quinta-feira, 2 de março de 2006

Guiné 63/74 - P580: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (1)


Guiné > Estrada Bambadinca-Bafatá > 1969 > Coluna da CCAÇ 12, a caminho de Bafatá, vendo-se ao fundo uma AM (autometralhadora) Daimler, do Pel AM Daimler 2046, instalado em Bambadinca, e que era comandado nesse tempo pelo Alf Mil Cav J. Vacas de Carvalho, nosso tertuliano de Montemor-O-Novo. A estrada Bambadinca-Bafatá era uma das poucas, na Guiné, que estava alcatroada. 

Para nós, era uma verdadeira autoestrada, originando acidentes (e alguns graves) por excesso de velocidade. Entre Junho de 1969 e Março de 1971, não me recordo de qualquer actividade da guerrilha neste troço: mina, emboscada, flagelação à distância... Ainda no nosso tempo, deu-se início à construção da nova estrada (alcatroada) Xime-Bambadinca. Este troço entre o Xime e Bafatá era de grande importância estratégica para os transportes terrestres na Zona Leste (Bafatá e Gabu) (LG).

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).



Texto do Manuel Mata (ex-1º cabo apontador CCM 47, integrado no Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640, aquartelado em Bafatá nos anos 1969/71, organizador dos convívios anuais da referida unidade) (1).

HISTÓRIA DO ESQUADRÃO DE RECONHECIMETO FOX 2640, GUINÉ-BAFATÁ 1969/71 - 


Parte I

Caro Luis Graça:

Obrigado pela oportunidade que dás aos ex-combatentes. É de louvar, pois nos fazes reviver um pouco da nossa juventude e dos tempos passados por África.

O camarada A. Marques Lopes, ao referir-se, num dos textos que tem no Blogue-fora-nada, ao Esquadrão de Reconhecimento 2640, de Bafatá, convidou alguém do referido Esquadrão a participar, e uma vez que o amigo Luís Graça me autoriza a entrar na caserna dos tertulianos, aqui estou eu para dar o meu contributo e creiam que é com o maior prazer que o faço... 

Mas se me for permitido, fá-lo-ei desde a formação do Esqadrão à instalação em Bafatá, puxando dos meus apontamento e fotos e rebuscando o baú das minhas memórias, bem como fazendo apelo às memórias de outros camaradas.

Campo Militar de Santa Margarida > Regimento de Cavalaria 4 > 1969 > Carro de Combate M47. © Manuel Mata (2006)


No ano de 1969, mês de Agosto, com a apresentação no Regimento de Cavalaria 8, em Castelo Branco, foram mobilizados, para o T.O. da Guiné, os 142 militares que vieram a formar o Esq Rec Fox 2640, mais o Pelotão Rec Fox 2175, este independente e composto por 38 militares.

Terminado o período de organização do Q.O. da unidade, veio a I.A.O. [Instrução de Aperfeiçoamento Operacional] durante o mês de Setembro de 1969. Aí começou a guerra: o exército não tinha viaturas AM Fox, disponíveis para instrução na Metrópole, as poucas AM Daimler tinham feito Pum!!!, na última instrução de especialidade de 1969.

Ficámos então esclarecidos da razão que levou à nossa mobilização, os 16 apontadores de Carros de Combate M47, coisa que ainda não tinha acontecido até então, em todo o período de guerra. Como não podia haver especialidade de apontador AM Fox e AM Daimler, socorreram-se dos apontadores CCM47, do RC 4, de Santa Margarida, grupo de especialidade terminada em Maio de 1969.

Depois da mobilização para o CTIG, da falta de aperfeiçoamento dos condutores, dos apontadores, nas viaturas que o Esq Rec Fox 2350 a render na Guiné tinha, juntou-se-lhe a pescada amarela de mau sabor, com as batatas a saber mal, a água com pouco vinho, os castigos de mais uma semana no campo (24 horas por dia), a massa para o almoço que no campo chegava chocalhada nas viaturas e era... pasta!

Lá vinha uma revolta, no próximo dia de pescada amarela, lá se fazia à pressa um arroz com chouriço. Voltava-se à pescada, voltávamos a fazer levantamento de rancho e, como castigo, mais uma semana de campo. Resultado: camas da caserna, almofadas, etc., destruídas.

Numa dessas noites de maior tensão, aparece o Furriel Amadeu Fernandes que estava de Sargento Dia, a tentar acalmar a rapaziada... Choveu tanta almofada, botas e outros objectos que prometeu:

- Lá é que vamos ver quem brinca!.

Foi um amigão, este furriel!...

O Comandante do R. C. 8, já saturado com a nossa rebeldia por não aceitarmos ser assim tratados, duas vezes fez formar o Esq 2640 na parada, dando ali uma grande lavagem de orelhas, foi para todos simples música, tendo inclusive apelidado a rapaziada de Diabos!... Não satisfeito, interpelou-nos (e vou citar de cor):

- Se algum dos militares aqui presentes for homem para se bater comigo, que dê um passo em frente! 

Claro, a bravata do comandante ficou por ali...

Pior que tudo isto da guerra que nos impunham, foi mesmo termos perdido um companheiro devido a um acidente, numa das saídas a Penamacor, para fazer fogo real. Por caricato que pareça, um burro aparece na estrada causando o acidente onde ficaram feridos dois praças sem gravidade e faleceu o Aspirante Mil Fernando M. Lopes. Quero deixar aqui bem sublinhado que este amigo está sempre presente no coração dos elementos do Esq Rec Fox 2640.


Lisboa > O N/M Uíge, que transportou o Esq Rec Fox 2649, mais o Pel Rec Fox 2175 até Bissau, em 15 de Novembro de 1969. Mas nem todos compareceram: um oficial desertou... © Manuel Mata (2006)

Finalmente, na manhã de dia 15 de Novembro de 1969, embarcámos em Lisboa no N/M Uíge... Foi o meu primeiro dia de forte dor, de desilusão, de grande desmotivação se é que alguma vez houve motivação...

Faltou ao embarque o Alferes Mil Elpídio Codinha dos Santos. Este tinha vindo de véspera para Lisboa, para reconhecer o navio e fazer a marcação de quase todo o Esqadrão em camarotes. De facto, poucos de nós foram no porão, pelo que todos ficámos muito agradecidos e sensibilizados pela moralização de muitos contra uma guerra que não era nossa...

Algum tempo depois foi confirmado, para nossa alegria (e minha, em particular), que ele estava em França: tinha desertado (coragem que eu não tive, não por falta de o Santos não nos ter incentivado!)...

Em 21 de Novembro de 1969, regista-se o desembarque em Bissau dos 141 militares do Esq Rec Fox 2640, que seguem depois para a C.C.S., em Santa Luzia. Alguns dias a seguir, partimos para Bafatá, na nossa primeira viagem pela Guiné. Vimos pela primeira vez uma AM Fox em Bambadinca, que veio a fazer Pum!!! não muito tempo depois (2).


Guiné > Zona Leste > Baftá> 1970 > O autor junto à Fonte Pública, Bafatá, 1918.
© Manuel Mata (2006)

Chegada a Bafatá, após um curto período de adaptação e feita a rendição do Esq Rec Fox 2350, aí está a rapaziada pronta para actuar em qualquer ponto da zona leste, visto constituirmos reserva móvel do agrupamento leste.

Caro Luís Graça, um abraço extensivo a todos os tertulianos.E venham mais ex-combatentes.

Manuel Mata
Crato - Portalegre
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(1) vd. post de 26 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXC: Convívio anual do Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71)

(2) Recordo-me perfeitamente desta peça de museu que lá ficou a um canto, em Bambadinca (LG)

quarta-feira, 1 de março de 2006

Guiné 63/74 - P579: A viagem do Xico Allen e da Zélia Neno em 1998


Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Ingoré > 1998 > Este foto já correu mundo... ou, pelo menos, já deu a volta à nossa caserna...De facto, foi enviada em primeira mão para a nossa tertúlia…A legenda é do Albano (Costa): “Esta foto vale pela imagem, e os brancos em África converteram-se? Não é que ficaram a ver a Zélia a puxar o burro, mulher de armas!"... O Albano fez questão me mandar esta e outras fotos da viagem do Xico e da Zélia, em 1998, com o seguinte recado: "... para ilustrares o que entenderes, com a devida autorização da Zélia" (sic).

© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)


1. Mensagem da Zélia Neno, nossa nova tertuliana, portuense, mulher do Xico Allen:

Luís:

Por falta de oportunidade ainda não agradeci a atenção com que fui recebida no blogue. Fiquei não só sensibilizada mas também contente pelos elogios e, como na verdade, sou uma "mulher do norte" (nascida e criada, assim como o Xico, nas casas que existem imediatamente a seguir à Ponte da Arrábida para quem vem de sul para norte, bem pertinho onde o nosso famoso rio Douro se encontra com o mar), vou tentar não ser um estorvo para a escrita de todos os tertulianos, porque além de ser crescidinha, também sei pelo Xico, das necessidades sexuais que todos os meninos/homens ditos normais, mandados para aquela guerra, tiveram de enfrentar, alguns já casados e com filhos, que ali tinham de se desenrascar conforme podiam nem que tivessem de partir catota na Rua da Palma nº 5 .

Por tal não se inibam, por favor, de falar dum tema que hoje mais do que nunca já não deve ser tabu para ninguém e todos os momentos e factos por ali vividos é que compõem a vossa própria História de Vida.

Obviamente que eu, Zélia, aquilo de que possa vir a escrever nada tem a ver com relatos daquela guerra, alguns minuciosamente aqui contados, mas porque ela existiu é que eu já lá fui várias vezes e logo que possível, pois é o meu sonho desde 1992 poder passar lá uns meses como voluntária em qualquer Missão no interior do país, e como por lá tenho vivido e compreendido tantas coisas, até então desconhecidas, só delas posso falar.

Há dias o nosso amigo Albano enviou algumas fotos minhas/nossas mas todas elas falam pois todas têm na minha lembrança algo a contar, o momento e situação em que foi tirada, o sentimento que naquela ocasião eu sentia e muito mais. Por exemplo, aquela dos burros foi um dia muito especial para aquele grupo que connosco foi ter, como anteriormente contei, porque aquele ia ser o dia D, pois saíramos de Bissau para ir a Jumbembem, onde eles haviam estado e dali seguiríamos para o Saltinho.

Algumas das peripécias desse dia já as contei, por email, ao "nosso fotógrafo de serviço" [o Albano Costa], e aqui e uma vez mais agradeço a sua disponibilidade em as enviar.

Quanto ao Xico, ele ainda nada escreveu para o blogue porque anda ocupadíssimo com os preparativos da próxima viagem [, em Abril de 2006], pois para além de o jeep, comprado propositadamente para este fim, requerer uma preparação especial e rigorosa (para não ficar pelo caminho), tem todos os bastidores que uma Expedição de Solidariedade requer, desde a angariação de materiais, especialmente escolar e médico, a alguns pequenos patrocínios, pois este tipo de viagem tem muitos gastos e não sendo isto um rally, o nome dessas empresas ao ir mencionado no veículo fica a ser conhecido do Porto a Bissau.

Talvez, senão antes, o Xico após esta nova jornada, muito mais vai ter que contar, assim como o tertuliano coronel Marques Lopes que ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente, já que factos importantes e previstos se irão passar por terras da Guiné.

Parabéns a todos e continuem. Luís, obrigada e até um qualquer dia.

2. Nova mensagem da Zélia:

Luís

Ao ver agora a imediata resposta que deste ao meu email e como dizes ir lançar as fotos no blogue, vou tentar documentá-las minimamente, pois quem as vir não sabe nem onde nem as circunstâncias de cada momento. A foto dos burros vai como Anexo, pois há dias mandei ao Albano e evito escrever a mesma coisa. Que me lembre, além dessa ele enviou outras [que passo a comentar a seguir].

(...) Aproveito para enviar um beijinho para tua esposa que sendo uma "mulher do norte" é minha conterrânea e tem que ser "especial", porque ter maridos como os nossos que não passam um dia sem falar de ou com alguém da Guiné, mesmo eu gostando tanto dela, às vezes torna-se complicado (...). Zélia



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Contuboel > 1998 > "Luís, esta é, julgo eu, da tua zona, Contuboel... Esta foto é tirada no centro da picada que vai para Bafatá... Esta picada é um autêntica autoestrada, dá para circular a 120 km, mas à vontade" (Albano Costa). © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá> Bambadinca > 1998 >"Eu rodeada pelo capim quando observava uma queimada, na estrada entre Mansoa e Bambadinca" (Zélia). © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu >S. Vicente > 1998 > Travessia do rio Cacheu (1) © Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné-Bissau > Região do Cacheu >S. Vicente > 1998 > Travessia do rio Cacheu (2)© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 1998 > A famosa Fonte de Empada... " O calor era tanto que o melhor naquele momento foi despejar várias bacias de água pela cabeça abaixo somente para refrescar e tirar a maioria do pó apanhado ao atravessar as muitas picadas para ali chegar. Fomos ali pois era àquela fonte que o Xico ia fazer o carregamento de água e assim nos deparamos com as mulheres a lavar a roupa após o que tomavam banho. Na foto eu estava nas escada a filmar enquanto meu marido tirava fotos" (Zélia)... "A Zélia é mesmo assim e lá foi tomar o seu banho" (Albano Costa). © Francisco Allen & Zélia Neno (2006).

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada, Canchuma> 1998 > "Fazendo a cama...Foi em Canchuma, onde como hóspedes especiais, dormimos na única cama de madeira existente por aquelas bandas. A cama nem era má, os lençóis eram meus pois mulher prevenida vale por duas, e se não fosse a brincadeira dos cabritinhos a correr toda a noite ao redor da casa que era construída sobre uma plataforma ou coisa do género, até teria sido uma noite repousante devido ao cansaço" (Zélia)... "No hotel de Empada o seu director (chefe de tabanca) ofereceu-lhes a sua suíte, só na Guiné" (Albano Costa). © Francisco Allen & Zélia Neno (2006).

Região de Quínara > Empada, Canchuma> 1998 > "Eu em camisa de dormir, quando acordei após a dita noite, saindo da Casa de Banho, que era algo de inédito até então. No interior daquele cercado, montado com algumas placas de chapa, pedaços de madeira, ramos de palmeira e a porta era um pano que movíamos para entrar e sair, o chão era em cimento com um leve declive para a água correr para a terra ao tomar banho a qual nos ia sendo entregue pelas gentis mulheres daquela família, que a retiravam de um poço e a iam passando dentro das meias cabaceiras, utensílio com várias utilidades por terras de África. No centro daquele espaço, no chão, existia uma abertura circular com cerca de 20 centímetros, tapado com um pedaço de lousa amovível e cuja função era a de sanita. Giro, não? Isto é África, não é especial da Guiné pelo que sei, assim como sei que nem toda a gente acharia graça a meter-se nestas andanças, mas estas experiências fascinam-me e fazem-me sentir muito feliz e só convivendo com culturas, hábitos e costumes de gentes tão iguais e tão diferentes, é que vamos evoluindo um pouco na nossa curta existência - é isto que penso" (Zélia) ... "A Zélia admirando o espaço à sua volta" (Albano Costa). 

© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Empada > 1998 > "Eu e Xico numa tabanca entre Empada e Binhar, rodeados pelo velho Mamadú e família, homem este por quem o Xico sentia muita admiração e respeito, graças ao qual ele não passou muitas vezes fome pois ele sempre o safava , como dizemos, pela porta do cavalo

A nossa primeira visita ao Mamadú foi em 1994, o que quase o endoideceu de alegria quando viu o Xico pois reconheceu-o de imediato e a mim era como se sempre me conhecera. Foi tamanha a sua euforia, e sabendo nós que na Guiné a riqueza dos homens vê-se pelas cabeças de gado que possuem e que somente matam para consumo próprio em ocasiões muito especiais, que ele queria insistentemente que nós trouxéssemos um cabrito para comer no hotel em Bissau, o que era impossível. Voltamos lá em 1998 e esta foto foi a última que tirámos com aquele homem grande, pois faleceu algum tempo depois. Os seus gritos e risadas de alegria ainda hoje se mantêm gravados na minha memória auditiva" (Zélia)... "A alegria estampada no rosto de toda a gente, assim como no Xico e Zélia" (Albano Costa).
© Francisco Allen & Zélia Neno (2006)

Guiné 63/74 - P578: A história do Cancioneiro de Canjadude (José Martins)

Guiné > Canjadude > O gato preto José Martins (em 1968 ou 1969)
© José Martins (2006)


Texto do José Martins (ex-furriel miliciano de transmissões da CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70), com a seguinte nota: 

" Aqui vai mais um modesto contributo acerca do Cancioneiro de Canjadude. Em breve espero pôr NO AR a versão áudio.

Um abraço".


No blogue, com a data de 28 de Fevereiro de 2006, encontram-se composições que foram elaboradas a partir de músicas em voga nos finais da década de sessenta do pretérito século XX, e que tiveram como nome genérico o título acima.

Das seis apresentadas, não sei se existem mais e que ainda estão para ser divulgadas, todas elas têm uma estória subjacente, a saber:

HINO DOS GATOS PRETOS

A CCAÇ 5, com sede, comando e um grupo de combate em NOVA LAMEGO, tinha à sua responsabilidade os destacamentos de CANJADUDE, CHECHE e CABUCA

Em Agosto de 1968 o comando foi transferido para Canjadude, tendo sido reforçado pela CART 2338.

Em 6 de Fevereiro de 1969 com a retirada das tropas de Madina do Boé, o seu grupo de combate instalado no Cheche, veio para Canjadude, onde se lhe reuniu o grupo de combate estacionado em Cabuca e rendido por uma companhia metropolitana.

A CART 2338 retirou-se para Nova Lamego em Março de 1969.

Ficaram, assim, os Gatos Pretos com o destacamento mais avançado desde “o Gabú (Nova Lamego) ao Boé…”.

Esta foi a base que serviu de mote ao HINO, acrescentando que na versão original o refrão começa DESDE QUE ESTAMOS TODOS JUNTOS …

BINÓCULOS DE GUERRA
Canção muito em voga na metrópole a que bastou um pouco de imaginação para se transformar e que a rádio da Guiné também passava com frequência

Esta é contemporânea do HINO.

Guiné > Gabu (Nova Lamego) > Canjadude > 1973 > CCAÇ 5 (Gatos Pretos) >

Interior do Clube de Oficiais e Sargentos de Canjadude (o furriel miliciano Carvalho é o 2º a contar da direita... No mural, na pintura na parede, pode ler-se: [gato] preto agarra à mão grrr.... Percebe-se que estamos no Rio Corubal com o campo fortificado de Cheche do lado de cá (margem direita) e... a mítica Madina do Boé, do lado de lá (margem esquerda)... Em 24 de Setembro de 1973, em Madina do Boé, o PAIGC proclama a independência da nova República da Guiné-Bissau.

© João Carvalho (2005)


HINO DA VELHICE

Nasceu duma frase muito usada pelo Furriel Miliciano Carvalho, que sistematicamente gritava

EU NÃO ESTOU MALUCO!
TIREM-ME DAQUI1

Da frase ao HINO DA VELHICE, foi apenas escrever a letra adaptada ao Puppet on the string.

BALADA DE CANJADUDE

Nasceu depois de realizada a Operação LUTA realizada em 16 e 17 de Maio de 1969. Esta operação, em que participei, tinha por missão detectar e neutralizar as forças IN que se encontravam a norte do Rio Corubal, onde seria largada uma vaga de paraquedistas heli-transportados.

A guarnição do destacamento ficou a cargo de uma companhia de periquitos, dado que a CCAÇ 5 se devia apresentar com a máxima força.

Trocadas as voltas, o quartel foi atacado, os piras baptizados, e o resultado estava à vista quando regressamos.

O tuga sabe transformar e dar a volta por cima e ainda não esqueceu que, muito atrás no tempo, as notícias também corriam mundo em forma de canção e/ou poema.

FADO DA EMBOSCADA
Este fado, com música do Embouçado, faz referência à Operação LACOSTE, que foi uma patrulha de combate ocorrida em 27 e 28 de Junho de 1969, que tendo partido de Canjadude passou por Sare Andebe, Ponto Cota 70, BURMELEU, Samba Gano e regresso a Canjadude.

Houve contacto com o IN no final do dia 27, quando a patrulha se preparava montar a emboscada, foi detectado, na zona de Burmeleu, um grupo que nos atacou e ao qual foi iniciada a perseguição. No terreno ficaram armas e munições. Após o recontro retiramos para o Ponto Cota 70, que nos garantia protecção nocturna.

Durante a noite assistimos à passagem de guerrilheiros, que no dia seguinte, ao voltar a passar pela zona de BURMELEU, tínhamos “festa rija” á nossa espera.

GATO PIRA

Esta canção não fazia parte das minhas lembranças, até que a vi publicada no numero 7 do jornal GATO PRETO, editado em Abril de 1972, e que faz parte de uma colecção de 16 (?) números, que se encontram depositados na biblioteca do Estado Maior do Exército.

OUTROS SÍMBOLOS

A CCAÇ 5 tinha outros símbolos criados em 1968/69, [no meu tempo]:

- O Guião, que inicialmente não tinha a inscrição GATOS PRETOS;

- O ex-libris que, igual ao guião, era usado sobre o bolso esquerdo da camisa ou
dólmen;

- Guiões triangulares, de cores várias, para cada um grupo de combate e para o comando e serviços;

- O lenço preto, tipo cachecol, usado por debaixo do colarinho da camisa

- Cinzeiro, quase plano, de cor vermelha com um gato preto

terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P577: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões > 1970 > Luta balanta, presenciada por militares destacados para protecção do reordenamento (à esquerda, o furriel miliciano Henriques, da CCAÇ 12, de calções, tronco nu e óculos escuros, o autor destas linhas)
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).
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Excertos do Diário de um Tuga (L.G.):

Nhabijões, 20 de Dezembro de 1969

Nhabijões: um conjunto de tabancas, ao longo do Rio Geba, habitadas por balantas (uma delas por mandingas), sob duplo controlo (a expressão é das NT) e agora em fase de reordenamento (outro eufemismo: para mim, trata-se de puro etnocídio sociocultural, o que se está aqui a fazer, obrigando os pobres dos balantas e mandingas de Nhabijões a transferir-se da beira rio para uma zona de planalto, sobranceira ao Geba, e a viver em casas desenhadas e construídas por europeus)...

Há sempre um rosto (humano) por detrás da máscara mais impassível. Desespero, porém, de encontrá-lo nestes velhos e velhas, de sexo aliás indefinido, que carregam com todo o peso do tempo, e em que os próprios olhos perderam o seu brilho (humano).

Olhos de múmias que já não nos olham nem nos espiam. Fixam-nos, muito simplesmente. Se porventura existisse a eternidade, deveria ser este o olhar dos condenados (eternos). Já não são testemunhas de nada (mesmo mudas) porque a sua consciência individual se petrificou no tempo.

Nada têm de patético estes seres que já não são humanos. A única coisa que me inspiram é talvez um sentimento de abjecção. E, no entanto, eu deveria sentir uma profunda revolta pelas estruturas que criam esta inumanidade.

Os balantas foram, segundo o testemunho insuspeito dos meus soldados (fulas), as maiores vítimas da repressão colonial nesta década. Seis anos depois (é difícil confiar na memória dos africanos que não usam calendário, mas isto ter-se-á passado em 1963, depois do início oficial da guerra), Samba Silate (1) (cuja população terá sido parcialmente massacrada pela tropa ou pela polícia administrativa de Bambadinca, não posso precisar) e Poidon (2) (regada a napalm pela força aérea) ainda despertam aqui trágicas recordações: evocam o tempo em que todo o balanta era suspeito aos olhos das autoridades militares e administrativas, presumivelmente coadjuvadas pela PIDE (Tenho dificuldade em explicar aos meus soldados, que não falavam português quando os conheci em Contuboel, o que é isso, o que é essa sinistra polícia…).

Há uns anos atrás, nos anos do terror, ser encontrado fora da sua tabanca ou do seu perímetro, de catana na mão ou faca de mato à cintura - que é ronco ou adorno para um balanta que se preze - , eis um belo pretexto para um balanta ser preso, levado para o posto administrativo de Bambadinca, sumarianente interrogado e às vezes, hélàs!, mais sumariamente ainda liquidado.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Ponta Brandão > 1970 > Dois velhos balantas.
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).

A justificação era simples, segundo os meus nharros: "um balanta a menos, era um turra era menos" (sic)… Admito que haja aqui alguma dose de fanfarronice e de exagero, por parte dos fulas, históricos inimigos e vizinhos dos balantas… Mas não há fumo sem fogo: estas histórias parecem-me ter consistência…
Donde esta hostilidade passiva que julgo poder ler nos olhos e nas atitudes da população de Nhabijões que alimenta a guerrilha, em homens e mantimentos, provavelmente mais por razões de parentesco do que por simpatia para com o PAIGC: ao avistarem-me, fardado, na sua tabanca – a mim, tuga, representante da tropa ocupante - os mais velhos baixam a cabeça ou viram-me as costas como se sentissem acabrunhados com a minha presença… Quem se sente mal, sou eu, que venho invadir-lhes a sua privacidade e perturbar os seus irãs

Devia ser esta, aliás, a atitude com que caminhavam para a morte: sem medo mas também sem revolta, com uma estranha dignidade ancestral, a pá e a pica em cada uma das mãos. Sim, por que o método era tão requintado como o dos nazis, a crer na descrição que me fazem alguns dos meus informadores, os mais velhos, como o Abibo, por exemplo – o Abibo, o bom gigante do Abibo, que sofre de epilepsia e tem elefantíase no escroto…
Ou até senão mais: a própria vítima abria a estreita vala onde devia caber o seu próprio corpo, três palmos abaixo da superfície, e onde ficava deitado… à espera que o carrasco da polícia administrativa (sempre os africanos para as tarefas sujas…) se dignasse dar-lhe o passaporte para a eternidade: um tiro de pistola, uma lata de gasolina, um fósforo…
Ter-se-á passado assim ? Um frémito de horror passa-me pela espinha acima. Recuso-me a aceitar que isto se tenha passado debaixo da bandeira verde-rubra da minha pátria, com a cumplicidade ou até o envolvimento (activo ou passivo) das tropas portuguesas ou dos representantes das autoridades portuguesas… Faço, ao menos, votos para que estes crimes sejam apenas imputados à odiosa PIDE… Enfim, nunca o saberei… Ou melhor, poderei perguntar-lhes onde era o sítio... O Adibo e outros falam-me do antigo cemitério de Bambadinca, um sinistro local de outrora onde hoje as alfaces crescem, viçosas…
Mas os tempos são outros, dizem-me com uma certa nostalgia os veteranos da guerra do norte de Angola - ah!, esses tempos em que os cavaleiros do terror branco faziam verdadeiros safaris nos muceques de Luanda, e em que se abatia a tiro em plena rua o cão negro (sic) que dirigisse um simples olhar insolente a uma mulher branca, como ouvi a alguns sargentos racistas, com uísque a mais no bucho, nos poucos dias que passei em Bissau, à nossa chegada ).
Recuperação psicológica e promoção sócio-económica das populações – a chamada acção psicossocial: eis agora a palavra de ordem, sob o consulado de Herr Spínola… É isso: agora faz-se psico (psícola, como dizem os nossos soldados): o major aperta, com visível repugnância, as mãos das múmias; o médico observa, enfastiado, uns tantos casos constantes do catálogo das doenças tropicais; um outro miliciano distribui cigarros Marlboro; e o cabo da CCS anda a ver se come a bajuda de mama firme

Admitem-se abertamente, na linguagem fetichista dos spinolistas, os erros do passado da nossa administração que não terá tido na devida conta as susceptibilidades, as idiossincracias e até os direitos das populações guineenses, mas omite-se, talvez por uma questão de má-consciência, os crimes praticados pelas NT, no passado recente e no passdo mais remoto, pelos nossos métodos particulares de pacificação
Sim, quem é – dos militares do quadro e dos milicianos de hoje – que sabe dessa história das guerras da pacificação da Guiné, do Teixeira Pinto, do Adbul Injai (3), etc. ? …
E no entanto, hoje, as NT sabem que podem ser responsabilizadas, disciplinar e criminalmente (por ironia, à face das leis de um país que assinou as convenções de Genebra, mas que considera os nacionalistas africanos como simples terroristas, bandidos, bandoleiros, turras…) por eventuais actos de violência física cometidos contra prisioneiros e população civil… O etnocídio dos reordenamentos, esse, não tem enquadramento jurídico...

Não se trata obviamente, em meu entender, de uma tentativa de redenção do colonialismo (que, de resto, não existiria, desde 1951, ano em que as nossas colónias passaram a chamar-se províncias ultramarinas…) mas de uma táctica defensiva, como o denunciou o secretário-geral do PAIGC, referindo-se a estas novas directivas do comando-chefe e governador-geral da Guiné, António de Spínola, que visam dissociar o binómio guerrilha-população…

Mas, fazendo deslocar a guerra do TO (teatro de operações) para a ACAP (repartição de acção psicológica), Herr Spínola admite implicitamente que a vitória já não pode ser ganha pelas armas… O que não deixa de ser irónico: retratando-se das suas anteriores posições militaristas, constata afinal o impasse a que tem nos conduzido o militaristismo e acaba por justificar, involuntariamente, a propaganda do IN.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Parada do aquartelamento e centro do posto administrativo. O Humberto Reis posando frente aos memoriais dos vários batalhões e companhias que por ali passaram. Atrás, o edifício da escola local onde leccionava e vivia uma professora branca, portuguesa, a única que wu conheci na em toda a região...
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006).

Simplesmente não será através da via de desenvolvimento colonialista ou neocolonista (isto é, da nossa via) que iremos conseguir a paz. É que os nacionalistas da Guiné e Cabo Verde lutam, antes de mais, pelo poder político, pela independência da sua terra, condição sine qua non dum futuro desenvolvimento, integral e autónomo, destes dois territórios, intimamente ligados pela história… Eis por que Herr Spínola nunca poderá “falar a linguagem do IN em matéria de reivindicações” (sic), por muito maquiavélico que ele seja…

Está-se agora proceder ao reagrupamento e reordenamento das tabancas de Nhabijões, ditas sob duplo controlo. Mas esse plano (longinquamente inspirado nos campos de concentração nazis e, mais proximamente, nas aldeias estratégicas que os americanos conceberam para o Vietname) obedece mais a razões psicológicas e sociais (aculturação ou assimilação através da construção de raiz de casas de adobe e rachas de cibe, com cobertura de zinco, portas e janelas à portuguesa, e arruamentos feitos a régua e esquadro) e estratégicas (controlo populacional, demarcação de zonas livres a partilharia e a força aérea, corte do cordão umbilical com a guerrilha) do que a um deliberado plano de promoção social dos guineenses, se bem que esteja prevista uma certa cobertura escolar e sanitária das populações reordenadas…. Com o recurso a pessoal de educação e de saúde, recrutados entre os próprios militares!!!... Contam-se pelos dedos da mão os civis, brancos, missionários, comerciantes, professores, médicos ou enfermeiros, que existem nesta região, de Bambadinca, parte integrante do concelho de Bafatá… Eu apenas conheço três: dois comerciantes e uma professora …

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Nhabijões > 1971 > O estado em que ficou o burrinho, depois de accionar uma mina anticarro à saída do reordenamento, em 21 de Janeiro de 1971 (4).
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).
A acção psicossocial que vejo anunciada e praticada é essencialmente fetichista. Isto é: exorcisa os fantasmas da nossa má consciência civilizacional, cristã e ocidental… Estou a ser mauzinho ? Depois dos navios negreiros, do chicote esclavagista, das concentrações de artilharia e dos bombardeamentos de napalm, ainda há luvas de veludo, as de Herr Spínola, para apertar as mãos das múmias ou distribuir sorros, cigarros e pastilhas…

Não, decididamente perdemos inclusive o direito à autocrítica, ao revelarmos pela última vez o nosso pobre rosto de espantalhos da história. O processo do colonialismo está feito. Salazar sempre o recusou. O seu sucessor deve sabê-lo mas recusa-se a admiti-lo. Mas para Spínola trata-se ainda (e sobretudo) de ganhar tempo. Talvez para negociar uma paz honrosa… Irá a tempo ?
Luis Graça
(ex-furriel miliciano Henriques, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71, também conhecido por Camarada Sov)
_____

(1) Samba Silate: A sudoeste de Nhabijões, junto ao Rio Geba. Vd. mapa de Bambadinca.
(2) Poidon > Na confluência dos Rios Corubal e Geba: vd. mapa do Xime
(3) Vd. post de 15 de Fevereirod e 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

" (...) Percebi que uma Guiné idílica e pacífica, de negros portuguesismos, nunca existira… Todo o território ao longo dos séculos foi palco de imensas guerras, sangrentas repressões e alguns desastres das nossas tropas. Perante o meu espanto, indicaram-me, em Fá, o local onde no tempo dos avós, dos avós deles, havia sido aprisionado o Governador, que teve de pagar resgate aos beafadas (1). E em Missirá levaram-me a conhecer o campo onde as forças portuguesas e seus ajudantes estiveram longo tempo entrincheirados, preparando a conquista de Madina/Belel, na luta contra o grande guerreiro Unfali Soncó, no princípio do século XX (2).

"Foram também os velhos que me falaram de Abdul Injai, régulo do Cuor e do Oio, companheiro de Teixeira Pinto, herói tão amado quanto odiado, caído em desgraça no fim da vida, e degredado para Cabo Verde (...)".

Vd. ainda o seguinte sítio na Net:

Wilson Trajano Filho > Pequenos mas honrados: um jeito português de ser na Metrópole e nas Colónias > Brasília: Universidade de Brasília. 2003

(4) Vd. post de 23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)
" (...) O dia 13 [de Janeiro de 1971] seria uma data fatídica para as NT, e em especial para a CCAÇ 12 cujos quadros metropolitanos estavam prestes a terminar a sua comissão de serviço em terras da Guiné. Eis o filme dos acontecimentos: (...)"

Guiné 63/74 - P576: Cancioneiro de Canjadude (CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1973/74) (João Carvalho)


Guiné > Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Guião

Foto: ©João Carvalho (2006)

O João Carvalho, que foi furriel miliciano enfermeiro dos Gatos Pretos, diz-nos que começou a rebuscar o seu "baú de recordações". E nessas voltas ao passado, "enontrei uma pequena bandeira dos Gatos Pretos. Digitalizei só uma face"...

A par desta preciosidade, também foi desencantar letras de canções com que os Gatos Pretos exorcizavam os seus fantasmas, os seus medos, as suas angústias nas noites longas de Canjadude (1)...

Fica aqui uma amostra desse Cancioneiro que eu tomei a liberdade de chamar o Cancioneiro de Canjadude, por analogia com o da Niassa (Moçambique) (3), tal como já tinha feito com os cadernos do Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612, que teve o seu momento de glória em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974, ao arrear a última bandeira verde-rubra, e que eu rebaptizei com o título Cancioneiro de Mansoa (3) .

Também já aqui publicámos, no nosso blogue, a famosa letra do hino de Gandembel (4). No meu tempo (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) era provavelmente a canção de caserna mais popular, passando de boca em boca. Guileje, Gadamael e Gandembel eram três nomes de aquartelamentos do sul que os periquitos, em Bissau ou na Zona Leste, pronunciavam com temor e respeito... Infelizmente já não me lembro da música...


O nosso camarada João Carvalho, ex-furriel miliciano enfermeiro da CCAÇ 5 (1973/74), hoje farmacêutico

©João Carvalho (2006)

Guiné> Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Balada de Canjadude. Música: DEsconhecida. A letra é uma paródia do conhecidíssimo poema do Augusto Gil (1873-1929), Balada da Neve (do livro Luar de Janeiro, 1909) (LG).


© João Carvalho (2006)


Voam forte, fortemente,
Provocando o alvoroço.
Metralha de outra gente
Que pretende certamente
Estragar-nos o almoço.

Será talvez um tornado,
Mas ainda há pouco tempo,
Nem as chapas do telhado,
Nem o desconjuntado,
Se moviam com o vento.

Fui ver...
As morteiradas caíam,
Do azul cinzento do céu,
Grandes, negras, explodiam,
Como elas se moviam,
Mas que barulho, Deus meu!

Olho através da seteira,
Está tudo acinzentado.
Elas caem, que poeira,
Levantam à nossa beira,
Felizmente mais ao lado.

Ficando olhando estes sinais,
Deixados pela tormenta.
E isto por entre os mais,
Buracos descomunais,
Dos impates do oitenta.

Inesperado, cortante,
Eis que ribomba o canhão
Que, apesar de estar distante,
Com a sua voz troante,
Vem espalhar a confusão.

Com potente vozear,
Estas armas falam forte,
O canhão a metralhar,
Propõe-se a enviar
Sua mensagem de morte.

Que quem já é terrorista,
Sofra tormentos, enfim.
Mas esta tropa, Senhor,
Porque lhes dai tanta dor,
Porque padecem assim ?

É uma infinita tristeza,
Constante perturbação,
No coração é inverno,
Cai chumbo na natureza,
Canjadude é um inferno.



Guiné > Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Hino da Velhice. Música de Puppet on the String, uma canção do Reino Unido, composta por Bill Martin/Phil Coulter que ganhou o Festival da Canção da Eurovisão de 1967, interpretada por Sandi Shaw. (LG).

© João Carvalho (2006)

Refrão

Ai....
Tirem-me daqui,
Mandem-me p'ra Metrópole,
Que eu estou a ficar maluco, maluco, maluco,
Quero ir daqui embora!...

Já lá vem o meu periquito
A saltar na bolanha,
Quando for daqui para fora
Nunca mais ninguém me apanha.

Quero ir embarcar...
E à Metrópole voltar...

Refrão

Despedidas eu vou fazer
E a arma entregar.
Depois então vou receber
A guia p'ra marchar.

Quero ir embarcar...
E à Metrópole voltar...


Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Bibóculos de guerra. Música: Vou partir, vou voltar, vou partir... (Conhecida música da época, mas já não me lembro quem era o intérprete) (LG)

© João Carvalho (2006)

Guiné > Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Gato Pira. Música: Negro Gato, do Roberto Carlos. ©João Carvalho (2006)


Minha triste história
Vou-lhes contar,
Por certo ao ouvi-la
Vão ter que tarrafiar!

Miau... Eu sou o gato pira (bis)

Manga de meses tenho
Para lutar,
Manga de chances tenho
Para escapar.
Mas se eu afinar,
Acabo num farrapo.

Miau... Eu sou o gato pira (bis)

Há dias, lá no mtao,
Pobre de mim,
Queriam as minhas penas
Para um ronco assim.
Apavorado eu pensei
Ai, que será de mim ?


Miau... Eu sou o gato pira (bis)


Guiné > Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Fado da Emboscada. Música: Fado do Embuçado (Autor: João Ferreira Rosa).

©João Carvalho (2006)

A história que eu vou contar,
Já há muito aconteceu,
Gatos pretos em acção,
Na grande operação,
Lacoste em Burmeleu.

A malt' ia pela mata,
Ainda não viar nada,
Mas por mal dos meus tormentos,
Com fortes rebentamentos,
Começou a emboscada.

Logo a malta reagiu,
No meio da confusão,
Atrás deles e a correr,
A gritar e a dizer
Gato preto agarra à mão.

Perante a admiração geral,
No meio da algazarra,
Enquanto os turras fugiam,
Os nossos os perseguiam,
A gritar Agarra, agarra!.

EW então já noitinha,
Quando a tropa instalou,
P'ra nosso contentamento,
Munições e armamento,
Foi o ronco que ficou.
____________

Notas de L.G.
(1) Vd. post de 23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O nosso fotógrafo em Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74)

(2) vd post de 11 de Maio de 20054 > Blogantologia(s) - XI: Guerra Colonial: Cancioneiro do Niassa (1)

" (...) 1. No final dos anos sessenta, no norte de Moçambique, na região do Niassa, os soldados portuguesas entoavam fados e canções que relatavam as alegrias e as tristezas do seu quotidiano de guerra. O registo era, umas vezes, de bravata e paródia, e outras vezes mais triste e intimista... Era uma forma de exorcizar a angústia das emboscadas e das minas, de lidar com o stresse, de manter viva a ligação com a sua terra natal, de reforçar o seu espírito de corpo como combatentes e até de certo modo humanizar uma guerra que não parecia ter uma solução militar à vista. Nas letras dessas músicas podia-se inclusive descortinar sinais de contestação e até de resistência, sinais esses que minavam o moral das tropas e a vontade de combater.
"O mesmo se passava, de resto, noutras frentes de guerra, como a Guiné, como eu posso testemunhar pela minha própria experiência pessoal: as longas noites da Guiné eram passadas, muitas vezes, entre muitos copos de uísque, cerveja, intermináveis jogos de lerpa e longas sessões de fados, baladas e outras canções (com o Manuel Freire à cabeça, seguido do Zeca Afonso, do Adriano Correia de Oliveira, dos Beatles, do Bob Dylan, do Donovan e de tantos outros...): "Eles não sabem nem sonham/ Que o sonho comanda a vida...", era uma das nossas preferidas, sendo cantada e acompanhada à viola com um misto de saudades da nossa terra e de rebeldia contra o aparelho político-militar.
"Vários poetas e versejadores, de maior ou menor talento, pertencentes aos três ramos das forças armadas, contribuiram anonimamente para aquilo a que depois se veio a chamar o Cancioneiro do Niassa (5). As letras eram acompanhadas por melodias em voga na época, incluindo tangos e fados, tradicionais ou não, ainda hoje facilmente reconhecíveis (por ex., A Casa da Marquinhas, de Alfredo Marceneiro, ou a Júlia Florista, da Amália). O seu interesse não é literário mas sim documental, socioantropológico" (...).

(3) Vd post de 1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1): o esplendor de Portugal

" (...) O que o Ribeiro me mandou foi um carderno, de 47 páginas, onde ele conta, em verso, as peripécias da sua atribulada vida militar. Vou chamar a estes cadernos o Cancioneiro de Mansoa, por analogia com o Cancioneiro do Niassa. Está imbuído da ideologia ou (da mística) ranger, não é uma obra colectiva, é escrito por um dos últimos guerreiros do Império e, para mais, ao longo dos anos que se sucederam ao 25 de Abril de 1974 em que o autor também participou... O Cancioneiro do Niassa tem outra origem, outro contexto, outro tom... De qualquer modo, o Magalhães Ribeiro e os seus camaradas de operações especiais não me levarão a mal se eu chamar Cancioneiro de Mansoa ao conjunto destes versos, ditados pela nostalgia do império perdido e pela afirmação do valor e do patriotismo do soldado português" (...).
(4) Vd post de 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel

(5) Vd ainda:

(i) Página do nosso camarada Jorge Santos > A Guerra Colonial > Canções do Niassa

(ii) Página do José Rabaça Gaspar > Cancioneiro do Niassa

"(...) as CANÇÕES que fazem parte da Gravação da Rádio Metangula, da Marinha, em 1969, na voz de João Peneque (Como é evidente, pedimos desculpa das falhas na gravação, que foi recuperada a partir de uma cassete gravada em 1969, pelos bons serviços dos amigos Manuel Aleixo e Manuel Cruz, a quem deixamos os melhores agradecimentos) " (...)

Este camarada fez parte da CART 2326, Os Lobos de Maniamba (Moçambique, 1968/70).


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P575: Album fotográfico do Albano Costa (1): O Geba

O Albano Costa já era fotógrafo (profissional) quando fez a sua comissão de serviço, como 1º cabo, operacional, na CCAÇ 4150 (Guidage, Bigene, Binta, 1973/74).

A sua paixão pela fotografia fez com que ele seja, de longe (com o Humberto Reis) um dos nossos tertulianos com mais documentação sobre a Guiné, de ontem e de hoje.

Ele já aqui nos contou como, em Novembro de 2000, quebradas as últimas resistências psicológicas, voltou à Guiné, agora como simples turista, revisitando sítios por onde estivera vinte e seis anos antes e conhecendo muitos outros de que só ouvira falar...

Nessa viagem de 15 dias, de que já aqui falámos, com um grupo de camaradas, ele não só fez um excelente vídeo (realização, montagem e insorização do Hugo Costa, seu filho) como tirou muitas e óptimas fotografias, que eu já tive o privilégio de ver, em Guifões, Matosinhos, no seu estabelecimento comercial...

Há dias o Albano (que eu só conheci no Natal de 2005) mandou-me umas tantas, para eu matar saudades de Bambadinca e do meu Rio Geba... Com a seguinte nota que eu achei uma delícia:

"Estou a enviar nove fotos tiradas em cima da ponte sobre o rio Geba, à entrada para Bambadinca... As legendas, bem, até nem é preciso, podem ficar no imaginário de cada um....Mas se quiseres ilustrar com texto de tua autoria, estás à vontade, para apróxima eu envio-te mais, vai aos poucos"...

Hoje vou partilhá-las com o resto da tertúlia. Ao vê-las, tenho a sensação de que o tempo não mudou nada: e no entanto, a Guiné-Bissau é hoje um país independente... Pelo menos, a terra continua vermelha, o Rio Geba corre limpo para o mar, as crianças parecem ser felizes e têm sonhos como todas as crianças do mundo, o peixe sai dos rios e entra nas bolanhas, há velhas pirogas abandonadas nas margens e os toca-toca andam cheios de gente viva e alegre pelas estradas esburacadas da Guiné profunda, longe do bidonville que é hoje Bissau...


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > A terra vermelha nas margens do Rio Geba. perto de Bambadinca > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Rio Geba > Pescando o peixe que fará o mafé da próxima refeição > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bamnbadinca > Rio Geba > Esta criança muito provavelmente não tem escola... mas tem a liberdade de pescar no rio > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Rio Geba > Um dia estas crianças serão adultos e terão saudades do seu rio e da sua infância... > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Ponte sobre o Rio Geba > A pescaria foi boa... Será uma ajuda para a dieta alimentar da família > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Ponte sobre o Rio Geba > Uma paragem dos tugas para matar saudades... > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Ponte do Rio Geba > Uma parte do grupo dos tugas: o Albano é os egundo a contar da esquerda > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Nas imediações do Rio Geba > Um toca-toca fazendo-se à estrada, mal asfaltada > Novembro de 2000 > © Albano Costa (2006)

Guiné 63/74 - P574: Álbum fotográfico do Humberto Reis (2): Mansambo


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > 1969 ou 1970 > Vista aérea do aquartelamento. Foto tirada de helicóptero, no sentido leste-oeste (ao fundo, a estrada Bambadinca-Xitole).

Há uma outra vista área do aquartelamento, mais detalhada e com melhor qualidade de imagem, disponível na página sobre Mansambo.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo> 1969 > O Humberto Reis junto ao monumento erigido pelo pessoal da CART 2339 (1968/69) aos mortos da unidade... (1). O nosso camarada haveria de lá voltar, em 1996, vinte e sete anos depois... Desse monumento fúnebre já nada praticamente restava (2). Por detrás do memorial podem ver-se os abrigos subterrâneos, cuja entrada era protegida por fiadas de bidões cheios de areia.

Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Fotos: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd post 7 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DIII: O monumento da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)

(2) Sobre o aquartelamento de Mansambo, construído numa clareira aberta no mato, vd. entre outros posts (há já mais de meia centena de referências a Mansambo no nosso blogue) os seguintes:

28 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCIX: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (1): a água da vida

" (...) Para além dos abrigos subterrâneos à prova de morteiro e de bazuca (pelo menos), e das demais infraestrutuars indispensáveis à vida de uma companhia de quadrícula (refeitório, depósito de géneros, paiol, secretaria, campo de futebol, etc.), a água era talvez o bem mais precioso... Água, água! (...)"

29 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CD: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (2): as CART 2339, 2714, 3493 e 3494

" (...) Hoje publicamos mais algumas das fotos que o ex-furriel miliciano Santos, da CART 2339, nos mandou: os soldados que, além da G-3, também sabiam pegar na pá, na picareta, na enxada, na serra, no balde e na colher da massa, no enxó, no formão, no martelo, etc. para construir abrigos subterrâneos e outras instalações para o pessoal... Com materiais baratos mas frágeis: troncos de palmeira, tijolos de areia e cimento, chapa de zinco, colmo" (...)

30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDI: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (3): Memórias da CART 2339

"Excertos do Diário de um Tuga (L.G.): Mansambo, 17 de Setembro de 1969: Uma clareira aberta no mato a golpes de catana e de motosserra, guarnecida de arame farpado, artilharia e abrigos-casernas à prova de canhão sem recuo (2), eis Mansambo" (...)

24 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXVII: Mansambo e a árvore dos 17 passarinhos

" (...) Quanto à foto de Mansambo, a vista aérea – que é espectacular (...). A zona está totalmente nua, só com uma grande árvore ao fundo que se encontra à entrada do aquartelamento, pois vê-se a bifurcação para a estrada Bambadinca-Xitole (esquerda-direita). Falta ali uma árvore, a tal de referência para o IN, e que os nossos soldados chamavam a árvore dos 17 passarinhos, tal era a quantidade deles, que se situava na parte mais afastada da entrada" (...).

domingo, 26 de fevereiro de 2006

Guiné 63/74 - P573: Convívio anual do Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata)

Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1969 > "Aqui mora a cavalaria": slogan à entrada das instalações do Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (1969/71). Imagem (diapositivo digitalizado) do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

© Humberto Reis (2006)


Guiné > Zona Leste > Bafatá > Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (1969/71) > Emblema: o Esq Rec Fox 2640 teve compo unidade mobilizadora o R C 8 (Cavaleiros da Beira Baixa). A sua divisa era: Quanto mais quente melhor...
© Manuel Mata (2006)


Caro Ex-Combatente:

Eu, Manuel Mata, ex-1º cabo apontador CCM 47, integrado no Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640, aquartelado em Bafatá nos anos 1969/71, sou o organizador dos convívios do referido Esquadrão.

Vamos no presente ano realizar o nosso 15.º Encontro no Restaurante Litoral, na Estrada Nacional n.º 1, em Pombal, agendado para dia 30 de Abril próximo.

Contactos: Telefone: 245996260; Telemóvel: 939344816.

Com os melhores cumprimentos.
Atentamente, Manuel Mata

P.S - Junto envio emblema do Esquadrão. Após várias tentativas de envio para o e-mail do

Guiné 63/74 - P572: Pidjiguiti: resposta do Mário Dias ao Leopoldo Amado

Guiné > Bissalanca > Fotografia tirada na despedida do gerente da NOSOCO, Monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata). O João Rosa, o guarda-livros, está na segunda fila à direita; à sua frente, o 2º da direita, é o Toi Cabral. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau (MD)

© Mário Dias (2006)


Texto do Mário Dias

Caro Luis

Estive a ler atentamente, e com a compreensível dose de emoção, o texto que o Leopoldo Amado anexou à sua mensagem.

Começo por dizer que tão excelente trabalho só poderia vir de alguém que, tal como Leopoldo Amado, seja possuidor de uma extraordinária cultura, conhecimentos académicos e poder de síntese.

Fiquei mais rico e esclarecido sobre as movimentações que existiam no seio dos nacionalistas guineenses, que eu sabia que existiam mas cujos recortes me escapavam (tal como disse em recente post).

Assim, este texto lança um pouco de luz sobre o desconhecimento daquilo que "do outro lado" se passava e confirma o que várias vezes tenho referido: o empolamento na informação dos acontecimentos por parte de ambos os contendores.

Do PAIGC, pela necessidade de afirmação perante a comunidade internacional e apoio psicológico aos seus combatentes. Das nossas tropas... bom, aqui a motivação (isto não passa de uma opinião pessoal) parece-me outra: a vontade de "mostrar resultados" subindo no conceito dos superiores hierárquicos e com isso... todos sabemos. Que me perdoem os muitos que sempre foram verdadeiros nas suas informações e relatórios operacionais. Felizmente, constituem a maioria.

Porém, o resultado prático traduziu-se no exagerar dos feitos praticados, principalmente no número de baixas causadas e, conforme muito bem refere Leopoldo Amado, facilmente chegamos à conclusão que não podem ser as apontadas pelo nosso Estado-Maior.

Outro aspecto referido neste texto prende-se com a intensa actividade existente nos movimentos nacionalistas que vieram, na prática, a desembocar no PAIGC e que, fiquei agora a saber, é bastante posterior ao evento do Pidjuguiti. A minha admiração - que já era muita - pela eficácia conseguida e pelo sigilo de todas as movimentações aumentou bastante mais. Tudo "me passou ao lado".

Em jeito de "desculpa esfarrapada" por tamanha ignorância e ingenuidade tenho a meu favor a pouca idade à época dos factos. Só queria divertir-me como é próprio da idade. Assuntos tão transcentes estavam, confesso, fora das minhas cogitações.

Reiterando os meus agradecimentos e admiração ao Leopoldo Amado, termino respondendo à sua estranheza por eu não ter referido a presença no cais do Pidjiguiti do Domingos Ramos, Constantino Teixeira e outros soldados africanos. Claro que eles lá estiveram, não no recinto do cais propriamente dito, mas nas imediações do mesmo tal como os restantes soldados. Eles faziam parte da companhia que regressava do aeroporto e para lá foi desviada.

Pareceu-me supérfluo estar a nomear a constituição dessa companhia (o que, aliás, nem conseguiria) e que era formada na sua esmagadora maioria por soldados africanos. Não me moveu qualquer espécie de reserva ou tentativa de manipulação com "meias verdades", defeito que não faz parte dos muitos que tenho. Podem todos crer que se alguma omissão ou menor exactidão houver em comentários meus, passados ou futuros, será apenas e exclusivamente por compreensível falha de memória.

Um grande abraço para todos os tertulianos.
Mário Dias

PS - Antes de enviar este mail, fui dar uma espreitadela ao blogue e vi que já começaste a postar o notável texto do Leopoldo Amado. Talvez seja melhor aguardar a publicação integral do mesmo, antes deste meu desabafo, caso aches que deva ser publidado.

Como tem sido recentemente muito referido o João Rosa, guarda-livros (actualmente designados contabilistas ou técnicos de contas) da NOSOCO, resolvi anexar uma fotografia tirada em Bissalanca na despedida do gerente da referida firma, monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata). O João Rosa está na segunda fila à direita; à sua frente, o 2º da direita, é o Toi Cabral. Não sei se será o mesmo que o Luis Cabral refere como um dos principais obreiros na fuga do Carlos Correia. Gostaria obter essa confirmação mas não sei como consegui-la. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau.

Mário

Guiné 63/74 - P571: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - III (e última) Parte

III (e última) parte do texto do Leopoldo Amado, historiador guineense e membro da nossa tertúlia (publicado igualmente no blogue Lamparam II, em post de 21 de Fevereiro de 2006):

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Destaque para o último parágrafo deste importante e oportuno texto, cujo leitura e análise se recomendam aos membros da nossa tertúlia:

" (...) Para lá da obrigação que temos de preservar e partilhar os legados da nossa História comum, é natural e compreensível que subsistam – porventura, subsistirão sempre –, perspectivas interpretativas dissonantes, estas últimas, talvez decorrentes dos novos paradigmas que actualmente consubstanciam o devir das ex-colónias (hoje, países independentes que procuram legitimamente um lugar no contexto africano e no concerto das Nações) e de antiga potência administrante (hoje, um país que se pretende moderno, com uma democracia consolidada e que, legitimamente, aspira a um lugar igualmente digno no contexto europeu e no mundo)".
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Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - III (e última) Parte (*)

Reportando-nos agora ao Pindjiguiti enquanto tal, acontecimento ocorrido na sequência da greve dos trabalhadores do cais de Bissau (Pindjiguiti), a 3 de Agosto de 1959, não nos parece nem relevante, nem curial e nem sensato, atiçar uma estéril polémica acerca do número de trabalhadores mortos ou feridos.

Infelizmente, certamente porque nunca atribuí importância acrescida a questão do número de mortes, não fotocopiei e nem guardei as referências (cotas) de um ou dois relatórios circunstâncias feito então pela PSP que cheguei de manusear e ler nos Arquivos da PIDE/DGS, na Torre do Tombo. No entanto, da leitura desse relatório, fiquei com uma vaga ideia de que os números de mortos aí descritos roçam a casa dos vinte e poucos, não atingindo assim os 50 que tradicionalmente a historiografia oficial do PAIGC assinala. Porém, não se podendo negar a ninguém o interesse em apurar exactamente o número de mortos e feridos de Pindjiguiti, em que ficamos então? No quantitativo que nos é sugerido pela historiografia oficial do PAIGC, do brilhante depoimento de Mário Dias ou da suposição numérica que eu próprio introduzi?

Nos trilhos da procura da verdade, abstendo-nos sempre de emitir qualquer juízo de valor, convenhamo-nos de que persistem ainda questões pertinentes e legítimas a colocar, as quais, entre inúmeras outras plausíveis, podíamos assim tentar alinhavar:

(i) Mário Dias apenas refere-se ao quantitativo dos mortos contados localmente, não se referindo ou ignorando os que eventualmente vieram a morrer na sequência dos ferimentos registados?

(ii) Mário Dias refere-se aos mortos contabilizados na sua presença ou ao quantitativo aferido pela versão que lhe teria chegado ao conhecimento?

(iii) O quantitativo de mortos que alude a historiografia do PAIGC será um caso típico de propaganda?

(iv) Mesmo supondo que o relatório a que me refiro (a existente nos Arquivos da PIDE/DGS) situa, de facto, a ordem de grandezas na casa do vinte e poucos mortos, será que o(s) quantitativo(s) ali estampado(s) correspondem na realidade à verdade dos factos?

Como quer que seja, para lá da veracidade ou não desses números e sem iludirmos com a possibilidade imediatista de virmos a depararmo-mos de forma mágica com toda a verdade, importa sobretudo tomar as declarações dos contendores com cautelas redobradas, seja pela via da confrontação de entrevistas e depoimentos realizados ou a realizar (inclusive com o máximo de sobreviventes ainda vivos e testemunhos presenciais possíveis), seja pela via da prova de autenticidade heurística aplicada ao fenómeno, através de uma aturada investigação que privilegie a confrontação cruzada do teor da documentação disponível com o das entrevistas ou de testemunhos presenciais.

Acresce ainda, já o referimos, a necessidade de adoptarmos uma postura de humildade perante as naturais dúvidas metódicas que imensos aspectos e episódio relativos à guerra colonial versus guerra colonial suscitam, em virtude de ser um acontecimento recente que se reporta-se ao campo da chamada História imediata, que, por isso mesmo, ainda não criou, naturalmente, a necessária estandardização historiográfica susceptível de o conferir um maior grau de sistematização e visibilidade, aliás, razão porque nos seus meandros abundam “zonas cinzentas” cujo grau de verosimilhança ou de distorção, têm ou podem ter diversas e prováveis explicações que vão desde a necessidade de incrementar a investigação que melhore o estado actual dos conhecimentos sobre a matéria, simples desconhecimento metódico, motivações de natureza política, segredo e/ou interesse de Estado, razões de índole “propagandística” ou de deliberada falsificação, tout court.

Os poucos exemplos que a seguir daremos, muitos deles conhecidos do grande público, são ilustrativos do quanto se disse. Nos finais de 1970 em que aludia a 2600 baixas nas forças do PAIGC durante os anos de 1969 e 1970, assim repartidas:

1969 (1038)

Mortos......................614
Feridos.....................259
Capturados..............165
Total.......................1038

1970

Mortos......................895
Feridos.....................449
Capturados................86
Desertores...............132
Total.......................1562


Vê-se claramente que estas estatísticas obedeciam a outros desígnios de propaganda ou da guerra, pois de forma nenhuma podem corresponder a verdade dos factos, na medida em que um exér­cito de guerrilha em que o contingente máximo seria de 5 000, tinha perdido, em dois anos de guerra, 2600 combatentes, sem que a luta tivesse diminuído de intensidade, antes pelo contrário. Isto não pre­cisa de comentários.

To­mando em conta os relatórios se­cretos do Estado-Maior português, as forças do PAIGC sofreram entre 1963 e 1966 as seguintes perdas, «entre outras perdas»:

1963
Mortos......................1 497
Feridos........................240
Capturados.................287
Total........................2 006

1964
Mortos.................1 589
Feridos...................448
Capturados.........1 492
Total.....................3592

1965
Mortos.................1 153
Feridos...................397
Capturados.........1 761
Total.....................3311

1966
Mortos................1 125
Feridos..................256
Capturados...........700
Total....................2081

Como não possuímos dados re­ferentes a 1967 e 1968, iremos con­siderar, para estes anos, a média dos anos anteriores. Assim, teríamos, para cada um deles:

Mortos ................1 336
Feridos ..................335
Capturados ........1 010
Total.....................2681

O que totalizaria, compreen­dendo as pretensas perdas em 1969 e 1970, um total de 18. 889 perdas entre os efectivos do PAIGC no decurso dos 8 anos de luta armada. Se considerarmos as ditas «outras perdas», podemos arredondar este número para 20.000.

Mesmo o observador mais distraí­do ou o menos favorável à causa da libertação por que o PAIGC dizia bater-se, con­cluirá que estes números são a melhor propaganda. Na realidade, numa guerra como que decorreu na Guiné entre 1963 e 1974, e nas con­dições concretas da Guiné, um movimento de libertação que tenha sofrido 20.000 perdas e que conti­nuava com sucesso o combate contra forças numérica e materialmente bem superiores, realizaria um feito singular, senão um milagre.

Na altura da publicação desses números de nada serviu uma entrevista do Governador Militar de Bissau à Televisão portuguesa, na qual afirmou: “No caso particular da Guiné, dos seus 550 mil habitantes, um número que não atinge os 80 000 abandonou o ter­ritório nacional ou encontra-se re­fugiado no mato».

Ora, sabe-se que, segundo os números apre­sentados pela ONU na altura, cerca de 60 mil habitantes da Guiné estavam refugiados, só no Senegal. E como 80.000 menos 60000 é igual a 20.000, devemos concluir que, segundo os números oficiais dos balanços portugueses, secretos ou tornados públicos, eles teriam já matado, ferido ou capturado todas as pessoas que, na Guiné, esta­riam refugiadas na floresta.

Um outro exemplo que ilustra o quanto se disse, prende-se com a espectaculosidade com que os serviços de informação e propaganda do PAIGC (sem dúvida, de longe o melhor e com maior audiência africana e internacional de todos movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas) reivindicou em Julho de 1970 o derrube de um helicóptero que transportava uma importante delegação parlamentar portuguesa na Guiné, quando, na verdade, o aparelho não teria resistido a um forte tornado que acabou por vitimar todos os seus ocupantes.

Aliás, bastaria uma varredura comparativa dos Comunicados de Guerra do PAIGC ou os relatórios escuta das emissões radiofundidas do PAIGC (existentes no Arquivo da PIDE/DGS) com os informes militares do Exército Português na Guiné (Intrep’s, Sitrep, Supintrep’s, etc.,) para darmos conta que a propaganda entre os contendores desencadeava frequentemente uma verdadeira atmosfera guerra de comunicados e que tanto de um lado como doutro, porque compreendiam justamente que a propaganda era uma importantíssima dimensão da guerra, faziam tudo para que os mesmos obedecessem a estratégias militares, mas igualmente a desígnios político-diplomáticos, para além da acção psicossocial.

De resto, esses comunicados tinham também um denominador comum: não raras vezes, eram elaborados com base numa torrente de factos cuja verosimilhança mantinha uma relação de base com o real acontecido, mas apenas como ponto de partida para a partir daí ampliar-se ou amputar-se de forma mitigada os desenvolvimentos ipso factu provenientes do teatro das operações, obviamente, com artifícios e/ou subterfúgios que reforçam a propensão de confundir desde o mais neutral, céptico ou atento observador.

Com efeito, à montante do ciclo fechado da guerra colonial versus guerra de libertação, não é mais possível obliterar-se o direito que assiste a todos de qualificar este ou aquele episódio como um embuste político ou militar ou uma monstruosa mentira, apesar de termos de reconhecer que, do ponto de vista estritamente da investigação histórica, ganhar-se-ia qualitativamente muito mais em procurar indagar as fontes disponíveis e tentar compreender e se possível interpretar as pretensas ou as aludidas distorções, oficiais ou oficiosas que sejam, ao invés de sobre elas se tecer juízos de valor que só aparentemente se nos apresentam como axiomas, quando frequentemente ressentem-se de uma assaz descontextualização factual, nas sua imbricadas conexões e bifurcações.

À distância dos anos da guerra, confidenciou-me um ex-elemento dos Serviços de Informação e Propaganda do PAIGC das circunstâncias em que foi mais ou menos redigido o Comunicado de Guerra que reivindicou para o PAIGC o derrube do helicóptero que então vitimou os deputados portugueses que nele viajavam. Com efeito, disse-me ele que quando abordou Amílcar Cabral, indagando-o se apenas devia no Comunicado noticiar a morte na Guiné de uma importante delegação parlamentar portuguesa, este respondeu-o: “Olha, a verdade é que, de facto, nada tivemos que ver com o sucedido, mas estamos em guerra. E em guerra, acontecimentos desses não caem do céu sem que dele tiremos os dividendos possíveis”.

Assim, pois, o PAIGC elaborou o Comunicado a que se deu a maior difusão internacional. Quanto a real dimensão do sucedido, não obstante os desmentidos vários das autoridades militares portuguesas, os mesmo não colheram provimento nos areópagos internacionais da altura, tanto mais que o PAIGC já tinha granjeado enorme prestígio em matéria de organização político-militar e contava já, no seu palmarés, inclusivamente, com o derrube confirmado de algumas importantes aeronaves da FAP (Força Aérea Portuguesa).

Mas voltemos ao Pindjiguiti, afinal, objecto principal do comentário que nos propusemos escrever, e que já vai longe, à propósito do texto de Mário Dias. Em primeiro lugar, ocorre-nos rebater a ideia redutora de que Pindjiguiti teria apenas sido uma mera reivindicação laboral cujos contornos escapou ao controle das autoridades que, em consequência, viram-se na obrigação e na contingência de usar da força. Se por um lado demostramos já que à jusante do processo libertário guineense Pindjiguiti circunscreve-se como um elo importante na cadeia de acontecimentos directa ou indirectamente a ele relacionados, pelo que não é e nem pode ser tomado como um acontecimento isolado, pontual ou circunstancial, por outro, ocorre questionar, como normalmente se faz em situações de tumultos, se na decorrência de Pindjiguiti teria havido, de facto, real necessidade de uso da força das armas por parte das autoridades coloniais? Por outras palavras, será que a resposta das autoridades coloniais teria sido proporcional à gravidade e a suposta violência gerada pelos grevistas?

Porém, se relativamente ao enquadramento histórico de Pindjiguiti nos posicionamos inequivocamente do lado da tese que aponta para a necessidade de sua contextualização histórica, já em relação as circunstâncias guindaram esta mera ou complexa contenda laboral que, estranhamente, apenas se saldou em mortos num dos lados da contenda, em lugar de aqui e acolá conjecturar com base em juízos de valor, preferimos por agora manter uma postura de dúvida metódica e aguardar serenamente que se faça mais luz sobre o estado actual dos conhecimentos sobre a problemática, se assim o podemos chamar, na media em que, muito para além das prováveis ou reais lacunas existentes na historiografia de um e outro lado, é iniludível do nosso lado a convicção segundo a qual Pindjiguiti representou e representa (com paralelismo português talvez similar ao alcance simbólico que engendrou o sequestro do “Santa Maria” por Henrique Galvão), com a toda a sua carga simbólica, um importante factor de consciencialização e um ponto de viragem decisivo no processo libertário da Guiné-Bissau.

Esta interpretação e esta percepção, independentemente da forma como foi depois objecto de tratamento por parte da historiografia oficial do PAIGC, teve-a avant la lettre Amílcar Cabral, com a clarividência e a capacidade peculiares de antever as situações que sempre o caracterizaram.

Quando a XVª Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua reunião plenária de 14 de Dezembro de 1960, aprovou a resolução 1514, mediante a qual estabelecia os princípios para a concessão da independência aos territórios sob domínio colonial e proclamava solenemente “a necessidade de eliminar, rápida e incondicionalmente, o colonia­lismo em todas as suas formas e manifestações”, Amílcar Cabral e os nacionalistas das ex-colónias reunidos à sua volta (primeiro na CEI (Casa dos Estudantes do Império) e depois no Centro de Estudos Africanos e no MAC, convieram em 192 da necessidade de uma acção espectacular com vista a chamar à atenção da comunidade internacional sobre a situação das colónias portuguesas, particularmente os de África.

Nesse sentido, Amílcar Cabral e Mário de Andrade deslocaram-se várias vezes a Londres entre 1959 e 1960, pelo que datam dessa época as primeiras denúncias internacionais do colonialismo português, os quais foram sobretudo feitas pelo escritor e africanista britânico Basil Davidson, secundados também com conferências de imprensa que aqui e acolá Abel Djassi (pseudónimo de Amílcar Cabral) e Mário de Andrade foram dando em Londres e que acabaram por servir de antecâmara a grande conferência de imprensa que os nacionalistas das colónias portuguesas realizaram depois em Dezembro de 1960.

Assim, escolhida a cidade de Londres, por razões óbvias, obtido o apoio de certos círculos hostis ao colonialismo português e redigido em língua inglesa uma brochura que Amílcar Cabral intitulou Facts About Portugal's African Colonies, o caso que agora nos interessa, realizou-se uma concorrida conferência de imprensa apresentada por parte de cada um dos representantes das colónias portuguesas, versando todos eles sobre a situação das mesmas, dando ênfase ao massacres,(pelo PAI: Amílcar Cabral e Aristides Pereira, pelo MPLA: Mário de Andrade, Viriato da Cruz e Américo Boa Vida e pela Goa League: João Cabral) (29).

É nessa brochura da autoria Amílcar Cabral faz no plano internacional a primeira denúncia de Pindjiguiti, de resto, texto esse que apresentou como o primeiro relatório perante o Conselho especial da ONU em Junho de 1962 e a 12 de Dezembro de 1962, desta feita, quando prestou declarações perante a 4ª Comissão da ONU.

Tratava-se, claro está, de conquistar a adesão, desavisada ou não, dos círculos londrinos e da comunidade internacional, pelo que não se difícil aferir-se ou excluir a hipótese de que a descrição desses massacres teriam sido ou não alvos de excessivo empolamento, tanto mais que no intróito do Facts About Portugal's African Colonies Amílcar Cabral foi incisivo ao espelhar os objectivos subjacentes: “ (...) é preciso conhecer e dar a conhecer os objectivos do inimigo para melhor o combater – tarefa que urge realizar não só junto dos militantes directamente engajados, como junto da opinião africana e internacional, ainda mal informada e muitas vezes iludida pela ideologia colonial portuguesa (...)”.

Porém, é importante referir-se que as denúncias internacionais de Pindjiguiti e que – catalisaram em medida considerável a sua interiorização e longevidade no imaginário colectivo guineense – foram posteriores ao “Memorandum” e “Nota ao Governo Português” endereçados por Amílcar Cabral ao Governo português, o que demonstra que desde cedo o PAI optou sempre por enquadrar e mesmo legitimar o seu substracto ideológico, pelo menos em termos de enunciado, identificando-a com os princípios da legalidade internacional, mormente com o postulado das Nações Unidas e dos Direitos Humanos.

No fundo, o objectivo que Amílcar Cabral perseguia perante o silêncio das autoridades coloniais portuguesas era a obtenção da legalidade e atmosfera internacionais propícias ao desencadeamento da guerra, segundo o postulado que ele próprio definiu como “supremo recurso”, e que acabou de certa maneira por se incorporar no Direito Internacional, ou seja, o direito de recurso a todos os meios possíveis, inclusivamente os violentos, para erradicar o colonialismo. Aliás, não foi por acaso que no dia 25 de Junho de 1962, foi atacado a vila de Catió (destruição da jangada de Bedanda e cortes de fios telefónicos e estradas com abatises), marcando-se do lado do PAIGC à passagem a acção armada, pois a luta armada em só começaria no ano seguinte como ataque ao quartel de Tite, a 23 de Janeiro de 1963.

Daí que, para além das denúncias de caracter económico, político ou humanitário, Amílcar Cabral tivesse também apelado no Facts About Portugal's African Colonies “(...)para todas as forças democráticas e progressistas do mundo, para os povos e para os Governos anti-colonialistas, para as organizações sindicais, da juventude, das mulheres e dos estudantes, para as organizações jurídicas internacionais e, em particular, para os Governos dos países africanos e asiáticos, para que um auxílio concreto e imediato seja concedido ao nosso povo em todos os planos, com vista à libertação dos patriotas presos e ao desenvolvimento da nossa luta de libertação nacional. (...)”. Em particular, renovava “ (...) o seu veemente apelo às Nações Unidas para que, em defesa do seu próprio prestígio aos olhos do mundo, se decidam a tomar, sem demora, medidas eficazes para acabar com os crimes dos colonialistas portugueses no nosso país e obrigar o Governo de Salazar a respeitar o direito do nosso povo à autodeterminação e à independência nacional. (...)”.

Ora, para lá do provável ou mesmo real empolamento de Pindjiguiti ou da justeza ou não das formas e conceitos, sempre discutíveis, sobre a forma como Pindjiguiti foi etiquetado (contenda laboral, massacre ou carnificina) ou ainda do quantitativo de mortes que se saldou na decorrência do acontecimento enquanto tal, temos para nós que o que se afigura importante é o reconhecimento da importância e o alcance históricos que o mesmo teve, à jusante e à montante da guerra colonial/guerra de libertação, no contexto do processo libertário do povo guineense.

Aliás, não foi por acaso que depois de Pindjiguiti o PAIGC logrou atingir uma assinalável mobilização que permitiu o desencadeamento da luta armada de libertação. Também, não foi por acaso que no decorrer da guerra colonial/ guerra de libertação, invariavelmente, o PAIGC normalmente assinalava a efeméride com ataques simultâneos a várias localidades, inclusivamente os centros urbanos, sobretudo a partir de 1968.

Não foi igualmente por acaso que em 1962, os vários partidos e movimentos de libertação que pululavam em Dakar e Conakry (mais contra o PAIGC do que contra o colonialismo português) decidiram criar a 3 de Agosto desse mesmo uma frente de luta, a FLING. Por fim, não também por acaso que Spínola, por ironia do destino, mas com objectivos claramente à vista, procedeu, no âmbito da sua política da “Guiné Melhor”, a 3 de Agosto de 1969, a uma espectacular libertação de cerca de uma centena de prisioneiros políticos, dos quais Rafael Barbosa, Ex-Presidente do PAIGC, bem como todos os que se encontravam na colónia penal de Tarrafal em Cabo Verde, e no Forte de Roçadas, em Angola, em pleno deserto de Moçamedes.

Para fechar este texto – que inicialmente apenas tinha o propósito de tecer um comentário em torno do texto de Mário Dias ­ –, mas que acabou por se alongar demasiadamente, pois comporta(va) a preocupação de subsidiariamente ir dando vazão ao repto lançado por Luís Graça no sentido de trazer à colação elementos disponíveis dos Arquivos. Como dizia, para fechar este texto, direi apenas que, mesmo não subscrevendo algumas ideias expressas por Mário Dias, as quais não obstante procurei rebater com a devida lisura e respectiva contra-argumentação de que me fui valendo, tanto na minha tese de doutoramento como em outras investigações, afirmo e reitero a importância de que se reveste o texto de Mário Dias, de resto, uma contribuição extraordinária para o actual estado do conhecimento sobre a matéria, na justa medida em que, muito para além da importância narrativa e historiográfica que encerra, voluntária ou involuntariamente, quebra o tabú de abordagem sobre um passado recente (a guerra colonial/guerra de libertação) com o qual, talvez por razões compreensíveis e atinentes a uma lenta e demorada catarse ainda não reconciliou com o mesmo os actores passivos dessa mesma guerra, mas também por se afigurar como mais um testemunho presencial, privilegiado, é certo, a juntar-se a muito poucos existentes (30).

Pese embora as normais diferenças de leitura do événementiel, fundado este último em distintas interpretações que se nos opõe relativamente a interpretação do mesmo sujeito histórico (o que é salutar), e ainda as naturais reservas que me suscitaram o importante testemunho presencial de Mário Dias (tanto mais que parte do mesmo reporta-se a uma situação de retransmissão do que lhe foi transmitido (a chamada e imprescindível Oral History tem dessas armadilhas) e porque também, estranhamente, não se referiu a presença no cais de Pindjiguiti, de soldados africanos Domingos Ramos (seu conhecido) e outros como o Constantino Teixeira, vulgo Tchutchú Axon – futuros comandantes da guerrilha do PAIGC (31), do meu lado não restam dúvidas relativamente a preocupações ou motivações que a ambos move – e nisso estamos conversados! –: alertar para a necessidade de uma cada vez maior necessidade de desmistificação e clarificação das naturais “zonas cinzentas” (as “meias-verdades ou mesmo “inverdades”, certamente existentes) que ainda conspurcam a novíssima abordagem histórica da guerra colonial/guerra de libertação, em ordem à reposição, tanto quanto possível, da(s) verdade(s) histórica(s) a que legitimamente todos aspiram e, a não menos importante constatação, no sentido em que ninguém é detentor de toda a verdade histórica sobre a guerra colonial/guerra de libertação e qualquer que ela(s) seja(m), não pode(m), pelo menos por agora, não pode pretender ser única e nem axiomática, tanto mais que, para lá da obrigação que temos de preservar e partilhar os legados da nossa História comum, é natural e compreensível que subsistam – porventura, subsistirão sempre, perspectivas interpretativas dissonantes, estas últimas, talvez decorrentes dos novos paradigmas que actualmente consubstanciam o devir das ex-colónias (hoje, países independentes que procuram legitimamente um lugar no contexto africano e no concerto das Nações) e de antiga potência administrante (hoje, um país que se pretende moderno, com uma democracia consolidada e que, legitimamente, aspira a um lugar igualmente digno no contexto europeu e no mundo).

Leopoldo Amado
Fevereiro de 2005
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Notas do autor:


(29) Marcelino dos Santos estava no grupo mas não participou

(30) Ocorrem-me presentemente apenas os testemunhos presenciais de Upadai Gomes, ex-marinheiro sobrevivente de Pindjiguiti, entretanto já falecido, e de Carlos Correia, ex-Primeiro-Ministro da Guiné-Bissau, que presenciou os acontecimentos a partir das imediações e cercanias do cais de Pindjiguiti) os quais, salvo o erro, foram publicados, há pelo menos dez ou mais anos, no Jornal “Nô Pintcha”, em jeito de evocação histórica da efeméride (3 de Agosto é feriado nacional na Guiné-Bissau

(31) Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado.

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(*) Vd posts anteriores:

25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVII: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte