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sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27420: (In)citações (281): Praxes assassinas... para "maçarico", "periquito" ou "checa" se começar a habituar...


Angola > Moxico >Léua  > c. 1970 > O alf mil pqdt Jaime Siva com uma criança da aldeia.


Foto (e legenda): © Jaime Bonifácio Marques da Silva (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O episódio que o Jaime Silva partilha connosco (*),  é forte, tenso e revelador da dureza mas  também da profunda ambiguidade moral, que marcaram muitos momentos da guerra colonial, vividos por nós.  Nem todos, por outro lado, teriam coragem de o contar, em público, em livro. 

Há vários aspetos que vale a pena comentar, e que são comuns às experiências por que passámos no CTIG.

Recorde-se que o  Jaime Silva. de rendição individual, era comandante, "maçarico", de um pelotão da 1ª CCP/ BCP 21 (Angola, 1970/72). E que na Op Broca (c. 20-29 de maio de 1970), no norte de Angola, tem o seu "batismo de fogo". O seu pelotão já tinha experiêwncia operacional, e pôde contar com a dois bons graduados, o 1º cabo Onofre e srgt Mirra.

(i) O choque do “batismo de fogo”

O  Jaime Silva descreve algo comum entre jovens oficiais enviados para cenários de guerra: a passagem abrupta da formação teórica (neste caso, recebida na EPI, em Mafra, e depois em Tancos, no RCP) para a realidade pura e dura  da guerra de guerrilha e contraguerrilha (fosse em Angola, na Guiné ou em Moçambique),

O “maçarico” (em Angola), o " periquito" (na Guiné) ou o "checa" (em Moçambique) era confrontado de imediato com a imprevisibilidade do IN,   e a brutalidade do combate num terreno que lhe era desfavorável.  E isso marcava-o para sempre. O dia e o local do batismo de fogo.

(ii) O contraste entre comportamentos

A narrativa mostra três tipos de comportamento operacional num momento de grande tensão:

  • serenidade, a coragem e a experiência  do 1º cabo Onofre, que representa o militar que já tem traquejo  e sabe agir com sangue-frio:  

(...) "E 'vejo'.,  ainda hoje, o local e o momento em que um guerrilheiro armado progride na nossa direção e faço sinal ao cabo Onofre, que se encontrava à minha frente, para estar atento. Este correu na direção… do combatente e capturou-o, à mão! " (...)
  • lucidez e a maturidade do sargento Mirra, que confirma o papel fundamental dos graduados na estabilidade dos pelotões:  

"(...) Com efeito, os dois pelotões conseguiram desalojar os guerrilheiros e chegar ao paiol. Nunca vi tanto material durante a minha comissão em Angola: armas, granadas, outro material de guerra, medicamentos, material de apoio escolar, etc.! " (...)

(...) " Você é doido, meu alferes. Primeiro – ordena o sargento Mirra – saia de trás dessa cubata e proteja-se nessa árvore grossa que se encontra ao seu lado. Não vê as balas a saltar à sua frente? Saia daí e depressa! Depois, agarre no rádio e peça ajuda ao 1.º pelotão que se encontra na zona para nos vir ajudar no assalto". (...)
  • e, por fim,  a conduta chocante do tenente miliciano, comandante de outro pelotão da 1ª CCP, cuja atitude ultrapassa qualquer ética militar,  revelando como, em cenários de guerra, alguns indivíduos cruzavam fronteiras morais sob o pretexto da “praxia” ou da necessidade de endurecer os mais novos, os "maçaricos", liquidando crua e friamente um prisioneiro indefeso:


 "(...)  Face ao guerrilheiro sentado à nossa frente, rapa de um sabre de uma espingarda Simonov e, sem que nenhum dos três militares presentes (eu, o comandante de companhia e um soldado) esperássemos, num ápice, dá uma “saibrada”  no coração do guerrilheiro e, depois, outra nos temporais, matando-o a sangue frio.  Estupefacto, o comandante de companhia repreende-o daquele ato ignóbil e cobarde. Como se tudo aquilo fosse o mais natural, ele respondeu: – É para praxar, aqui, o alferes maçarico. É para ele aprender. Tem de se habituar." (...)

(iii) “Habituação": uma lógica perversa

A ideia de que um ato de extrema violência como aquele serviria como “lição” para um oficial recém-chegado, "maçraico", e logo ali "praxado".  mostra bem como a guerra pode distorcer valores, normalizar atrocidades e criar um ambiente em que o desprezo pela vida humana se disfarça do mais miserável militarismo.

(iv) A importância do testemunho

Ao relatar o episódio, o Jaime Silva não só expõe uma realidade dura da época, como também reafirma a importância de não "romantizar" a guerra dos paraquedistas, tropa de elite. Como ele diz, "na guerra não vale tudo".

O facto de ainda recordar esse momento (traumático),  demonstra que, para muitos de nós, a guerra colonial foi menos uma aventura turistico-militar e mais um conjunto de situações -limite (que deixaram  cicatrizes, nalguns casos, físicas, mas sobretudo morais, psicológicas e humanas).

É um relato que merece ser preservado e discutido, aqui no blogue, mas também nas academias militares, porque ajuda a compreender o que significou, realmente, para milhares de nós, jovens portugueses,  sermos enviados para África como "maçaricos", "periquitos" ou "checas"(**)


1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Se eu fosse professor de Ética e Deontologia Miilitar, na Academia Militar, juntaria este caso à minha "casoteca"...