1. Em mensagem de hoje, 1 de Abril de 2021, o nosso camarada José Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), envia-nos um recorte de uma carta enviada à então sua madrinha de guerra, hoje esposa, onde relata um acontecimento raro na tropa, um levantamento de rancho, assegurando que não é uma "peta" do 1.º de Abril.
Um levantamento de rancho servido com uma bofetada
Amigos,
Todos nós, uns mais que outros, que tivemos a responsabilidade de conduzir homens, fomos confrontados com situações que bem preferíamos não tivessem acontecido. Foi o que me aconteceu no dia 31 de Março, no AGRBIS, em Brá, Guiné. Nesse quartel estava sediada a minha companhia e outras forças militares de Serviços e Comando.
Naquele dia, a pedido do comandante da minha companhia, Sr. Cap. Rogério Rebocho Alves, estive de Sargento de Dia. Isso obrigou-me a 72 horas de serviço seguido, nada a que os militares da nossa companhia não estivessem habituados, excepto para os três furriéis que desempenhavam as suas funções de Sargento da Guarda no Palácio do Governador que, devido às suas funções, tinham descanso entre serviços. Eu era um desses felizardos.
Naquele dia 31 de Março, quando entrei no refeitório apercebi-me que iria haver borrasca, um levantamento de rancho. Para além de um distraído da minha companhia, que ao aperceber-se do seu erro tentou disfarçar, ninguém tocara no que estava sobre as mesas. O Sr. Oficial de Dia, um Capitão de Cavalaria, de quem esqueci o nome, também se apercebeu de que o militar da minha companhia havia tocado no prato, melhor, sujado o prato, e perguntou-lhe porque não comia. Não ouvi a resposta daquele militar, um 1.° Cabo (sinto não ser necessário a publicação do seu nome para esta história) mas o Sr. Oficial de Dia virou o prato e de imediato esbofeteou aquele militar. O silêncio que se fazia sentir tornou-se sepulcral.
Sem outra alternativa os soldados começaram a comer e não houve mais incidentes. Ao fim da refeição, quando me preparava para sair, o Sr. Oficial de Dia chamou-me e ordenou-me que participasse de todos os militares da companhia presentes na refeição. Confesso que fiquei estarrecido e perguntei-lhe o motivo. Insubordinação foi a resposta dele. Na verdade, um preço muito alto a pagar pela bofetada que ele dera num militar da nossa companhia e foi isso mesmo que lhe disse.
Foram 27 participações que tive que escrever e que coloquei sobre a secretária do comandante da minha companhia. Ainda estou a ouvir o Sr. Capitão Alves, um homem de inefáveis qualidades humanas, com ele seu típico, “mas que chatice!”. Havia que haver uma saída para aquela situação, uma saída que de alguma forma se enquadrasse no Regulamento de Disciplina Militar. E assim foi. Naquela altura já se sabia que a companhia iria sair de Bissau. O Capitão reconhecia que eu tinha entregue as participações e ele tinha 30 dias para actuar sobre elas. No mato, num acampamento, quem se iria lembrar das referidas participações?
O Sr. Oficial de Dia esteve muito mal na sua actuação, mas sempre me perguntei porquê? Ele, julgo que em fim de comissão, certamente iria sofrer algumas consequências se o levantamento de rancho tivesse ido por diante. Para além disso, ele não fora o vagomestre e muito menos o cozinheiro. A sua responsabilidade, que era muita, esteve em não ter actuado sobre a qualidade da refeição. Não sei até que ponto ele o poderia ter feito num quartel que tinha como comandante o Cor. Santos Costa, na altura conhecido como o “Onze”.
As participações, passados os trinta dias, passaram ao álbum da neblina das minhas memórias.
Sobre esse assunto, no dia 1 de Abril de 1971, o último dia que estive de Sargento de Guarda ao Palácio, escrevi uma carta há minha madrinha de guerra, da qual publico o que importa para esta pequena história.
Um abraço amigo e a certeza que estou com todos vós e vossos familiares nesta hora difícil que o mundo atravessa.
José Câmara
Extracto da carta que escrevi à minha madrinha de guerra no dia 1 de Abril, a última que escrevi no Palácio do Governador
Foto tirada nos jardins do Palácio do Governador, em Bissau
Um dos meus passeios preferidos no AGRBIS ao longo da plantação de papaeiras
____________Nota do editor
Último poste da série de 23 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20488: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (35): Canção de Natal
4 comentários:
Amigo Zé Câmara
É sempre um prazer saber que te encontras " vivo e novo", por essas terras.
Uma Boa e Santa Páscoa pra Ti e todos familiares.
AB
JPicado
Caro Camarada,
José Câmara.
Diante do "Cristo Rei", em Almada, para Massachusetts, nos EUA, retribuo o abraço transatlântico de hoje.
Li, como muita atenção, mais uma das muitas histórias guardadas no "portefólio" da nossa passagem pela Guiné.
Nela encontrei, nem de propósito, uma "peta" do 1.º de Abril. Na legenda, logo abaixo da carta manuscrita, ao mês de Abril foram adicionadas mais vinte e quatro horas, passando este mês a ter 31 dias.
É evidente que se trata de uma gralha.
Uma Santa Páscoa, em família, com muita saúde e algumas amêndoas (qb).
Abraço, Jorge Araújo.
Obrigado, José, por mais esta partilha das tuas memórias. Infelizmente, nem todas as nossas memórias foram boas ou agradáveis. Afinal, o ambiente era de tropa e guerra. Mas há um pormenor que deve ter escapado a quem te leu até agora:
A tua "saudosa Isabel" era florentina, deduzo eu... Dizes tu na carta: "Tive de fazer 27 participações, inclusive dos florestinos,portanto, podes calcular como não estou; para mais os soldados tinham razão"...
Haverá gente no Continente que não sabe o "florentino" não é só o natural ou habitante de Florença, mas também o da Ilha das Flores. (*)
Boa e santa Páscoa... Lu+is
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(*)
florentino | adj. | n. m. | adj. n. m.
flo·ren·ti·no
(latim florentinus, -a, -um)
adjectivo
1. Relativo a Florença.
nome masculino
2. Natural ou habitante de Florença.
adjectivo e nome masculino
3. Relativo a ou natural ou habitante da ilha das Flores. = FLORENSE
"florentino", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/florentino [consultado em 02-04-2021].
Caro Luís Graça,
Conheci aquela “Querida Isabel” quando fui gozar as minhas férias de mobilização na ilhas das Flores, a minha terra Natal, no mês de Novembro de 1970. Foi nessa altura que a convidei para madrinha de guerra. O resto é história…
É verdade, os naturais da ilha das Flores são conhecidos popularmente por “florentinos”. Alguns, muito poucos, usam o termo “florenses”, a designação correcta de identificação dos naturais daquela ilha.
Abraço transatlântico.
José Câmara
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