domingo, 5 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24824: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (18): a taberna em meio rural (António Eduardo Ferreira, 1950-2023, Moleanos, Alcobaça)



Fado (1910),  quadro a óleo sobre tela, de José Malhoa (1855–1933). Museu de Lisboa. Imagem do domínio público. Cortesia da Wikimedia Commons.


1. Das coisas do passado, do tempo da nossa infància, falta ainda falar de lugares de "socialização" como a igreja e a escola... mas também da "rua" (onde se brincava), sem esquecer a taberna, tanto em meio rural como urbano,  se bem que fosse um lugar "interdito" aos putos: só se lá ia para ir chamar o pai, ou comprar um quartilho de vinho, nomeadamente nos meios rurais ou nas pequenas vilas de província. Eram  em geral espaços públicos esconsos, acanhados, sujos e mal iluminados. 

 Etimologicamente, "taberna" vem do latim "taberna", do grego ταβέρνα (que significa "abrigo" ou "oficina"). Tanto nos meios rurais como citadinos, tinha uma função importante não só para efeitos de consumo (e venda) de bebidas alcoolócias (com destaque para o vinho, a copo) e ainda do  petisco,  bem como local de convívio, troca de informação, notícias, ideias, etc. 

A história do fado (vd. imagem acima), por exemplo,  é indissociável das tabernas que existiam nos bairros populares nas zonas ribeirinhas de Lisboa, ao longo do séc.XIX até aos anos 70 (e também das "hortas", " fora de portas", já na zona saloia, que começava em Benfica,  e onde os alfacinhas (operários, marçanos,  pequeno funcionalismo público, etc. )  iam aos "comes & bebes",  sábado à noite, em geral em família ou em grupo  com direito a "fados e guitarradas".

Ainda frequentei, como estudante e como investigador, no àmbito da licenciatura em sociologia, a "Pérola da Atalaia", uma modesta taberna, para não dfizer "tasca", sita na Rua da Atalaia, Bairro Alto, Lisboa, que hoje já não existe. Tinha meia dúzia de meses (se tanto),   com  tampos de mármore (fáceis de lavar com um pano molhado), e bancos, e um cheiro típico, a fritos, vinho tinto e lexívia...

Fiz parte, no final dos anos 70, de uma vasta equipa de alunos de sociologia, dirigida pelo antropólogo Joaquim Pais de Brito (ex-director do Museu Nacional de Etnologia), que fez a primeira abordagem séria, académica, com rigor científico, do fado enquanto "canção popular urbana de Lisboa"... Eu e a minha equipa interessámo-nos pelo chamado "fado vadio", amador, espontàneo,  que ainda se cantava e tocava, na época, no Bairro Alto.  Procurávamos sobretudo registar letras,  personagens, falas, ambientes, etc.

As "casas de fado" (desdeva II Guerra Mundial  para "turista"...) têm a sua origem na taberna lisboeta... Foi o laboratório da canção popular urbana que, ao longo da sua história de dois séculos, e em termos político-ideológicos, foi tudo, a avaliar pelo conteúdo das suas nas letras, a tal ponto que se pode dizer que há um fado liberal, miguelista, marialva, monárquico, republicano, anarcossindicalista, socialista, comunista, fascista, progressista...  O fado é a "ganga da história"... 

António Ferro e o Secretariado Nacional de Propaganda (SNP), depois SNI, no Estado Novo, quiseram fazer do fado "uma canção nacional"... O mesmo aconteceu ao flamenco (em Espanha), e ao tango (na Argentina). Enfim, houve uma apropriação digamos "societal" de uma forma de expressão musical popular, que na origem não era só "cantada", mas também "dançada" e "batida", e estava ligada, socioantropologicamente falando, a estratos sociais marginalizados.

Muito aprendi, nessa altura, com o meu mestre e amigo Joaquim Pais de Brito, pioneiro na abordagem socioantropológica do fado e hoje talvez injustamente esquecido... Quando fui a um entrevista de admissão como docente à Escola Nacional de Saúde Pública fui aconselhado a omitir, do meu currículo, os muitos fins de tarde passados na "Princesa da Atalaia"... (Ainda havia prostituição de rua nessa altura, e a saúde pública dava-se mal com estes lugares  social e culturalmente estigmatizados e marginalizados, na época).

2. Mas vamos ao que interessa: a taberna, em pequenas terras do interior do nosso querido Portugal, como Molianios (ou Moleanos), Alcobaça (hoje famosa pelo seu calcário, que é énico e se chama justamente Moleanos). 

Nas tabernas de Moleanos  provavelmente nunca se cantou o fado, a não ser muito esporadicamente. (No baixo Alentejo, a taberna, sim,  era o local por excelència do "cante".) 

A evoção da taberna em meio rural (que nada tem a ver com o fado, "canção popular urbana" nem com a iconica pintura do José Malhoa que reproduzimos acima ...) é feita aqui pelo nosso saudoso camarada António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º  cabo condutor auto, CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74).

Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. Lutou quase 20 anos, desde 2004, contra um cancro. Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014). No nosso blogue é autor das séries O tempo que ninguém queria e Pedaços de um tempo,



A taberna na minha aldeia de Moleanos nos anos 50

por António Eduardo Ferreira


Recuando no tempo, a conversa, hoje, é sobre as tabernas que existiam na aldeia de Molianos ou Moleanos, segundo o topónimo oficialpor volta do ano de 1950 do século passado, e aquilo que elas representavam na vida das pessoas de então. (*)

Por essa altura, e ainda durante mais alguns ano, foram as tabernas os locais onde os homens se juntavam ao domingo, assim como nos dias santos, ou no inverno quando não era possível trabalhar nas terras.

Durante o tempo que estavam nas tabernas, eles, para além de muita conversa, aproveitavam para beberem uns copos do tinto e também do branco, ainda, que, por aqui, fossem poucos o que trocavam o tinto pelo branco. O bagaço também fazia parte das bebidas que eles consumiam. Outras havia que não faziam parte dos seus hábitos: a cerveja, a gasosa, a laranjada e ainda o pirolito que, entretanto, acabou!... 

Para beberem vinho, algumas vezes, nem necessitavam de copo, bebiam todos pela mesma garrafa, "a olho",  como naquele tempo por aqui se dizia.

As tabernas, para além das bebidas… eram também o local onde se vendia quase tudo que as pessoas necessitavam para o dia a dia: o açúcar, o café (para fazer na cafeteira), a massa, o arroz, o colorau, o petróleo, o bacalhau, o sebo para as botas, entre muitas outras coisas. 
Noutras sítios também se chamava "venda" à taberna onde se ofereciam, para venda, além de vinho e comida,  artigos de mercearia; topónimos como Venda das Raparigas podem ter na sua origem um destes estabelecimentos à beira da estrada; e nas feiras a taberna era a "tenda". ]

Um pouco mais tarde, em algumas, até comprimidos para a constipação... vendiam, eram uma espécie de minimercado da época.

Naquele tempo, na aldeia de Molianos, as mulheres não frequentavam as tabernas, a não ser para irem fazer as compras e logo regressavam a casa. Diziam os homens que as tabernas não eram para as mulheres. Mas não se pense que algumas, mesmo sem estarem na taberna, de vez em quando, não apanhavam também a sua piela de tal tamanho... que as fazia ziguezaguear, não conseguindo passar despercebidas junto das pessoas com quem se cruzavam.

Por aquela altura não existiam na aldeia coletividades de desporto, cutura e recreio ou outros espaços públicos onde os homens se pudessem juntar, a não ser nas tabernas, ou no tempo da apanha da azeitona em que também os lagares eram sítios onde muitos se encontravam no fim do dia. Apesar de ser no inverno, os lagares eram locais onde existia um ambiente confortável a que eles não estavam habituados, um espaço aquecido… e com boa iluminação, coisa inexistente nas casas da aldeia.

Naquele tempo, as pessoas não saíam para fora da terra a não ser para trabalhar, algumas vezes para muito longe. Os transportes públicos apenas havia à segunda-feira, para Alcobaça, por ser o dia em que lá tinha lugar o mercado. Os transportes particulares também não haviam. 

Apesar de existirem muitos homens na aldeia, apenas, quatro ou cinco, possuíam uma bicicleta. O transporte mais utilizado pelas pessoas para se deslocarem, não só para o campo, mas também para ir às compras, à sede do concelho, eram os burros, animais esses que havia muitos na aldeia.

Só à segunda-feira, havia a camioneta da carreira como as pessoas lhe chamavam, mas mesmo assim nem todos a utilizavam, eram muitos os que faziam os dez quilómetros para cada lado a pé, para pouparem o valor do bilhete… que era pouco, mas necessário para ajudar nas compras que iam fazer, o pouco dinheiro de que dispunham a isso os obrigava.

Se as tabernas durante algum tempo era o sítio onde os homens se encontravam quando não era possível trabalhar, também havia algumas épocas em que os frequentadores eram poucos. Isso acontecia, quando quase todos os homens e rapazes, alguns com doze ou treze anos, saíam da aldeia para irem trabalhar para as vindimas para a região saloia, assim como para outros serviços, em particular, para a zona de Lisboa.

Quando regressavam à terra voltava a ser grande o ajuntamento nas tabernas aos domingos à tarde, onde a bebida e as conversas à mistura eram sempre muitas. 

Por vezes, apareciam por lá poetas populares com jeito para cantar ao desafio o que era sempre do agrado de todos. 

Quando o álcool já era quem mais ordenava, por dá cá aquela palha, algumas vezes, aconteciam cenas de pancadaria, nada que passado alguns dias os contendores, por iniciativa própria ou com a ajuda de alguém, não resolvessem fazendo as pazes. Chegava a acontecer a alguns ficarem mesmo amigos.

As tabernas, para além do já referido… desempenhavam também uma "função social": não davam nada a ninguém, mas tornavam possível, sem aumento de preço, a algumas pessoas,  adquirir bens essenciais para o dia a dia das famílias, quase sempre numerosas, permitindo-lhe comprar fiado com a promessa de vir pagar quando tivessem dinheiro. Se assim não fosse, as pessoas não podiam comprar e as dificuldades que eram sempre muitas, seriam ainda mais. (...) (*)

(Seleção / revisão e fixação de texto / negrit0s / parènteses retos: LG)
_________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 3 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24819: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (17): O Barroso que não era(é) só a 'carne barrosã' DOP: o comunitarismo agropastoril, segundo o Padre Fontes (1977) - II (e última) Parte: tudo era de todos quando a necessidade oprimia
 

4 comentários:

Valdemar Silva disse...

Curiosidades do "Fado", grande ( 150cm X 185cm)quadro de Malhoa é uma obra de 1909, de propriedade particular em exposição no Museu do Fado, em Lisboa
No quadro é retratado Amâncio, um conhecido marginal, ou "fadista" como se chamava naquele tempo, da Mouraria e também seria um pintor finório, e Adelaide, mulher de má vida, conhecida por Adelaide da Facada, por causa de uma cicatriz na cara.
Para acabar o quadro, Malhoa teve de ir ao Governo Civil e arranjar maneira para libertar da cela o Amâncio, e, depois, teve de conter o temperamento do "pintor" de Mouraria quando se virava a Adelaide.
Sem Amâncio por perto, como quando estava preso, por exemplo, Malhoa desnudava os ombros e até um seio a Adelaide, mas ciumeira de Amâncio fora levando o artista a subir a alça da camisola a Adelaide.
Um grande quadro que por causa do 'credo que pouca vergonha', com o Rei D. Manuel II a intervir para alterações na pintura, foi mal recebido em Portugal.
Só em 1915, vencendo o Grand Prize em S. Francisco EUA, no evento da abertura do Canal do Panamá passou a ser uma grande obra da pintura portuguesa.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

No centro e norte do país, a taberna tende a chamar-se "venda"...

Cito o José Teixeira, no seu último livro "O Universo que Habita em Nós: Estórias com Vida" (Lisboa, Astrolábio, 2023, 226 pp.):

(...) "Gostava do seu copito e ao domingo juntava-se aos amigos no terreiro da venda a jogar ao chinquilho" (..) (pág.222) ("Morreu, morreu o cobrador!").

(...) "Por vezes era o moço de recados lá de casa.
- Miguelito, vai à venda do Carvalho buscar um quartilho de azeite - ordenava-lhe a avó". (pág. 45) ("O Miguelito")

Anónimo disse...



Luís gostei muito do que escreves sobre as tabernas urbanas e rurais e daquilo que escreveu o saudoso camarada e amigo António Ferreira sobre as tabernas de Moleanos.. Se me permitires vou escrever um texto sobre as tabernas da minha aldeia com características semelhantes e um pouco diferentes, de que ouvi falar, que conheci e frequentei.
Abraço

Francisco Baptista

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Força, Francisco!... É uma boa forma de carregares as baterias!... Faz-te bem a ti e a nós...E à malta de Brunhoso! ... Ab, Luis