1. O episódio que o Jaime Silva partilha connosco (*), é forte, tenso e revelador da dureza mas também da profunda ambiguidade moral, que marcaram muitos momentos da guerra colonial, vividos por nós. Nem todos, por outro lado, teriam coragem de o contar, em público, em livro.
Há vários aspetos que vale a pena comentar, e que são comuns às experiências por que passámos no CTIG.
Recorde-se que o Jaime Silva. de rendição individual, era comandante, "maçarico", de um pelotão da 1ª CCP/ BCP 21 (Angola, 1970/72). E que na Op Broca (c. 20-29 de maio de 1970), no norte de Angola, tem o seu "batismo de fogo". O seu pelotão já tinha experiêwncia operacional, e pôde contar com a dois bons graduados, o 1º cabo Onofre e srgt Mirra.
(i) O choque do “batismo de fogo”
O Jaime Silva descreve algo comum entre jovens oficiais enviados para cenários de guerra: a passagem abrupta da formação teórica (neste caso, recebida na EPI, em Mafra, e depois em Tancos, no RCP) para a realidade pura e dura da guerra de guerrilha e contraguerrilha (fosse em Angola, na Guiné ou em Moçambique),
O “maçarico” (em Angola), o " periquito" (na Guiné) ou o "checa" (em Moçambique) era confrontado de imediato com a imprevisibilidade do IN, e a brutalidade do combate num terreno que lhe era desfavorável. E isso marcava-o para sempre. O dia e o local do batismo de fogo.
(ii) O contraste entre comportamentos
A narrativa mostra três tipos de comportamento operacional num momento de grande tensão:
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a serenidade, a coragem e a experiência do 1º cabo Onofre, que representa o militar que já tem traquejo e sabe agir com sangue-frio:
a lucidez e a maturidade do sargento Mirra, que confirma o papel fundamental dos graduados na estabilidade dos pelotões:
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e, por fim, a conduta chocante do tenente miliciano, comandante de outro pelotão da 1ª CCP, cuja atitude ultrapassa qualquer ética militar, revelando como, em cenários de guerra, alguns indivíduos cruzavam fronteiras morais sob o pretexto da “praxia” ou da necessidade de endurecer os mais novos, os "maçaricos", liquidando crua e friamente um prisioneiro indefeso:
"(...) Face ao guerrilheiro sentado à nossa frente, rapa de um sabre de uma espingarda Simonov e, sem que nenhum dos três militares presentes (eu, o comandante de companhia e um soldado) esperássemos, num ápice, dá uma “saibrada” no coração do guerrilheiro e, depois, outra nos temporais, matando-o a sangue frio. Estupefacto, o comandante de companhia repreende-o daquele ato ignóbil e cobarde. Como se tudo aquilo fosse o mais natural, ele respondeu: – É para praxar, aqui, o alferes maçarico. É para ele aprender. Tem de se habituar." (...)
(iii) “Habituação": uma lógica perversa
A ideia de que um ato de extrema violência como aquele serviria como “lição” para um oficial recém-chegado, "maçraico", e logo ali "praxado". mostra bem como a guerra pode distorcer valores, normalizar atrocidades e criar um ambiente em que o desprezo pela vida humana se disfarça do mais miserável militarismo.
(iv) A importância do testemunho
Ao relatar o episódio, o Jaime Silva não só expõe uma realidade dura da época, como também reafirma a importância de não "romantizar" a guerra dos paraquedistas, tropa de elite. Como ele diz, "na guerra não vale tudo".
O facto de ainda recordar esse momento (traumático), demonstra que, para muitos de nós, a guerra colonial foi menos uma aventura turistico-militar e mais um conjunto de situações -limite (que deixaram cicatrizes, nalguns casos, físicas, mas sobretudo morais, psicológicas e humanas).
É um relato que merece ser preservado e discutido, aqui no blogue, mas também nas academias militares, porque ajuda a compreender o que significou, realmente, para milhares de nós, jovens portugueses, sermos enviados para África como "maçaricos", "periquitos" ou "checas"(**)
(*) Vd. poste de 13 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27417: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (4): o meu batismo de fogo e a praxe ao alferes “maçarico”

1 comentário:
Se eu fosse professor de Ética e Deontologia Miilitar, na Academia Militar, juntaria este caso à minha "casoteca"...
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