quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20202: Recordações e desabafos de um artilheiro (Domingos Robalo, fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71) - Parte II: recruta no RI 5, Caldas da Rainha, na 5ª companhia, comandada pelo ten inf Vasco Lourenço

RECORDAÇÕES E DESABAFOS DE UM ARTILHEIRO > Parte II:  recruta no RI 5, Caldas da Rainha, na 5ª companhia, comandada pelo ten inf Vasco Lourenço

por Domingos Robalo (*)



[, Foto à esquerda: Domingos Robalo:

(i)  tem página no Facebook desde março de 2009 e administra também o grupo Artilharia de Campanha na Guiné-BAC1/-GAC7

(ii)  filho de militar, foi fur mil art, BAC 1 / GAC 7, Bissau, 1969/71; 

(iii) vive em Almada, está ligado à Universidade Sénior Dom Sancho I, de Almada, onde faz voluntariado, desde julho de 2013, como professor da disciplina de "Cultura e Arte Naval"; 

(iv) trabalhou na Lisnave: é praticante de golfe; 

(v) e passou a integrar a Tabanca Grande, com o nº 795, desde 21 de setembro último]

(Continuação)


Durante três meses e uns dias [, desde o início de janeiro de 1968] vamos aprender . [, no RI 5, Caldas da Rainha,] a “ordem unida”, o manejo da G3, fazer fogo em carreira de tiro e toda a teoria necessária e aplicável á época para se preparar um sargento para a “guerra colonial”. Mergulhar no tanque da merda, ou mesmo atravessar o cano dos esgotos sanitário era prática de alguns pelotões na recruta das Caldas, porém tenho de referir que a minha Companhia de instrução, a 5ª, não nos fez passar por estas situações.

Conhecer a hierarquia militar, a forma como no devíamos dirigir a um sargento ou a um oficial, fosse ele subalterno ou superior, fazia parte do conhecimento básico da instrução militar. Marchar bem e com garbo, manejar a arma; tudo fazia parte do nosso quotidiano.

Estou colocado na 5ª Companhia, tendo como comandante o tenente Vasco Lourenço, que em 25 de abril de 1974 viria a fazer parte do Movimento dos Capitães.

Não era um Comandante acessível. Militar oriundo da Academia Militar, chegou a castigar-me com cinco dias de detenção, embora a infração, disciplinarmente, e de acordo com o RDM, daria 3 dias de prisão. “Apenas porque me desenfiei de domingo para segunda, para poder participar no casamento de uma amiga da minha namorada que sendo Luso-Americano, obteve autorização dos seus superiores para vir dos USA casar a Portugal, mas já com guia de marcha para o Vietname." (Recordam-se do que era a guerra naquele território?). Mas isto dava outra história que agora não vem a propósito.

[Um ano depois,] em março/abril de 1969, sou mobilizado para a Província da Guiné. Dois cursos de CSM a seguir ao meu já tinham sido mobilizados e um terceiro a terminar a especialidade na EPA [Escola Prática de Artilharia], Vendas Novas. Estava com planos de casório, pois já estava na expectativa de não vir a ser mobilizado, resultado também da minha boa classificação de curso na Arma de Artilharia na especialidade de Campanha.

Lembro-me que o mundo desabou sobre os “noivos”. A guerra do Ultramar tinha este efeito devastador sobre a vida dos jovens do meu tempo. Interrompiam-se casamentos, carreiras profissionais e estudos académicos. Mas,  apesar de todos estes contratempos, a juventude dizia sim a Portugal, embora poucos ainda se questionassem sobre as motivações da guerra. 

Grande parte da juventude do meu país vivia longe das cidades, eram iletrados e muitas vezes ávidos de sair da casa dos pais onde trabalhavam de sol a sol e sem independência. Ou fugiam a salto para a Europa do pós-guerra, ou vinham à aventura da vida militar, muitos deles como voluntários, quer para a força aérea, quer para a marinha.

Cascais > Monumento aos Mortos do Ultramar > Guiné.
Foto: Cortesia do Blogue Povo de Portugal, 31/3/2016

A minha mobilização para a Guiné ocorrera para cumprir uma rendição individual de um militar que não teve oportunidade de chegar ao fim. Ia substituir o furriel miliciano Batista [,  António da Conceição Dias Baptista, natural de Murtal, São Domingos de Rana, Cascais ], que infelizmente não terminara a sua comissão no tempo normal. No dia 14 de fevereiro de 1969, morre heroicamente ao lado do seu Comandante de pelotão, o alferes Gonçalves [, José Manuel de Araújo Gonçalves, natural de Lisboa],  São vítimas de um ataque IN no aquartelamento de Guileje.

Merecem, entre muitos outros, serem aqui referidos porque o seu sacrifício resultou de um ato heroico, não por falta de discernimento ou inconsequente, mas, na sequência da intensidade do fogo IN terem querido proteger os seus soldados, todos negros e do recrutamento da Província. Ordenou o Alferes que todos se recolhessem no abrigo. O Furriel Batista manteve-se a seu lado respondendo ao fogo IN, como se de um duelo de artilharia se tratasse. Mas a má hora chegou. Uma morteirada cai sobre o ferrão do lado esquerdo do obús 10,5cm e ali morrem os dois. 

Guileje era uma povoação a sul da Província da Guiné e sobejamente conhecida de todos os militares mobilizados para esta Província Ultramarina.

A sete de maio de 1969, embarco no “Niassa” com destino a Bissau.

____________

Nota do editor:

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É verdade, camarada, naquele tempo não se podia ter sonhos, ou tínhamos que os adiar... Empenhávamos cerca de 3 anos da nossa vida à Pátria... E não era certo que voltávamos inteiros ou vivos...

Um abraço, e obrigado pelas tuas recordações e desabafos.LG

José Botelho Colaço disse...

Luís devias ter acrescentado porque sabes que era assim: Nos primeiros anos da guerra só tinha-mos direito à viagem de regresso mutilado ou vivo, porque os mortos se a família não pagou a viagem ainda lá permaecem infelizmente.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tens razão, José, até 1968, os ossos ficavam lá, se a família não tivesse recursos para custear a trasladação dos restos mortais... É bom lembrar isso... Que a memória é curta e traiçoeira... LG

Anónimo disse...

Finalmente encontro o "responsavel" pela confusao que se instalou no meu arquivo cerebral sobre qual foi a minha companhia no RI5 em Abril de 1968 que era comandada pelo Cap. Vasco Lourenco. Ja espalhei por varios sitios pedidos de ajuda para resolver esta duvida, que nao existia anteriormente porque eu estava absolutamente certo que teria sido a sexta.

Espero que Domingos Robalo volte a este post e desfaca a duvida ate porque, entretanto, outro camarada que tambem frequentou o primeiro curso de 1968, mencionou (ver comentario dele na primeira parte deste post) que o entao Ten. Vasco Lourenco (tudo da a entender que foi promovido em Abril/68) mas que era comandante da sexta companhia, exactamente aquilo que eu pensava.

Isto parece um pormenor trivial mas estou a preparar um esboco duma obra que tenho intencao de publicar e queria, dentro do possivel, evitar erros. Portanto, agradecia que entre os hospedes do RI5 alguem me ajude nesta pesquisa.

A proposito, confirmo o que Domingos mencionou sobre a incorporacao de 1968 ser a primeira em que os mancebos para o CISM eram possuidores do segundo ciclo do liceu ou equivalente (ate entao so era necessario ter o primeiro ciclo, a razao pela qual havia uma abundancia de candidatos ao CISM (e ate conheci um tenente miliciano, que na giria de entao "meteu o chico", so tinha o ciclo preparatorio). Claro que a grande maioria dos incorporados em 1968 (e provavelmente nos anos seguintes) ja eram "velhotes" do sistema de admissao anterior.

Outro facto que constava na ocasiao foi a farda ser pela primeira vez de tecido terylene e as botas sem polainas. Outro acontecimento inedito na ocasiao foi a admissao de instruendos do CSM e COM como voluntarios para as tropas paraquedistas. Como eu tinha sido escolhido para ir para os comandos, preferi a opcao de ir para Tancos e ofereci-me. Eramos 44 do CSM e COM, reduzidos a 40 porque 4 nao gostaram de dar um pulo da torre.

Ate ja camaradas! E desculpa pelos "erros ortograficos" - o meu teclado nao tem "decoracoes"...

Joaquim Fernandes