sábado, 28 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25989: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (10): evacuado numa maca, no Dakota, para Lisboa, com mais 4 feridos graves, ao lado de umas senhoras de "altas patentes", que não nos nos ligaram puto...

 

Interior de um Douglas C-47 Skytrain ou Dakota. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikimedia Commons.



1. Estamos a reproduzir alguns excertos do melhor que o A. Marques Lopes escreveu, nomeadamennte no seu livro de memórias "Cabra Cega" (*).

Seguimos o texto, respeitando a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 9 de agosto de 2019.
  
Aqui a narrativa é já feita na 1ª pessoa do singular, assumindo o autor que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego", ou seja, o alferes Lopes (pp.  439-442).



Capa do livro "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial", de João Gaspar Carrasqueira (pseudónimo do nosso camarada A. Marques Lopes) (Lisboa, Chiado Editora, 2015,  582 pp. ISBN: 978-989-51-3510-3, Colecção: Bíos, Género: Biografia).



Evacuado numa maca, no Dakota, para Lisboa, com mais 4 feridos  graves, ao lado de umas senhoras de "altas patentes", que não nos nos ligaram puto... 
 

por A. Marques Lopes (1944-2024)


Três dias depois de ter chegado ao hospital  [HM 241, em Bissau ], passou pela minha cama um velho amigo e conhecido. Era o Herculano Carvalho, do mesmo pelotão que eu nos primeiros meses do COM.

− O que é que te aconteceu?  −  perguntou-me.

Expliquei-lhe que tinha ido ao ar com uma mina. O Herculano disse-me que estava ali porque tinham descoberto que era hemofílico e que no dia seguinte seria evacuado para a metrópole.

 E não descobriram isso logo quando foste para os comandos?

 − Parece que não sabes como é. Alguma vez os gajos se preocupam com isso? Lembras-te bem que, em Mafra, além da injeção cavalar, que diziam dar para todos os males, não se preocupavam em saber mais nada. Menos, é claro, em ver aqueles que tinham cunhas para os serviços auxiliares. Serves para o que queremos e toca a andar, era assim.

 
− É verdade, eu sei bem. Mas como é que descobriram isso agora?

−  Por acaso, foi sorte. Tive um pequeno ferimento aqui na perna durante uma operação  
− arregaçou um bocado a calça e mostrou a perna direita ligada.  − O enfermeiro viu que o sangue não estancava e topou logo.

A conversa derivou. Contei-lhe a história toda da mina e por onde andara e ele contou-me do Cantanhez onde acabara por ser ferido.

Ele foi no dia seguinte e eu foi no fim dessa semana evacuado para o HMP , para Lisboa.

Fui só com as calças e uma camisa, era o que tinha quando rebentara a mina. Nunca me lembrara quando estava a comprimidos mas ocorreu-me quando estava a entrar para o Dakota.

− Eu tinha uma mala…

 
− Não há mala nenhuma  −  disse-me um dos pilotos.

Estava a ver. O pessoal da companhia nunca mais lhe tinha ligado depois daquilo. Podia ter-lhes exigido que lhe mandassem a mala que tinha debaixo da cama lá do quarto. Eram coisas pessoais que lá estavam mas era sobretudo o livro da escola do PAIGC e a  Kalashnikov da professora que queria ter. Eram recordações minhas que iriam ser agarradas por um outro qualquer. Fiquei lixado.

Mais fiquei quando já estava dentro do avião. Iam também outros feridos. Os bancos que estavam à frente, logo após a cabina dos pilotos, foram ocupados por umas senhoras, não soube quem eram, mas os cinco feridos foram esticados em macas no corredor. Ainda disse que não estava assim tão mal e que podia ir sentado. Que não, disseram-me, tinha de ir numa maca. Quando o avião já estava alto,  comecei a deitar sangue pelos ouvidos, era o meu ferimento principal.

Ninguém me 
ligou, teve que se ir limpando com um lenço.

As mulheres cavaquearam durante a viagem. Por entre os roncos do avião uma dizia que o meu marido é isto, outra que o marido tinha feito aquilo, outra que o dela comandava o batalhão tal, uma loura gabava-se de o marido ser amigo do governador [gen Arnaldo Schulz].

Eu não ouvia quase nada, ia limpando o sangue que me pingava dos ouvidos. O que estava ao meu lado, o que tinha ficado sem uma perna numa armadilha, é que comentava o que elas diziam. Cada um deles também disse porque é que vinha ali. Esforcei-me por ouvi-los. Era o que tinha caído na armadilha, o que estava mais perto de mim, um que tinha apanhado uma roquetada e estava todo ligado, um que tinha apanhado bilharziose, um que tinha apanhado uma rajada que lhe fodera um pulmão e o quinto ia com uma hepatite aguda. No meio deles, vi que ainda era o que estava melhor.

Contavam o seu caso em voz alta mas as senhoras nunca viraram a cara, não se perturbaram. Aquele era outro mundo, estranho àquele das boas relações em que elas se moviam. Ainda pensei que lhes ficaria bem chegaram-se ao pé das macas para saber o que cada um tinha e desejarem melhoras. Mas nem isso, não se interessaram puto. Elas, senhoras das altas patentes, iam agora meter-se com a soldadesca... Nem pensar, até parecia mal ao seu estatuto.

Ao fim de cinco ou seis horas, não soube bem, não me deu para contar o tempo, chegámos ao aeroporto militar de Las Palmas. Foi o que disse um piloto, e que quem quisesse podia sair para descontrair.

– Empresta-me a tua perna 
  rosnou o que caíra na armadilha.

Deles só eu é que saí. As mulheres também, mas não soube para onde foram. Estava cheio de fome porque não lhes tinham dado nada, nem as queridas rações de combate. Vi vários militares e olhei para uma porta que me pareceu a entrada para um bar. Fui até lá e entrei.

Olharam para mim mas ninguém pareceu espantado, já deviam estar habituados a estas visitas. Pedi uma cerveja e uma sandes. Devorei-as, era a fome. No fim fiquei atrapalhado porque dei que não tinha dinheiro. Nem escudos, nem pesos da Guiné, muito menos pesetas. 

Baixei a cabeça e fui-me afastando devagar até à porta. Ninguém reparou em mim, pareceram distraídos. Já fora, zarpei o mais rápido que pude para o Dakota. Já esticado na maca e enquanto o avião arrancava para Lisboa, ainda pensava, na dúvida, se fora eu que tinha sido esperto ou se tinham sido eles que, compassivos, me deixaram sair sem me agarrarem para pagar.

Ao fim de não soube quantas horas chegámos a Figo Maduro. Os meus pais e a minha irmã, bem como familiares dos outros feridos, estavam lá à espera. Só lhes tinham dito que vinham evacuados, não como vinham. 

Expetativa geral, angústia nos olhares e corações de os poder ver sem pernas ou sem braços, cegos ou meio mortos. Foram lágrimas e abraços aos que conseguiam estar de pé, beijos e mais lágrimas para os que continuavam nas macas. Os meus ficaram contentes por me verem de pé. Durou pouco tempo o encontro porque nos meteram, quase logo, em ambulâncias em direcção à Estrela.

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)
______________

Nota do editor:

7 comentários:

Anónimo disse...


João Crisóstomo
Não importa quantas vezes deparo com relatos assim, não dá para "sentir", sofrer menos pela repetição…
Como foi possível, como era possível?!... Não sei dizer mais nada. Sei que outros, com mais facilidade de expressão do que eu, não deixarão de manifestar e partilhar os seus sentimentos de revolta e tristeza. Nesta revolta e tristeza o meu abraçø de solidariedade. Não se deixem ir agora abaixo meus caros. Força, e em frente.
João Crisóstomo Nova Iorque

Tabanca Grande Luís Graça disse...

(...) "Contavam o seu caso em voz alta mas as senhoras nunca viraram a cara, não se perturbaram. Aquele era outro mundo, estranho àquele das boas relações em que elas se moviam. Ainda pensei que lhes ficaria bem chegaram-se ao pé das macas para saber o que cada um tinha e desejarem melhoras. Mas nem isso, não se interessaram puto. Elas, senhoras das altas patentes, iam agora meter-se com a soldadesca... Nem pensar, até parecia mal ao seu estatuto." (...)

Agosto de 1967... Era governador e com-chefe o gen Arnaldo Schulz...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não há muitos relatos destes, na primeira pessoa do singular, aqui no blogue, de camaradas nossos que foram evacuados de Bissau para Lisboa, para o HMP... Imagino o desconforto, o sofrimento, a raiva, e todo uma série de sentimentos contraditórios... Era uma longa, penosa, viagem de muitas horas (com escalata técnica num país estrangeiro, as Canárias eram espanholas...). Sem acompanhamento sequer de uma enfermeira...Com umas tantas senhoras que apanharam boleia da FAP, incapazes de uma palavra, um gesto de compaixão para com aqueles cinco desgraçados... que ali íam em macas. (A velocidade de cruzeiro desta aeroanave da II Guerra Mundial, o Douglas C-57 Dakota, não devia ultrapassar os 260 km de velocidade de cruzeiro: os camaradas da FAP podem corrigir...).

Foi uma "guerra baratinha", amigos e camaradas... E sorte daqueles que não morreram nem deixaram lá uma "pata"...

Anónimo disse...

Relato nu e cru do Marques Lopes. Gostei.
Quanto às "senhoras militarizadas", há que ter presente que Bissau não era, de longe, um espaço que permitisse a "vida social" que existiu em Lourenço Marques ou Luanda nesses tempos. Nem praia tinha...
Alberto Branquinho

Eduardo Estrela disse...

A fina flor do entulho no seu melhor!!!
E viajavam à borla, à boleia dos estropiados duma guerra arquitectada pelos seus mal elaborados maridos.
E ainda há quem teça hossanas aquela época .
Palavras para quê!?
Abraço fraterno
Eduardo Estrela

Valdemar Silva disse...

A propósito de "guerra baratinha", em 1965 apareceram dois marinheiros dos EUA às portas do Café Império, em Lisboa, que provavelmente teriam subido a Av. Alm. Reis desde a Rua da Palma, ao Rossio, e seguiram até onde acabaria.
Eles pertenciam ao porta aviões USA que estava no Tejo, e eu mais um amigo perguntamos 'are lost ?' começando uma conversa.
Estava em pleno a guerra no Vietname e a conversa foi nessa base com um aparte 'mas vocês lá ganham bem' aqui um soldado ganha 90$00. Eles perceberam 90 mil e ficaram admirados e quando rectificamos para cerca de 4 dólares/mês não acreditaram, acabou a conversa e foram fotografar a Fonte Luminosa.
Valdemar Queiroz


Tabanca Grande Luís Graça disse...

Nem um chocolatinho, uma bolacha, uma ração de combate para uma viagem tão longa!... Nem um enfermeiro auxiliar para acompanhar os feridos! ...Dá que pensar
... E éramos nós a fina flor da Nação, obrigava-nos o tenente Esteves a gritar durante os crosses em Tavira..

Pergunta ingénua: será as coisas melhoraram no tempo do Spínola ?