Alcácer do Sal várias vezes, assim como a Grândola e ao Torrão, além de ter percorrido a Ribeira do Sado. Fui, nomeadamente, a S. Romão, que é, aliás, uma aldeia muito pequena.

Quando a angolana Koluki me convidou a escrever um artigo para o seu blog, fui à Biblioteca Pública Municipal do Porto consultar a bibliografia que lá existisse sobre os "mulatos de Alcácer" (escassíssima, para minha grande surpresa), no sentido de refrescar a memória e completar a informação que eu próprio tinha sobre o tema. Finalmente escrevi o pequeno texto que a blogger Koluki publicou em 2008 e eu próprio reproduzi no meu blog pessoal em 2012.

(continua)

Fernando Ribeiro disse...

(continuação)

A concluir, lembro-me de uma canção que foi um grande êxito há uns quantos anos, chamada As Meninas da Ribeira do Sado. Em parte nenhuma da canção é referida a cor da pele das ditas meninas, e por isso toda a gente pensa que elas são tão brancas como as outras alentejanas. Mesmo assim, pergunto-me se não haverá algum racismo nesta canção, que troça das meninas da Ribeira do Sado, assim como foi troçado o cadete de Alcácer do Sal com quem partilhei o meu beliche em Mafra.

Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano, CCAÇ 3535 do BCAÇ 3880, Angola 1972-74

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Fernando, o seu a seu dono... Eu tinha visto o teu texto, "Alentejanos de pele escura", no blogue A Matéria do Tempo", de Fernando Ribeiro (*), que só agora relaciono contigo... Fernando Ribeiro, engenheiro, do Porto, só podias ser tu... E sobretudo pelos conteúdos...

Mas vi que este texto, com maiores ou menores acrescentos (e sobtetudo imagens) estava "espalhado" pela Net,. desde 2010 a 2019... Tendo dúvidas sobre a fonte original, e sobretudo o autor, acabei por "encalhar" no blogue "Comporta-Opina", para mais tinha umas belas gravuras que me convinha reproduzir... O poste da "Comporta-Opina" é de 2010, mas afinal de contas o texto original é teu, e é mais antigo, 2008: como dizes, foi publicado pela primeira vez em 2008, sob pseudónimo, no blogue "Da Kappo" (escrito propositadamente com K), da angolana Paula Santana. E eu confirmo, consegui descobrir aqui o link:

https://koluki.blogspot.com/2008/07/be-my-guest-ii-denudado.html

Infelizmente estas práticas, intelectualmente desonetas, de "apropriação", ou melhor., de "pirataria", são cada vez mais frequentes, não só no meio escolar e académico, como sobretudo na Net...

Ainda bem que estavas atento... Vou já falar um poste a dar a mão à palmatória e a pôr as coisas no seu devido lugar...

Aquele abraço, e parabéns pelo teu blogue "A Mátéria do Tempo", que já conheço há anos, mas nunca associado ao Fernando de Sousa Ribeiro...

___________________


(*) Vd.

A Matéria do Tempo, blogue de Fernando Ribeiro

18 ABRIL 2012
Alentejanos de pele escura

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Enquanto professor na Escola Nacional de Saúde Pública, apanhei para aí uma dúzia de casos de "pirataria" em trabalhos académicos (em cursos de pós-graduação, mestrado e até doutoramento)... Nunca humilhei ninguém por isso, tinha sempre uma "conversa particular" com o "prevaricador", e dava-lhe uma segunda oportunidade ara refazer o trabalho...

Mas cheguei a dar zero a um grupo de médicos estrangeiros que copiaram um trabalho uns pelos outros... Uma coisa "tosca"... Nos outros casos, havia sempre uma história pelo meio: gente com dificuldades (, a começar pelos estrangeiros que são admitidos em Portugal como médicos e não dominam o português escrito e falado), mas também de mães e pais, profissionais de saúde, para mais, que têm dificuldade em lidar com stress conjugado da vida académica, familiar e profissional...

Obviamente, há aqui problemas éticos e deontológicos graves... Mas fico-me por aqui... LG

Anónimo disse...


Fernando Ribeiro e Luís,

E eu fico-me por aqui... Jorge Araújo

https://observador.pt/2018/11/22/universidade-de-coimbra-puniu-77-alunos-por-plagio-e-fraude-desde-2012/

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Confesso que não sei a quem atribuir os eventuais direitos autorais das imagens que fui buscar ao blogue "Comporta - Opina"... Podem ser do domínio público, mas gostam sempre de saber e referir a fonte... Talvez o Fernando me possa ajudar já que andou às voltas com este tema...

Valdemar Silva disse...

Interessante.
Na localidade Portas de Transval, localizada na estrada de Odemira-Aljezur no entroncamento com a estrada que vem de Vila Nova de Milfontes, há pessoas de pele muito escura, cabelo encaracolado espesso e de baixa estatura. Parecem ser todas da mesma família, mas não têm nenhum grau de parentesco.
Nunca consegui ter uma conversa com ninguém sobre o assunto, pois apenas lá parava para beber um café a caminho de Odeceixe, Aljezur ou Lagos.

Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

Luís Graça, só agora reparei que me interpelas sobre as imagens. Confesso que nunca as tinha visto e não faço ideia de onde terão vindo. Mas foi bom que me interpelasses, pois fizeste-me lembrar do tipo de habitação tradicional da Carrasqueira, uma povoação de pescadores do estuário do Sado a dois passos da Comporta. É a chamada "barraca". Eu acho que o estuário do Sado não pode ser considerado como fazendo parte da Ribeira do Sado, mas a "barraca" da Carrasqueira é um tipo de construção tão original que me pergunto se não terá origens africanas.

http://oarrumadinho.iol.pt/amor-e-uma-cabana/

Se ainda não conheces a Carrasqueira, aconselho-te a visitá-la quando puderes, porque certamente não te vais arrepender. Fica perto da Comporta, à ilharga da estrada que liga a Comporta a Alcácer do Sal.

Fernando de Sousa Ribeiro

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Os escravos que vieram para Portugal (trabalhos domésticos, em Lisboa(, agricultura (Alter do Chão, Sado, Sorrais, Estremadura, Algarve...), acabaram por se integrar na população... Somos um "melting pot"... Era importante descobrir o artigo de Leite de Vasconcelos, sobre os "mulatos do Sado"...Eu tenho diversos volumes da Etnografia Portuguesa... Vou procurar.

Infelizmente perdi a exposição sobre a escravatura,no museu de Arqueologia, em 2017,no âmbito de Lisboa Capital Ibero- Americana da Cultura.

https://www.dn.pt/artes/as-coleiras-achadas-e-outras-historias-de-escravos-6236807.html