segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24826: Notas de leitura (1631): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Insiste-se que a entrevista concedida por Carlos de Matos Gomes se mantém como peça modelar para analisar o processo de descolonização da Guiné a partir da formação do Movimento dos Capitães e depois do MFA na região, o entrevistado explica as razões por que se ofereceu para ir para o Batalhão dos Comandos africanos, pretendia conhecer a estratégia spinolista que lhe estava subjacente no contexto da africanização da guerra e numa lógica conducente à possibilidade de algo com o PAIGC. 

Fala-se da rotina das operações, da complexidade dos problemas pluriétnicos dentro desta tropa de elite, retoma-se a génese e a estruturação do MFA, esclarece que havia uma demarcação entre um grupo contestatário de que ele fazia parte e a linha spinolista, muito pouco presente depois de Spínola sair da Guiné, em agosto de 1973; fala-se do que aconteceu em 26 de abril e da descolonização que envolveu os Comandos e os Fuzileiros. É sem margem para dúvidas um documento que merece ser compulsado com diferentes testemunhos de Carlos Fabião e com o livro de Sales Golias, sobre esta temática.

Um abraço do
Mário



Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Li pela primeira vez este texto que vem integrado na obra Vozes de Abril na Descolonização, com organização de Ana Mouta Faria e Jorge Martins, uma edição do CEHC – IUL, 2014, provavelmente no ano seguinte, e fiz texto para o nosso blogue. Correu muita água debaixo das pontes, não se podia imaginar que a questão tivesse arrumada, é obrigatório que haja outras perspetivas sobre a descolonização da Guiné, mas o facto é que esta entrevista se mantém modelar e de indiscutível historicidade. 

Primeiro, porque este oficial do Exército não foi desmentido minimamente quanto ao processo organizativo na Guiné do Movimento dos Capitães/MFA; nenhuma opinião veio contrariar o que ele escreve sobre os acontecimentos do dia 26 de abril, fenómeno inédito comparativamente ao que se passou em Angola e Moçambique; e numa altura em que se retoma a questão polémica dos Comandos Africanos, com alardes de mentira descarada e de escamoteamento do rigor dos factos, até em pretensas teses de doutoramento, este oficial do Exército relembra tudo quanto se passou ao nível da desmobilização do Batalhão de Comandos Africanos e das duas unidades de Fuzileiros Africanos, preto no branco. Razões, parece-me, que justificam voltar ao texto da entrevista de Carlos de Matos Gomes.

Prosseguindo o teor da entrevista, e já contextualizado o tempo e o modo da génese da formação do Movimento dos Capitães e da MFA na Guiné, Carlos de Matos Gomes é questionado sobre o percurso de Marcelino da Mata, responde sem hesitações:

“O Marcelino da Mata é uma pessoa superiormente inteligente, uma pessoa informada, reage sempre em busca do seu interesse, sempre! Ele sabe que foi utilizado de determinada maneira, por determinadas pessoas, para fazer determinadas coisas, fê-las e foi, sempre, obtendo recompensas. Ele age, claramente, como um homem que sabe que está envolvido numa guerra que o ultrapassou, e vai procurar os aliados que lhe são mais convenientes em cada momento. Como era um homem superiormente inteligente e também corajoso, não tem as lealdades deles e a admiração e respeito é por aqueles que ele considera iguais ou superiores a ele. Por vezes, diaboliza-se o Marcelino da Mata, mas ele é exatamente igual aos comandantes de guerrilha, porque vem exatamente do mesmo sítio, tem as mesmas lógicas, os mesmos comportamentos”.

Desvela seguidamente os tipos de operações em que esteve envolvido, destaca a reocupação do Cantanhez, a ida às matas da Caboiana, a operação Ametista Real. A partir da retirada de Guileje quando o Batalhão de Comandos intervinha já era em situações críticas, afirma, tornava-se imperativo levar o batalhão inteiro. Era a resposta ao agravamento da situação militar, passar-se de operações com 50 homens para operações com várias centenas. Tece observações aos aspetos da etnicidade no recrutamento das tropas africanas, os Comandos e os Fuzileiros africanos tinham por base as milícias, os pelotões de caçadores, as companhias étnicas e caçadores locais.

“Havia tipos que chegavam aos Comandos já com vários anos de permanência, iam aprendendo, iam falando, ganhando uma consciência de militares portugueses que era a tentativa que nós fazíamos. Nós integrámo-nos nessa corrente de fazer o Estado através das Forças Armadas, isto aconteceu em quase todos os países africanos e era também a ideia do general Spínola”.

Os entrevistadores procuram apurar se as diferenças étnicas se esbatiam nessas unidades de elite, obrigatoriamente pluriétnicas, o entrevistado responde:

“Era uma gestão feita em cima do gume da navalha. Tivemos esse problema, mas o PAIGC também o teve e acabaram por se matar uns aos outros. Por exemplo, tínhamos o primeiro grande comandante de uma unidade de Comandos, o João Bacar Djaló, que era Fula. Fez exatamente esse percurso, foi comandante de milícias, foi depois militar e depois foi para os Comandos. O esquema de uma companhia de Comandos comandada por João Bacar Djaló tinha alguma coisa que ver com a organização militar portuguesa, com as Forças Armadas portuguesas, mas tinha muito que ver com a organização da sociedade islamizada.

Ele funcionava como comandante de Companhia, mas também como mestre, tinha um conjunto de discípulos que depois ia premiando. E como premiava? Promovia-os a furriel e depois promovia os furriéis a sargentos. Discípulos esses, que lhe pagavam, como se pagava na idade média, como nas corporações, e isso era assim em vários lados”
.

Depois de expor a sua visão sob a composição étnica existente no seio de batalhão de Comandos Africanos, e depois de recapitular a génese e a estruturação do MFA na Guiné, chegamos ao 25 de abril, as Forças Armadas na Guiné aderiram maciçamente:

“O 26 de abril estava previsto e pensado para, caso houvesse um problema grave aqui em Portugal, a ação de alternativa teria de ser na Guiné. Estou convencido de que, claramente, o general Spínola não estava interessado naquela ação na Guiné. Fizemo-lo sabendo isso, porque assim tornávamos irreversível o processo da descolonização e marcávamos uma posição no processo”.

E elenca as diligências efetuadas nas alterações dos Comandos, e abre espaço para a reflexão sobre as tropas africanas:

“A grande questão que se colocou logo desde o início era: há aqui dois exércitos. Há um exército africano da Força Africana de Spínola, que tinha um batalhão de comandos, as companhias africanas, as milícias, havia à volta de 12 mil homens e o PAIGC tinha menos. A questão era que estes homens não tinham perdido a guerra militarmente, combatiam de igual para igual. Eles, os nossos, não se sentiam, de modo nenhum, derrotados no campo de batalha. E nós, oficiais dos comandos – depois até fiquei como comandante – sabíamos disso e sabíamos que era muito difícil e seria sempre muito difícil estabelecer uma forma de convivência.

Eu penso que nos acordos, no Acordo de Argel está referida a situação dos militares e nós confiávamos que isso iria correr bem. Confiámos! Foi sempre dada a oportunidade a esses militares, principalmente aos quadros e aos tipos que tinham mais impacto, que tinham combatido mais anos contra o PAIGC de que, se quisessem, vir para Portugal. O que é curioso é que não optaram por isso e a mim não surpreendeu, porque sabia mesmo no Batalhão de Comandos, que era a elite das elites, 60 ou 70% daquela gente tinha contactos com pessoas do PAIGC”
.

Havia o entendimento entre os responsáveis portugueses e as principais figuras dos comandos africanos, que a convivência seria possível no futuro. E segue-se a conclusão dramática: 

“Daí que o processo trágico e dramático da eliminação destes homens, militares portugueses guineenses, penso eu, tenha sido uma fuga para a frente da elite dirigente do PAIGC. Esta elite vai encontrar sempre um inimigo externo para justificar as lutas pelo poder interno”

Foram o bode expiatório naquela tensão permanente entre cabo-verdianos e guinéus. O entrevistado recorda declarações de Luís Cabral que deplorava ter encontrado os cofres vazios, uma administração sem quadros, isto quando tivera oportunidade de negociar um período de coabitação com Portugal, até ganhar foros de autonomia, não quiseram, queriam ver-se livres da entidade colonial por pura ambição da chegada ao poder.

O Batalhão de Comandos foi extinto, ficara escrito que iriam ser reintegrados numas novas Forças Armadas, houve quem recusasse, caso do tenente Jamanca que foi pouco depois abatido.

E aqui se dá por concluído o essencial do texto da entrevista de Carlos de Matos Gomes a uma equipa de universitários que quiseram ouvir protagonistas que tinham estado na primeira linha no processo da descolonização nos 3 teatros africanos.


Carlos de Matos Gomes
Entrada do aquartelamento do Batalhão de Comandos da Guiné
Insígnia do Destacamento de Fuzileiros Especiais 21, a que pertencia Domingos Demba [Ensá] Djassi, 2.º Sargento
2.º Sargento Domingos Djassi
Capitão João Bacar Djaló em Catió, ainda tenente. Foi o 1.º comandante da 1.ª Companhia de Comandos Africanos
______________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24820: Notas de leitura (1630): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

9 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Hoje o posicionamento político de Carlos de Matos Gomes é bem conhecido. Está no seu pleníssimo direito. Mas, não é o meu. Não é pelas rússias que invadem e matam na Ucrânia, pelo anti-americanismo primário que eu me movimento.
Aprendi alguma coisa com seis anos de vida num país do socialismo real. Adiante. Cito algumas frases do Carlos Matos Gomes. Aí vai:
“Tivemos esse problema, mas o PAIGC também o teve e acabaram por se matar uns aos outros.”
“A grande questão que se colocou logo desde o início era: há aqui dois exércitos. Há um exército africano da Força Africana de Spínola, que tinha um batalhão de comandos, as companhias africanas, as milícias, havia à volta de 12 mil homens e o PAIGC tinha menos. A questão era que estes homens não tinham perdido a guerra militarmente, combatiam de igual para igual. Eles, os nossos, não se sentiam, de modo nenhum, derrotados no campo de batalha. E nós, oficiais dos comandos – depois até fiquei como comandante – sabíamos disso e sabíamos que era muito difícil e seria sempre muito difícil estabelecer uma forma de convivência.
“Daí que o processo trágico e dramático da eliminação destes homens, militares portugueses guineenses, penso eu, tenha sido uma fuga para a frente da elite dirigente do PAIGC. Esta elite vai encontrar sempre um inimigo externo para justificar as lutas pelo poder interno”
Curioso como Carlos Matos Gomes reconhece que os grandes anti-colonialistas da Guiné acabaram por se matar unas aos outos, reconhece a superioridade militar das Nossas Tropas na Guiné e que “estes homens não haviam perdido a guerra militarmente” (tese completamente oposta à do Beja Santos, que combati neste blogue, lutando pela verdade histórica, há anos atrás).
Acrescento que o assassínio, a eliminação de centenas e centenas de militares comandos e milícias africanas que haviam combatido ao lado dos portugueses tiveram praticamente um vergonhoso lavar de mãos por parte de muitos militares esquerdistas do 25 de Abril. A tese da derrota militar na Guiné justificou o abandono precipitado dos africanos, para o bem e para o mal, nossos companheiros de armas.

Abraço,
António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

"declarações de Luís Cabral que deplorava ter encontrado os cofres vazios, uma administração sem quadros", quer dizer, o aprendiz de colonialista, Luis, irmão de Amílcar, estaria à espera de uma passadeira vermelha e um abre alas com banda de música.

Depois de andarem 13 anos a dizer que não precisavam de nada do colon, que nós sabemos governar melhor e os nossos amigos vão-nos ajudar, admira a desilusão de Luís Cabral, com a debandada dos funcionários colonialistas.

De facto até parecia fácil governar as colónias portuguesas para quem conhecia bem aquela "paz colonial", por dentro e por fora, com a colaboração de funcionários como Luis Cabral, Amílcar Cabral, Aristides Pereira...em geral.

Para alguns correu bem, outros nem tanto.

Joaquim Luis Fernandes disse...

TRISTEZA!...
O que se passou com a dita descolonização da Guiné (que o não foi, antes abandono) foi muito grave!
Que os políticos que assinaram os acordos, talvez desconhecendo as realidades, tomassem decisões erradas, já seria grave, agora as altas chefias militares, que os sancionaram?... foi gravíssimo!
Todos eles sabiam das mentiras em que assentava o poder político e diplomático do PAIGC. Quanto ao poder em armas, também sabiam que ele assentava no poder militar soviético, na sua estratégia de dilatar a influência política e militar naquela região da Costa Ocidental de África.

Será que neste quadro, de boa fé, se poderia acreditar nos dirigentes do PAIGC? Estava claro o que pretendiam para a Guiné Bissau: instaurar um regime filiado na União Soviética, como se veio a verificar; e tudo o que aconteceu depois foi disso consequência.

Quem assim decidiu, deve assumir perante a História a responsabilidade pelas consequências dos seus atos.

E não foram só os militares do Batalhão de Comandos Africanos e milícias que foram fuzilados pelo poder do PAIGC, no pós independência. Foram também barbaramente fuzilados sem julgamento outros militares e civis.

Estou a pensar no 1º sargento enfermeiro, João Batista, que conheci no Depósito de Adidos, onde prestava serviço, excelente homem e militar exemplar, que vim a saber numa publicação neste Blog, ter sido mais uma vítima dos algozes do poder em Bissau. Porquê?...Aqui deixo a minha homenagem: Que descanse em paz.

Manuel Luís Lomba disse...

O abandono da Guiné é uma vergonha "histórica nacional" e o MFA é o seu principal protagonista. Uma nódoa caída no melhor pano das nossas Forças Armadas, o Exército e a Marinha - a Força Aérea desempenhou-se neutra. Tendo-os sujeitado a 13 anos de guerra "terrorista", os militares olharam para o seu umbigo e legaram desgraça aos guineenses, não pela sua substância - os povos têm direito à sua autodeterminação e à escolha dos seus líderes -, mas pelo formato da sua medíocre descolonização que auto consideraram exemplar.

O MFA tem feito a sua catarse, lembro as declarações de Melo Antunes, Otelo Saraiva de Carvalho, Vasco Lourenço e ora de Carlos Matos Gomes, etc. - exemplaridade da sua honestidade pessoal.

O "plano A" era o golpe na Metrópole do Fim-Regime; caso este falhasse, a luta continuava com o "plano B", seria o golpe de Bissau. Conhecedor do sucesso do golpe na Europa, o MFA de Bissau fez o seu próprio golpe, à revelia da autoridade nacional prontamente restabelecida. O "golpe de Bissau" carece de exemplaridade e ajoelhou ante o PAIGC, nada recomendável visto pelo prisma da liberdade.

Os militares do QP, os cidadãos que escolheram a profissão da guerra, não convencem as dezenas de milhares de ex-combatentes do Recrutamento geral e do Quadro complementar da iminência da derrota na Guiné - ditada pela intervenção de uma aviação tão invisível, que não existia.

E no respeitante ao destino dos militares portugueses africanos, a sua execução por "traição à pátria" fora explicitada por Amílcar Cabral "constituição" do I Congresso de Cassacá. E o expediente de desarmar os Comandos africanos, retirando-lhes as armas em armários-cacifos durante um fim de semana não tem nada de exemplar.










Valdemar Silva disse...

Claro que todos foram bem intencionados, e não muito virados para o que poderia muito bem
acontecer: acabando a guerra Comandos, Fuzileiros e Milicias já não não eram precisos para combater.

Valdemar Queiroz

antonio graça de abreu disse...

Então, os camaradas do costume, militantes da sachola, sempre dispostos a acertar-me com a enxada no tutano, porque eu não concordo com os panegíricos do Mário Beja Santos e apêndices, desta vez, com este meu fundamentado comentário, nem replicaram, meteram a sachola no saco...
Vamo-nos conhecendo.

Abraço,

António Graça de Abreu

paulo santiago disse...

O AGA,é provocador,ficou amuado porque não lhe "amandaram" com a enxada no tutano.
Porra!! Ataquem-no!!

Paulo Santiago

PS-o AGA fala da Rússia e da Ucrania talvez ficasse mais esclarecido se lê-se o que escreve o
Miguel Castelo Branco

antonio graça de abreu disse...

Vá lá, vá lá, Paulo Santiago, tu és um homem de luta, vais a todas, jogas menos mal, até mesmo com bola de rugby ou de páraquedas. Tens convicções diferentes das minhas, ainda bem, lês muito o Miguel Castelo Branco, eu, mais humilde, fico-me pelo Camilo Castelo Branco.

Um abraço do "provocador amuado"

António Graça de Abreu

paulo santiago disse...

Respondendo ao Graça de Abreu,em modos facebokianos
-Gostei,abraço

Paulo Santiago