Guiné > Região de Quínara >Fulacunda 1972/74 > Fonte velhaFoto (e legenda): © Jorge Pinto (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné], com a devida vénia
Guiné > Região de Cacheu > Teixeira Pinto > Março de 1973 > As lavadeiras no lavadouro público
Foto (e legenda): © Francisco Gamelas (2016). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Com a nossa chegada a Aldeia Formosa as mulheres locais acorreram em grupos à procura dos “periquitos” oferecendo os seus préstimos para a lavagem da roupa.
O dia da lavadeira era o mais esperado da semana no quartel. Vinham em rancho com os seus trajes coloridos, com a trouxa de roupa à cabeça e uma alegria contagiante nos rostos. Aguardavam impacientes junto ao sentinela a autorização para entrarem no quartel, o que geralmente acontecia ao meio da tarde, e era vê-las entrar em grande algazarra, de sorrisos rasgados, dispersando-se pelo quartel como rebanho comunitário acabado de chegar, do monte, ao povoado.
Quem não viveu e/ou participou na guerra colonial, ouvindo falar das lavadeiras dos militares logo associa a alguém que lavava a roupa e não só. Nada de mais errado e injusto para a maioria destas mulheres: dignas, afáveis, competentes e que compreendiam melhor do que ninguém o sofrimento e angústias destes jovens, ansiosos por regressarem à terra e ao seio da família, desculpando-os de um ou outro pequeno devaneio, sabendo que nelas projetavam alguém bem longe para além do oceano.
Não sou ingénuo ao ponto de não admitir situações em que, para além da roupa algo mais acontecia (mas sempre, voluntário e consentido), como aconteceria em qualquer outro ponto do mundo, mas que, seguramente na Guiné, eram a exceção que confirmava a regra.
Nada de muito diferente, salvaguardadas as devidas diferenças e contextos, dos supostos casamentos na parada em Tavira, das noites “quentes” no Forte de S. Francisco em Chaves bem como as juras de amor para sempre... até que o fim da instrução nos separe... em todos os quartéis de mobilização.
Não deixava de ser comovente ver camaradas que, numa ida a Bissau ou de férias a Portugal, faziam questão de levar uma lembrança para os amigos mais chegados e para a sua lavadeira. Arrisco a dizer que o faziam sempre de uma forma despretensiosa.
Do General ao soldado todos vibravam com o momento, quebrando a pasmaceira dos dias enfadonhos, rodeando a sua lavadeira, que a todos dava “troco” com os seus gestos e olhares, brincando e rindo com as tiradas brejeiras dos mais atrevidos mas nunca permitindo aproximações mais ousadas.
Era visível que estas simpáticas lavadeiras também vibravam com estes momentos, sendo estes, por ventura, dos poucos da sua vida em que se sentiam o centro das atenções e não apenas uma “mercadoria”, que a força das ancestrais tradições lhes impunham (análise demasiado simplista mas que não cabe aqui aprofundar).
Este serviço da lavagem da roupa era uma importante fonte de rendimento dando alguma qualidade de vida e dignidade a estas mulheres e à sua família. Contudo, as lavadeiras eram muito mais do que alguém que lavava as nossas roupas, eram uma autentica instituição, inorgânica, fazendo visitas semanais, quase de “terapia de grupo”, restaurando as nossas defesas ao proporcionar-nos alguns minutos de vida em sociedade, quase de normalidade, em contraponto à vida de “embrutecimento” da caserna e da guerra.
Algumas destas lavadeiras eram mulheres e familiares de muitos dos militares, milícias e guias africanos que trabalhavam connosco.
Infelizmente, a maior parte da nossa comissão como companhia de intervenção (sempre de casa às costas), privou-nos não só destes momentos de descompressão como do contacto com as populações, fundamentais para a nossa saúde mental.
Cada lavadeira lavava a roupa de vários militares mas nunca trocava uma única peça que fosse. Achava extraordinário como fixavam o nome de todos os militares e suas patentes. Mais extraordinário porque de 2 em 2 anos estes eram substituídos por outros, e assim sucessivamente ao longo dos anos.
Certo dia, a minha lavadeira chegou com uma grande trouxa de roupa à cabeça lavada e já separada pelos diferentes donos. Colocou-a junta à porta da caserna dos furriéis e ficou à espera que aparecesse alguém para a entregar. Como não apareceu ninguém foi à procura. Entretanto, chega um colega que pega na trouxe e começa à procura, na tentativa de encontra as suas peças. Deixou tudo numa grande desordem e não encontrou nada seu, nem podia já que esta não era a sua lavadeira.
Quando esta chega, quase ao mesmo tempo que nós (eu e mais dois camaradas - sem certezas julgo que o Carlos Machado e o António Gouveia) a rapariga fica muito preocupada e, ao mesmo tempo, indignada com o que fizeram à sua trouxa de roupa, desfazendo-se em desculpas com receio de ser despedida por desleixo. Começamos a separar as nossas peças tentando acalmar a simpática e eficiente lavadeira. Ela, um pouco mais calma e já com um sorriso nos olhos, tira as nossas mãos de cima da roupa e começa ela a distribuir: esta é do Carlos, esta é do António, esta é do furriel 'Pequenina'... esta é do Carlos, esta é do António, esta é do furriel 'Pequenina'….
Nem de propósito, este foi o dia em recebemos, pela primeira vez, a visita do “grande chefe” (General Spínola) a quem prestei honras militares com o meu pelotão com a farda bem lavada e engomada e o que fez Spínola retardar o gesto da continência dado o cheiro agradável a roupa lavada!..
Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > Visita do General Spínola – Eu (o primeiro do grupo à esquerda a seguir ao sentinela) e o meu pelotão prestando honras militares ao General (ao centro) com o seu bengalim e à direita o comandante do quartel, na altura, mais conhecido pelo “Baga Baga” [, seria o ten cor Barata ou o seu sucessor, Barros Basto, ten cor, cmdt do BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73,]... percebe-se porquê!
(Continua...)
____________
Nota do editor:
Último poste da série > 12 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21996: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte IV: O embarque, as 'hospedeiras'… e África MinhaLembro-me de alguns familiares a despedirem-se dos filhos, maridos e namorados, todos chorosos e tristes, mas longe das cenas que conhecia pela televisão, do cais de Lisboa (Gare Marítima da Rocha Conde de Óbidos), com desmaios, gritos, muito “ranho” no nariz e muitos lenços acenar.
Nunca tinha andado de avião pelo que a expectativa era grande. Ouvia falar das hospedeiras... e do tratamento VIP que todos recebiam nas viagens de avião...(...)
5 comentários:
É um dos mais bonitos elogios que já li sobre as "nossas lavadeiras" e "o dia da lavadeira" (que, tanto quanto me recordo, era à quinta-feira, em Bambadinca):
(...) "O dia da lavadeira era o mais esperado da semana no quartel. Vinham em rancho com os seus trajes coloridos, com a trouxa de roupa à cabeça e uma alegria contagiante nos rostos. Aguardavam impacientes junto ao sentinela a autorização para entrarem no quartel, o que geralmente acontecia ao meio da tarde, e era vê-las entrar em grande algazarra, de sorrisos rasgados, dispersando-se pelo quartel como rebanho comunitário acabado de chegar, do monte, ao povoado.
"Quem não viveu e/ou participou na guerra colonial, ouvindo falar das lavadeiras dos militares logo associa a alguém que lavava a roupa e não só. Nada de mais errado e injusto para a maioria destas mulheres: dignas, afáveis, competentes e que compreendiam melhor do que ninguém o sofrimento e angústias destes jovens, ansiosos por regressarem à terra e ao seio da família, desculpando-os de um ou outro pequeno devaneio, sabendo que nelas projetavam alguém bem longe para além do oceano." (...)
Costa, mais um belo texto.
Vamos à lavandaria, dizia-mos nós, quando em Contuboel íamos à praia do rio Geba e passávamos junto da lavandaria (umas pedras junto do rio) ver as bajudas lavadeiras de tronco tu e saiote molhado a lavar a roupa da rapaziada da tropa.
No Quartel da nossa CART.11, em Nova Lamego, não havia um dia certo para as lavadeiras entregar a roupa lavada e recolher a suja. A nossa CART.11, de soldados fulas, com os quadros e poucos soldados metropolitanos não dava grande negócio às lavadeiras que na maioria eram as mulheres ou familiares dos nossos soldados.
Julgo que em Contuboel seria assim, mas lavadeiras em Nova Lamego tinham uma tabela de preços. Não era um preçário especial à peça, era um preçário à patente ou seja os soldados pagavam um preço, os furriéis, o 1º. sargento, os alferes e capitão pagavam cada um preço diferente pelo mesmo tipo de roupa lavada. Toma lá qu'é democrático, diríamos nós agora, mas a explicação dada era bem simples: ganha mais patacão, paga mais à lavandeira, diziam.
Quanto ao resto, havia sempre a mesma 'lava tudo?' mas no geral o respeitinho era muito bonito.
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz
Caros amigos,
O tema é deveras interessante e a descriçao do Joaquim Costa é quase perfeita, como costuma dizer o nosso Luis Graça, nem tudo era a preto e branco, claro. “Os pequenos devaneios” desculpáveis, devido as saudades da terra natal aconteciam, assim como aconteciam inúmeros outros casos dos quais os de “lava tudo”, porque se a tropa passava por respeitar a disciplina militar na geralidade, com a irreverência já conhecida e que muitas vezes se evidênciava através do dedo medio nas costas do chefe hierárquico, com o pessoal africano e sobretudo com as mulheres já era muito diferente, pelo que estas quando tinham mesmo que entrar no quartel por obrigação do serviço mas também porque dava algum gozo apreciar a rapaziada branca (acho eu), faziam-no com algumas cautelas como por exemplo levar um bébé as costas, mesmo não sendo a mãe para intimidar e afastar os mais atrevidos ou levar um(a) guarda-costas que seguia grudada(o) as suas costas para gritar e fazer barulho quando as apalpadelas passavam do limite e não eram consentidas. Com as minhas primas-irmas na condição de lavadeiras, faziamos várias vezes de guarda-costas a uma delas, a mais velhas, pois a mais nova nunca queria e fugia de nós como do diabo pelo que, claro está, ela era suspeita de práticas menos decentes aos nossos olhos.
Mas, para dizer a verdade, até 1970, periodo que coincide com a chegada da CART 2742 do Cap. Carlos Borges Figueiredo (todas as anteriores eram muito bélicas e acreditavam poder ganhar aquela guerra), a nossa verdadeira motivação, enquanto guarda-costas, era conseguir o livre trânsito que nos permitia atravessar a porta d’armas e deambular dentro do quartel e, eventualmente, conseguir um pedaço de pão com ou sem marmelada, com ou sem autorização ou uma latinha de sardinhas quando não era a milagrosa Coca-Cola espumante, o que raramente acontecia. Mas, valia sempre pela aventura de entrar naquele lugar proibido que atraia a nossa curiosidade sobre aquela gente estranha vinda de outras paragens, jovem e saudável e de hábitos muito esquisitos.
As meninas e mulheres lavadeiras da nossa aldeia sabiam que os rapazes não eram de confiança, pois com eles na guarda, as cunhas eram permitidas e, nesse caso, faziam vista grossa ou abandonavam o local para ir atrás da bola a troco de pouca coisa e assim o truque do bébé nas costas era o recurso mais seguro para entrar no quartel que mais parecia um ninho de vespas para as nossas mulheres.
Gostaria de esclarecer que, geralmente, todas as mulheres queriam ser lavadeiras e ganhar algum dinheiro da tropa, mas dos casos que conheço em concreto, so as meninas e mulheres solteiras eram permitidas a ter laços contratuais com a tropa (os brancos) e estas por sua vez podiam ou nao dividir os seus clientes (contratantes) a outras mulheres casadas que se encarregavam de lavar e passar a roupa ou so lavar e entregar a lavadeira contratada para o serviço. E quando recebia dos seus clientes o valor do contrato entregava repartia com as outras co-lavadeiras que ficavam na sombra e nunca eram conhecidas por seus clientes. E esta pratica nao era isenta de problemas que so vinham a tona quando se verificava a perda ou mau estado de alguma peça, por falta de alguns botoes, entre outros casos.
Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
Irei publicar em breve uma lista dos mais de 30 postes publicados com o descritor (ou marcador) "lavadeiras"...Há histórias edificantes (e outras menos...).
Também tenho a mesma iamgem do Joaquim Costa, a do dia da lavadeira, se bem que a CCAÇ 12 não fosse uma unidade de quadrícula e andasse muitas vezes no mato...
No nosso caso, em Bambadinca, era junto do edifício do comando, quartos/camaratas, e messes de oficiais e sargentos... Recorde-se que: (i) as praças dormiam em camaratas (, com exceção dos gyuineenses, que vivia na tabanca); (ii) os furrieis/sargentios viviam em quartos com 5 camnas); (iii) os alferes, em quartos de 3 camas: (iv) os capitães e oficiais superiores eram os únicos que tinham quartos individuais...
Parecia uma feira e era, aqui como em outros lados, um momento de "socialização" e de convívio... Uma feira, colorida e animada, com muita gente da tabanca (miúdos, bajudas e mulheres grandes, de várias etnias, com destaque para fulas e mandingas...) a entregar roupa suja e a receber roupa lavada...
Eu pagava 100 escudos à minha lavadeira, que era mandinga. Não tenho ideia de me ter perdido menhuma peça.
A minha lavadeira em Mampatá era a jovem bajuda mais linda que havia na tabanca. Como era uma tabanca pequena e apenas havia um Grupo de Combate instalado, que juntamente com um Grupo de milícia assegurava a segurança, havia uma excelente relação pessoal com os autóctones. O comandante da milícia era o Régulo Aliu Baldé e minha lavadeira estava comprometida com o seu filho Hamadú a cumprir o serviço militar em Bolama. Era uma jovem que impunha respeito, como, aliás, todas as bajudas e mulheres grandes, pela relação humana que se gerou e pela forma como elas se faziam respeitar. Fiquei preso àquelas gentes que recordo com muita saudade, apesar de só ter estado cerca de meio ano. Nos meus regressos à Guiné (5) reativei as amizades e a Fatumata, o marido Hamadú e os seus filhos e outros familiares estão no meu rol de amizades.
Em Buba era uma jovem que devia ter cerca de doze anos, que tinha alguns cuidados, como andar sempre acompanhada e nunca entrar dentro da caserna. Como havia muita tropa estacionada, as bajudas e mulheres grandes quase não chegavam para as encomendas.
Abraços
Zé teixeira
Enviar um comentário