sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4791: Estórias do Mário Pinto (7): “Maria, a minha querida bajuda”


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71, enviou-nos mais uma estória:

Amigos e Camaradas,

Tinha o meu “carregador” cheio e uma bala na câmara, puxei a culatra atrás e os “tiros” começaram a sair.

Como tem sido hábito, ultimamente, tenho vindo a rebuscar os meus velhos textos de Mamapatá, que me têm avivado a memória e me têm transportado a esses meus anos de juventude, e tenho-os enviado para partilhar convosco no “nosso” blogue.

Acho que descobri uma fórmula mágica do rejuvenescimento.

Aqui vos envio mais uma das estórias que então memorizei:

"A MINHA QUERIDA BAJUDA"

Quando a minha companhia chegou a Mampatá, tudo era precário a começar pela inexistência de instalações, pelo que logo começamos, com o nosso habitual e engenhoso desenrascanço, a procurar abrigos em plena tabanca, com a complacência, mais ou menos consentida e com sinais de maior ou menor simpatia, dos naturais da localidade.

Depressa nos adaptamos àquele lugar e às condições rudes em que vivíamos. Aos poucos e a troco de algum “patacão”, lá fomos arranjando locais próprios, o mais possível a nosso jeito e satisfação mínimas, para as nossas futuras “moranças”.

No mercado de trabalho de Mampatá procuramos arranjar alguém, para nos lavar a roupa e, nalguns casos, " lavar o corpinho" como era conhecido o tratamento físico e mais íntimo na época.

Tive a sorte de conhecer a Maria - uma bajuda Fula, linda e limpa -, que me tratava da roupa e da minha “habitação”.

Ao princípio olhava-me de lado, com ar desconfiado e recatado, fruto evidente dos aconselhamentos das “Mulheres Grandes” e da doutrina da “religião de Alá”, que ela professava e que, logicamente, proibia as mulheres de conviverem com estranhos e, ou, de raça diferente.

A estes factos juntava-se a sua tenra juventude, dado ela ser ainda bajuda, pelo que a Maria se refugiava em curtos e imperceptíveis monossílabos, para responder às minhas perguntas.

Só conseguia desfrutar o seu arrebatador e lindo sorriso, quando lhe pagava os serviços prestados, ou lhe dava alguma prenda (ronco) que conseguia angariar.

Ainda hoje cismo, por não me conseguir lembrar onde desencantava o raio do “ronco”, com que periodicamente lhe dava as prendas…

Com o correr dos tempos e já integrados nos conceitos e hábitos dos naturais da aldeia, e com a confiança dos seus “Homens Grandes”, lá fomos abrindo as portas da confiança e do convívio mais intrínseco com aquela maravilhosa gente guineense.

A Maria bem como as restantes bajudas, também se foram tornando mais afáveis e cúmplices com a tropa ali estacionada.

Quem não via com bons olhos a coisa e começou a ficar preocupado, foi o nosso comandante, porque o pessoal começava a dar sinais de desejos “suspeitos”, pelas bajudas que por ali circulavam de maminhas rijas e ao léu.

Quando tive a infelicidade, ou a “sorte”, de ser ferido com uma bala num braço - que obrigou a ficar engessado e ao peito -, fiquei grande parte do tempo do restabelecimento em Mampatá.

Passei então os dias a divagar pela tabanca, onde os “Homens Grandes” me demonstravam um respeito enorme, como se eu tivesse sido protagonista de um grande feito.

A “minha querida” Maria nesse período sabe-se lá porquê, tornou-se mais assídua aos meus aposentos, ficando mais tempo que o habitual comigo e procurando ser amável e carinhosa, não temendo, como até ali receava, o falatório das “Mulheres Grandes”.

Para minha surpresa agradável, num qualquer dia radiante do ano de 1970, o inevitável aconteceu, a Maria - “minha” bajuda preferida -, entregou-se-me totalmente numa tarde infindável de prazer e luxúria sexual.

Parece que ainda hoje revejo e sinto aquele corpinho mais lindo e brilhante, na sua inebriante e magnética cor de ébano.

Ficávamos tardes inteiras a “fazer amor” e repartindo mil conversas próprias das nossas sadias e frescas juventudes.

Passada a surpresa inicial e sanados na prática os meus desejos mal contidos há bastante tempo no meu pensamento, comecei a reparar que a minha querida bajuda, não correspondia com qualquer tipo de sinal de prazer aos meus ímpetos amorosos, que eu julgava que deveriam ser exteriorizados e próprios da sua idade.

Questionei-a admirado, e ela esclareceu a minha ignorância (como leigo que sou dos ditames do Alcorão), que na sua condição de Fula, sendo a sua religião Islâmica, seguiam a tradição cumprindo o “fanado” (que consistia na ablação do clitóris da mulher), como rezava o seu livro religioso.

Por outras palavras, a mulher é completamente e sadicamente, destituída do prazer sexual, sendo este apenas e incrivelmente propriedade do homem.

Estranha religião esta - pensei e comentei eu.

Desde esse dia passei a respeitar mais a Maria, a minha lavadeira e amante que, durante este espaço de tempo da minha recuperação, foi minha muleta de sustentação de tempos que foram, para mim, muito problemáticos.

Num período curto de Férias que gozei na Metrópole, deixei a minha “morança” entregue à Maria, para que a mesma fosse cuidando dela...

Para meu espanto quando regressei a Maria já não estava em Mampatá, tinha casado com um “Homem Grande” de Bafatá, que a tinha vindo buscar, pagando o que o seu pai pediu, como era tradição ancestral na Guiné, para a levar com ele.

Fiquei transtornado e abalado com a situação, durante bastante tempo, até arranjar outra lavadeira - a Ahua.

Nunca mais a vi a Maria.

Lembro-me que antes de regressar a Portugal e quando estava a despedir-me das gentes de Mampatá, a sua mãe me dizer que ela tinha tido um filho. Rapidamente fiz as contas” ao tempo passado, desde que deixei de a ver, e verifiquei que não havia qualquer possibilidade de ser eu o pai.

Graças a Deus. Fiquei aliviado!

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Foto: © Mário Pinto (2009). Direitos reservados.
__________
Notas de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

5 de Agosto de 2009 >
Guiné 63/74 - P4788: Estórias do Mário Pinto (6): “O Puto da Mancarra”

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4790: In Memoriam (30): França Soares, ex-Fur Mil da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832, faleceu em 7 de Janeiro de 2009 (Os editores)

França Soares, ex-Fur Mil da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832, Mansoa, Infandre e Braia, 1971/73, falecido em 7 de Janeiro de 2009.


1. Caros camaradas
Já pela noite, quando verificava as mensagens mais recentes, deparei com uma que me deixou profundamente triste.

Em resposta à minha mensagem colectiva de envio da lista actualizada de tertulianos do nosso Blogue, veio uma de Vasco Soares, filho do nosso tertuliano França Soares, a comunicar que ele tinha falecido no dia 7 de Janeiro passado.

França Soares (*) entrou para a nossa Tabanca, quando se apresentou na sua mensagem de 29 de Dezembro de 2007. Na verdade nunca participou activamente no Blogue, como tantos outros camaradas, mas nunca supusemos que ele nos tivesse deixado tão cedo.

E assim a Tabanca ficou mais vazia. O espaço livre de quem nos deixa é incomensuravelmente maior que o espaço que alguém ocupa quando entra.

Paz à sua alma.


O Fur Mil França Soares


2. Em nome da tertúlia enviei esta mensagem ao nosso amigo Vasco:

Caro Vasco
As nossas mais sinceras condolências pelo desaparecimento tão precoce de seu pai.
Lamentamos não termos sido informados na altura do falecimento do nosso camarada, mas compreendemos a posição da família, nem sempre sensível a estas coisas de velhos combatentes. Além de mais, nestas horas tão difíceis há um sem número de coisas bem mais importantes para tratar.

Vamos publicar ainda hoje um poste que será a última homenagem que faremos ao nosso camarada França Soares, que servirá também para comunicar à restante Tertúlia o seu falecimento.

Quando um de nós que desaparece, desaparece também um pouco da memória de uma guerra que marcou a nossa geração.

Transmita à restante família o nosso pesar pela perda do vosso entequerido, cujo nome continuará a ocupar o seu lugar na listagem dos tertulianos do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Pelo ano em que o seu pai foi para a Guiné, vou considerar que ele terá nascido em 1949. Se assim não fôr, por favor mande o ano correcto do seu nascimento para eu corrigir.

Com os melhores cumprimentos
Carlos Vinhal
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2404: Tabanca Grande (48): França Soares, ex-Fur Mil da CCAÇ 3305/BCAÇ 3832 (Mansoa, 1971/73)

4 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4780: In Memoriam (29): Manuel Canhão, ex-Fur Mil (Guiné, 1968/70), faleceu ontem, dia 3 de Agosto de 2009 (Jorge Teixeira)

Guiné 63/74 - P4789: (Ex)citações (36): As minhas lágrimas há muito secaram (Vítor Junqueira)

1. Mensagem de Vítor Junqueira (*), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 - Os Barões, (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, com data de 5 de Agosto de 2009:

Amigo Carlos,
Em anexo segue mais uma das minhas reflexões vespertinas, que sujeito ao teu veridicto.
Um abraço (especial) do,
VJ


2. Comentário ao Poste 4773 do J. Mexia Alves

Meu prezado amigo e camarada Mexia Alves:

A nossa relação vem de há pouco. Tenho pena, pois sinto que estaria mais rico se o fado da vida que tu escreves e cantas tão bem, nos tivesse proporcionado a convivialidade… que não tivemos!

Tenho a mania de que consigo percepcionar a aura que envolve a alma humana. A tua, espelha a imagem de um homem frontal, íntegro e sensível. Só por isso, e também porque falas um dialecto da nossa língua que, pelos vistos, poucos entendem, aqui estou eu a deixar um comentário ao teu post 4773 (**).

Dizes tu, Joaquim, que choras lágrimas de indignação e revolta, quando em certas circunstâncias, a tua consciência te atira à cara, o destino que nós portugueses, (i) responsavelmente, reservámos àqueles que foram dos nossos mais nobres, valentes e leais concidadãos. E muitos são-no ainda, pois embora trazendo no bolso um BI que indica outra nacionalidade, o coração continua português. Entre esses anónimos portugueses de alma, estarão antigos soldados teus, amigos que te protegiam e que protegeste, conforme escreves.

Não me foi dada a honra, como a ti, de comandar naturais daquele território. Mas tive a sorte de, em inúmeras ocasiões, os saber a meu lado empenhados no mesmo combate. Dominava-me então o sentimento de que em grande medida e graças a eles, a minha vida e segurança estavam em boas mãos. Hoje, como há quase quarenta anos, são credores do meu respeito e gratidão.

Por isso mesmo quero dizer-te, Joaquim, sem lágrimas porque as minhas há muito secaram quando com elas reguei a semente da raiva, que partilho a tua revolta quanto à indiferença com que colectiva e institucionalmente tratámos estas pessoas. E suas famílias.

Ainda não há muito tempo, acompanhei comovido através da televisão, a forma como a nação guineense se organizou para receber a visita de uma delegação nacional de alto nível. Nas manifestações populares de boas-vindas (merecemo-las?), muito povo. E no meio desse povo, alguns velhos soldados de caderneta militar na mão, delida e amarelada, mas a meus olhos com a força de um estandarte de guerra, tentavam aproximar-se das autoridades portuguesas com um único desejo: que os reconhecessem como antigos combatentes que dedicaram uma boa parte das suas vidas à nossa pátria e às suas FA, a quem juraram fidelidade. Como seria de esperar, a reacção foi mais uma vez, uma profunda e ostensiva indiferença. Pergunto-me se teria sido assim tão difícil estender a mão àquele punhado de homens, quando é público e notório que se distribuem euros e honrarias por tantos que se limitaram a fazer currículo mamando na teta da república.

Enquanto os que alimentaram a porca com o seu sangue, foram contemplados com o manto do opróbrio e a condenação mais ou menos sumária e explícita de que tiveram o que mereciam. Conforme já li, algures.

Para a grande maioria, é demasiado tarde, já não existe auxílio ou reparação possíveis. Por isso, e quanto àqueles que Deus já levou ou Lhe foram remetidos à força de bala, abandonados à sua sorte e alvos de vinganças cruéis e desnecessárias, peço ao Criador que os compense pela injustiça e indignidade com que Portugal os tratou. Para nós (todos), a penitência da eterna vergonha.

E não me venham os teóricos das guerras militarmente perdidas, das retiradas gloriosas, das descolonizações exemplares, justificar o injustificável. Conheço-lhes a cartilha. A dos tiques disto e daquilo, dos primarismos antidemocráticos, dos salazarismos bafientos ou das mentalidade neocolonialistas, entre as muitas tags que constam do seu repertório. Aqui trata-se apenas de dignidade, justiça e honra. Quando uma sociedade vira as costas a estes valores e assobia para o lado perante reivindicações como as destes nossos antigos camaradas, será que a prazo, vai ter pernas para ir a algum lado?

Um abraço do,
V. Junqueira

OBS: Negrito da responsabilidade do Editor
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4643: Blogoterapia (113): Saudades do blogue dos primeiros tempos, em que tudo se contava na primeira pessoa (Vítor Junqueira)

(**) Vd. poste de 3 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4773: Blogoterapia (119): Ainda choro e me revolto por todas as nossas mentiras... (Joaquim Mexia Alves, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)

Vd. último poste da série de 14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4684: (Ex)citações (35): Milicianos ou do Quadro Permanente, todos fomos combatentes (Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P4788: Estórias do Mário Pinto (6): “O Puto da Mancarra”


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71, enviou-nos mais uma estória:

Amigos e Camaradas,

Ao rebuscar os meus velhos apontamentos dei com este velhinho texto, que achei, pelo interesse e dramatismo do seu conteúdo, dever partilhá-lo com toda a nossa Tabanca Grande e ao qual dei o título de:

"O PUTO DA MANCARRA"

As ruas de Bissau, invariavelmente, durante o dia e pelo entrar da noite, encontravam-se plenas de viaturas e gente civil e militar, num pintalgado de fardas da tropa portuguesa, trajes tradicionais africanos e outras vestimentas diversas, que emprestavam à paisagem daquela cidade, cenários de uma diversidade colorida mística, rara e atractiva.

Sós, ou em pequenos grupos, esta gente pululava pelas ruas e estabelecimentos, em permanente rodopio, ora atarefada a tratar das suas vidas, ora calma e serenamente a cumprir as suas habituais rotinas, que, regra geral, acabavam com uma rumagem a um dos vários cafés e esplanadas da cidade.

Um dos putos "reguilas" que gravitavam à nossa volta

Ali, sentados e saciando a sede, bebericando descansadamente a sua cervejinha, entre ruidosos burburinhos de risos e conversas, normalmente sobre acontecimentos e novidades dos pontos mais longínquos da Guiné, o pessoal era cercado pelos persistentes vendedores de ronco (1) e pelos incansáveis e simpáticos miúdos da mancarra (2), que negociavam os seus produtos em troca de alguns pesos (3).

O Mamadú Jaló era um desses putos, filho de uma mulher de origem “papel”, que vivia nos arredores da cidade e tinha uma irmã, que lavava roupa a alguns dos nossos militares em serviço no Quartel-General. Um dia essa sua irmã, perdeu-se de amores por um deles, nativo local, tendo engravidado e abalado na sua companhia para Bula.

O puto, com a partida da sua irmã, ficou a ser o único meio que podia sustentar a sua mãe, de origem “papel” e que todos os dias desesperava, na sua pobre Tabanca, pela falta de dinheiro indispensável à sua subsistência e do seu querido filho.

Desenrascado como era, o Mamadú procurou trabalho no cais de descarga de Pijiguiti onde, por “artes mágicas” durante o dia, ia surripiando nas descargas dos batelões, que à data eram propriedade da CUF, alguns vagos de amendoim torrado e salgado.

À noite, com o resultado obtido desse “produto desviado”, deambulava pelas ruas fracamente iluminadas de Bissau, de esplanada em esplanada, vendendo o “seu” amendoim torrado e salgado, aos inúmeros tropas que com ele brincavam.

Findos os seus precários trabalhos diários, o puto da mancarra contava o magro “patacão” (4) angariado, que mal dava para as despesas de sobrevivência do seu corpito magro e franzino, e, muito menos, para ajudar a sua tão necessitada mãe, que ele, melhor que ninguém sabia, o esperava na Tabanca com ansiedade.

A mãe ainda nova, vistosa e dona um corpo rijo, e bem feito, era então viúva de um homem mais velho, que com a morte do seu companheiro, que um dia a tinha trazido de Farim (sua terra natal), se viu de repente com dois filhos nos braços.

Claro que com estes atributos físicos era assediada por todos os homens, naturais e militares, mas nunca cedeu às pretensões de quem a procurava, apenas, para as tão desejadas “loucuras” de uma noite de amor.

Até que, um certo dia, fraquejou amorosamente e se entregou a um militar, que através de estudadas e manhosas artes de sedução, e promessas ludibriosas a conquistou. O que é certo, é que o “conquistador” depressa se fartou dela, ficando a desgraçada mulher novamente sozinha e dependente do parco pecúlio, que habitualmente auferia o seu filho, Mamadú Jaló.

Farta de lutar e desanimada pela sua má sorte e infelicidade, começou a “vender” o corpo aos homens que a procuravam, para as tais noites de prazer, tornando-se assim em mais uma prostituta do Pilão.

O Mamadú Jaló, nunca mais foi visto para os lados do Pijiguiti ou na venda de
Mancarra, havendo quem afirmasse que ele, ultimamente, era angariador de clientes para a sua mãe.

Duas tristes vidas que o destino marcou e obrigou, sem apelo nem compaixão, a baixarem ao mais baixo nível da condição humana, que é para muitos desamparados e desprotegidos, o complicado acto da sobrevivência.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Legenda:

(1) – Artesanato muito diversificado
(2) - Amendoim na Guiné e Cabo Verde
(3) – Escudos (antiga moeda portuguesa)
(4) – Dinheiro, porventos

Foto: © Eduardo Ribeiro (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

(*) O Mário Pinto transmitiu-me que tem vários textos deste género, que acabamos de ler sobre um dos putos giros e “chatos”, que pululavam à nossa volta na pequena e aconchegada cidade de Bissau, impingindo-nos “manga de ronco” e que eu considero mais uma "peçinha" complementar do infinito puzzle, que pretendemos seja o nosso blogue.

São pequenas e saudosas memórias (umas melhores, outras menos boas), que vão também contribuindo para as nossas delícias literárias.

Mais disse o Mário, que tem vindo a contar-nos estas estórias, que ele designa como pequenos ensaios, do livro que ele pretende escrever num futuro próximo.

Ficamos pois a aguardar ansiosamente a sua publicação.

(**) Vd. último poste da série em:

4 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4777: Estórias do Mário Pinto (5): “O Palácio das Confusões” e o “Pilão”

Guiné 63/74 - P4787: Tabanca Grande (170): Carlos Adrião Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Bissau, Pirada, Bajocunda e Paúnca (1964/66)

1. Mensagem de Carlos Adrião Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 4 de Agosto de 2009:

Bom dia amigos:

Chamo-me Carlos Adrião Geraldes, vivo em Viana do Castelo, tenho sessenta e oito anos e estive na Guiné como alferes miliciano nos anos de 1964 e 1966, integrado na Compª Art.ª 676.

Passei por Bissau, Pirada, Bajocunda e Paúnca onde permaneci mais tempo comandando o 1.º Grupo de Combate daquela Companhia, até ser rendido em Abril de 1966.

Desde essa época deixei de ter quaisquer contactos com os antigos companheiros.

Com esta oportunidade, que agora surge com o vosso blogue, espero conseguir melhores resultados.

Como tantos outros tenho dedicado o meu tempo de reformado a escrever as memórias da experiência africana e gostaria de as compartilhar com todos.

Junto duas fotos minhas, uma da Guiné e outra actual.

Até breve e muito obrigado por tudo.
Geraldes, C.


2. Comentário de CV:

Caro Carlos Geraldes,
Muito obrigado por quereres pertencer à Tabanca Grande.
Em boa hora o fazes, porque, como dizes, estás reformado e a escrever as tuas memórias de ex-combatente. Manifestas a tua vontade de as partilhares connosco. Ainda bem, porque a finalidade deste Blogue é precisamente recolher histórias e fotografias referentes à guerra da Guiné. Como poderás verificar temos já um razoável espólio de histórias contadas por ex-combatentes de todas as Armas e classes.

Esperamos começar a receber em breve textos teus para publicação.

Dizes que nunca mais tiveste contacto com os teus camaradas, mas curiosamente em Dezembro de 2008, dirigiu-se a nós o ex-Fur Mil Liberal Correia à procura de camaradas, referindo que já tinha feito uma tentativa, sem resultados, para te encontar.

Podes ler no nosso poste 3819 (*) o seguinte:

1. Mensagem de Liberal Correia, ex-Fur Mil da CART 676, com data de 4 de Dezembro de 2008:

Camaradas, as minhas saudações a todos da grande tabanca.

Fiz parte da Cart 676 com a patente (esta é forte) de Furriel Miliciano.
Estive em intervenção adestrito ao BCAÇ 600 de Abril a Setembro de 1964. Depois fomos colocados em Pirada, Bajocunda e Paunca.

Neste momento estou no estrangeiro e não tenho o meu arquivo comigo. Não poderei enviar fotos. Gostaria que me ajudassem a encontrar algum camarada da minha Unidade.
Como a malta foi mobilizada pelo RAP2 -Serra do Pilar - Gaia, a maioria é do Norte. Há uns anos encontrei o Primeiro Sargento Machado que era de Vila Real e três soldados mais o Vilaça da Póvoa de Varzim. Depois perdi o rasto. Procurei por duas vezes o Capitão (hoje Coronel) Álvaro Seco em Coimbra, mas nunca o consegui encontrar. Procurei também o Alferes Geraldes em Viana do Castelo e não consegui nada de concreto.
[...]

Já agora uma nota pessoal, para te dizer que, na minha opinião, moras numa das cidades mais bonitas de Portugal.

Guardo de Viana do Castelo algumas boas recordações e, porque a lei da morte mos foi subtraindo, já só tenho um familiar na Rua da Bandeira. A minha costela minhota terá por aí ainda uns primos, mas já desconhecidos, e como Esteves é o que há mais no Minho...

Voltando ao trabalho, deixo-te em nome dos editores e de toda a tertúlia um fraterno abraço de boas-vindas.

Teu novo camarada e amigo
Carlos E. Vinhal
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3819: Em busca de... (63): Camaradas e cadastro da CART 676 (Liberal Correia/José Martins)

Vd. último poste da série de 5 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4783: Tabanca Grande (169): António Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 2406/BCAÇ 2852, Olossato e Saltinho (1968/70)

Guiné 63/74 - P4786: Fauna & Flora (26): Make Love, Not War, ou as cobras que morreram na guerra a fazer amor (Rui Silva)

1. Mensagem de Rui Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67, com data de 4 de Agosto de 2009:

Caros Luís, Vinhal, Briote e M. Ribeiro:

Recebam um grande abraço mais votos de muita saúde, extensivos a todos os ex-combatentes da Guiné, ainda mais para aqueles que, de algum modo, ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.

Segue uma pequena história para o capítulo Cobras (na Guiné), que julgo existir no Blogue (*).

Nas minhas memórias “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa” também há uma pequena referência às cobras (apenas a foto seguinte e respectiva legenda) que deparamos na Guiné.


Numa das patrulhas de rotina feitas ao redor do quartel de Olossato, demos com 2 grandes cobras juntas (julgamos que em pleno acto sexual). Foram abatidas e o seu grande peso obrigou a que fossem arrastadas e puxadas até ao aquartelamento através de improvisadas tiras de ligaduras (gaze) da bolsa do enfermeiro


A história no texto seguinte é contada “à posteriori” com muito pouca margem de erro.

Fazia parte da nossa operacionalidade na zona de Olossato fazermos regularmente patrulhas a uma determinada distância e na periferia do aquartelamento.
Estas patrulhas visavam se o inimigo andaria por ali perto a fazer das dele: abrigos, ciladas, etc.

Certa vez numa patrulha que coube ser feita pelo meu Grupo de Combate e alguns indígenas, ouvem-se os da frente:

- Cuidado estão aqui 2 cobras! - Era o costume. Descansado ninguém andava, principalmente fora do arame farpado e então de vez em quando soava um alerta, normalmente vindo da frente da coluna. Desta vez tratavam-se de duas gigantescas cobras (giboias?) que se atravessaram no caminho da 816.

Logo de seguida ao grito de alerta, uma rajada de G3. Era assim, em tudo que mexia lá ia fogo, e logo de seguida outro arrepio não se fez esperar:

- Cuidado uma fugiu! - Para quem estava metido em capim alto, logo pensou (pensei eu): queres ver que ela vai escolher-me a mim?

Coração acelera e sangue não corre, até que passados alguns (longos) minutos alguém diz:

- Está aqui, Cuidado! - Há última sílaba outra rajada. E pronto a segunda cobra também foi abatida.

Uf! É cada sobressalto.

Então duas cobras encostadinhas uma à outra, a copularem naturalmente, e aparece um grupo de tugas a intrometer-se no acto e mais do que isso a liquidá-las de pronto?

Duplo crime: Não deixar amar e matar.

Bom, para as transportar só de arraste e então da bolsa do enfermeiro saíram tiras de gaze para puxá-las. Sei que havia a necessidade de revezamento no transporte de tão pesados que eram aqueles animais.

Houve mais casos com cobras e até lagartos de grande porte (Iguanas ?).

E quem não se lembra dos sardões (às dezenas) de peito azul a fazerem flexões no emaranhado dos troncos das palmeiras cortados e empilhados no chão.

Muitas das vezes quem nos safava eram os próprios indígenas: quando os víamos brincar com cobras logo víamos que dali não vinha azar, mas quando os víamos fugir e a ficarem brancos, por simpatia toca a correr também.

Então o que se passa, já depois de termos corrido atrás deles sem saber bem porquê. Foge Furriel cobra mata num minuto.

A reacção deles às cobras comandava o nosso procedimento imediato e em conformidade. Aparafusava eu: como ali, a santa ignorância se transformava em douto conhecimento de causa?

A cobra que eles mais temiam era uma comprida (1,5-2 metros) e delgada, aí uns 2-3 centímetros (mamba-negra?).

Uma vez vimos uma pendurada no ramo de uma árvore. Fizemo-la cair a tiro e depois um preto, com cuidado extremo e sem deixar ninguém aproximar-se, chegou perto dela e com a catana cortou-lhe a cabeça e de imediato enterrou-a. Não precisamos de perguntar nada…
__________

Notas de CV:

(*) Vd. postes com datas de:

9 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4484: Fauna & flora (20): Histórias de grandes serpentes: da jibóia de 7 metros (Paulo Raposo) ao irã-cego (Clara Amante)

9 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4491: Fauna & flora (21): Surucucus (Lachesis muta muta) que cantavam nas praias dos Bijagós (Joaquim Mexia Alves)

11 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4512: Fauna & flora (23): “Por pouco não nos caçamos a nós próprios… em Cufar” (Santos Oliveira)

Vd. último poste da série de 17 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4543: Fauna & Flora (25): Cobras & Bichas (Manuel Maia)

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4785: Histórias de José Marques Ferreira (5): Rádio “Voz da Liberdade” também mentia!

1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, que foi Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65, enviou-nos com data de 02 de Agosto de 2009, mais uma curiosa estória:

Caros Camaradas e Tertulianos;

As minhas estórias têm sido simples, sem “suspense” algum e sem pretensão de querer tirar o sono, ou relembrar macabras e catastróficas situações. Nada disso. A minha guerra foi outra, como aqui já disse.

Hoje a estória é sobre:

Rádio voz da liberdade também mentia!

Ingoré.

A primeira companhia a utilizar um território bem definido e delimitado na Guiné, mas demasiado extenso para tão pouca gente, foi a minha CCAÇ 462.

Muito agradeço ao camarada que fez uma lista das companhias, que passaram por Mansoa, onde a CCAÇ 462 está incluída, ao tempo - 1963-1965 –, por ter ido substituir, naquela localidade, uma secção.


Não havia lá nada, nem sequer as condições mínimas e indispensáveis para podermos sobreviver. Tudo teve que ser construído de raiz, a partir do… zero.

Mas a história que vos quero contar não é sobre este assunto, que apenas serviu para um pequeno intróito afim de lembrar aos meus caros camaradas, aquilo que foi dito nas minhas estórias anteriores.

Como militares, tínhamos sempre (e de que maneira diga-se) a guarda montada, em estratégicos postos de vigia, principalmente durante os períodos nocturnos.

Nesses períodos de vigia, para poder fazer “andar” os ponteiros dos relógios mais rapidamente, levávamos o nosso “receptor” (transístor – pequeno rádio -, que funcionava a pilhas), que se vendia às “carradas” na Guiné, geralmente da marca Hitachi.

Como eu sabia, antes de embarcar, da existência de uma emissora do IN – A voz da liberdade -, que emitia propaganda contra o regime de Salazar/Caetano, assim que as oportunidades surgiam, também eu a escutava, por motivos lógicos e óbvios sem levantar suspeitas, através de um auscultador (já usado naquela época), nos meus períodos de sentinela, nos tais postos de vigia.

Era por demais conhecida uma das vozes de “trovão” e determinada de um homem, chamado Manuel Alegre, na sua identificação mais abreviada, que por sinal era meu conterrâneo de concelho, e eu lá o ia ouvindo nas suas emissões a partir de Argel.

É claro que já não me lembro da maior parte do conteúdo, daquilo que ele ia dizendo nas suas emissões, mas há uma passagem naqueles anos idos de 63-65, em que ele noticiou um “facto” passado na Guiné, relativamente perto do local onde eu estava, de tal forma bombástico e terrível, que dificilmente esquecerei.

Dizia Manuel Alegre então numa das suas locuções que, dias antes na estrada Bula-Bigene-Bissorã, o PAIGC teria desencadeado forte ataque «ao exército colonial e do regime fascista» (era mais ou menos assim a sua definição), numa emboscada às NT, que provocou cerca de uma centena de mortes entre os nossos militares, entre outras “façanhas” menos bombásticas que o nosso pessoal teria também sofrido.

Quando ouvi aquilo, pensei com os meus botões: “Que grande mentira”. Mas, como estava ali sozinho e não podia desvendar o que acabava de ouvir naquela estação de rádio, por palavras do Manuel Alegre. Ainda por cima, havia muito pouco tempo em que eu tinha estado nas redondezas do local da noticiada mortandade, na mencionada estrada, e nada me constou acerca da anunciada “chacina” e da respectiva “operação” dos guerrilheiros IN.

Quero com isto dizer que se do nosso lado as coisas eram publicitadas e apresentadas da forma que mais convinha, do outro lado também se mentia sem despudor… se é que na guerra, mesmo daquele tipo, fosse obrigatório existir qualquer pudor…

O que era preciso, era impressionar e… desmotivar a outra banda.

E aí meus amigos, valia tudo!

Para todos um abraço,
J.M. Ferreira

Foto: © José Marques Ferreira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4784: Em busca de... (83): Companheiros de viagem para a Guiné em 25OUT66 (António Delmar R. Pereira)

1. Mensagem de António Delmar Rodrigues Pereira, com data de 2 de Agosto de 2009:

Camarada Luís Graça.

Procuro camaradas da rendição individual que embarcaram para a Guiné no navio 'Alfredo da Silva' em 25 de Outubro de 1966; desembarque em Bissau em 03 de Novembro de 1966 e regressaram com embarque em Bissau no navio Niassa em 30 de Outubro de 1968; desembarque em Lisboa em 06 de Novembro de 1968.

Sendo leitor assíduo do blogue, é a primeira vez que me dirijo.

O meu nome é António Delmar Rodrigues Pereira e era conhecido, por alguns, por Delmar d'Âncora por, fazer uns desenhos e ter a mania das ciências e dos inventos, um camarada, por maldade, me comparou a Da Vinci.

Éramos cerca de oitenta camaradas e regressámos todos. Eu como alguns de nós, fomos combatentes do chamado ar condicionado dos quartéis e repartições de Bissau.

Bem Haja.

Cumprimentos.
António Delmar R. Pereira
adelmarodrigues@sapo.pt


Navio Alfredo da Slva

Navio Niassa

Fotos: © Navios Mercantes Portugueses. Com a devida vénia


Bissau, 1969 > Ponte Cais e Ihéu do Rei no Estuário do Rio Geba

Foto: © Carlos Silva (2009). Direitos reservados. Com a devida vénia

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4771: Em busca de... (82): Domingos Alves procura pessoal da CCAV 8352, Guiné 1973/74

Guiné 63/74 - P4783: Tabanca Grande (169): António Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 2406/BCAÇ 2852, Olossato e Saltinho (1968/70)

1. Mensagem de António Dias, ex-Alf Mil da CCAÇ 2406/BCAÇ 2852, Olossato e Saltinho, 1968/70, com data de 1 de Agosto de 2009:

Apresenta-se o ex-Alf Mil António Dias, CCAÇ 2406/BCAÇ 2852, Olossato-Saltinho, 1968/70.

Sou pira nestas andanças da net e desde já agradeço o esforço do camarada Henrique Matos, além da sua paciência para me iniciar nesta guerra.

Pois tive de ficar para a liquidatária e o Chefe da 7.ª Rep não me queria deixar vir de avião, pagando eu e o sargento a viagem.

Aguentei 8 dias e só depois de ameaças me deu o almejado OK. A minha Companhia já tinha embarcado há um mês!

Haverá mais estórias e fotos.

Cumprimento toda a Tabanca Grande
António Dias


2. Comentário de CV

Caro António Dias, bem-vindo ao Blogue do Luís Graça. Entra que a Tabanca tem muito espaço.

Como no teu caso, ultimamente estamos a ser contactados por imensos camaradas que só agora estão a aprimorar os conhecimentos de informática para poderem colaborar no nosso Blogue.

É muito positivo que o pessoal da nossa geração, principalmente aqueles cujas funções profissionais não exigiram trabalhar com estas maquinetas infernais, adquiram os conhecimentos mínimos para poderem navegar na internete, resolverem montes de problemas por esta via, e acederem ao um mundo de informação, doutro modo praticamente inacessível.

Na verdade, desde a democratização da acessibilidade à Internete, e a proliferação de Blogues especializados nas mais diversas matérias, cada um de nós, segundo os seus conhecimentos, por vezes empíricos, nos vamos familiarizando com esta tecnologia. Bonito de ver velhotes (ainda não é o nosso caso) mexendo no teclado e comunicando por meios que não entendem.

O nosso Editor Luís Graça, aproveitando a onda, criou este fenómeno de popularidade entre os ex-combatentes da Guiné, que já extravasa para além de nós, sendo este Blogue alvo de consulta por imensa gente curiosa ou estudantes de História.

Caro Dias, cá esperamos a tua colaboração. Obrigado por te dirigires a nós e quereres fazer parte da nossa tertúlia.

Recebe um abraço de boas-vindas da malta.

O camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Ver último poste da serie de 4 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4778: Tabanca Grande (168): Armando Pires, ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã (1969/70)

Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)

1. Mais uma crónica do Cherno Baldé, enviada em 31 de Julho último, com as memórias do seu tempo de menino e moço em Fajonquito (*):


Ambientes e ambiguidades > O meu amigo Julio e as brigas de futebol

por Cherno Baldé



O Júllio era um garoto muito estimado entre os colegas do grupo de Sambaro Djau, bem constituído, duro que nem um pau esculpido e ágil como um animal selvagem. No futebol de salão era o mestre no drible de frente a frente. O seu nome verdadeiro era Abibo. Ficámos amigos logo a seguir ao nosso primeiro duelo. Os bons adversários respeitam-se mutuamente, não é?...

Ele trabalhava na caserna de um dos pelotões da companhia, uma construção em betão armado enterrada alguns metros debaixo do solo e onde se alojavam mais de 20 homens e que estava situada nos confins do aquartelamento. Nós, que éramos crianças e naturais da terra, na altura, não sentíamos o efeito do calor, mas muitos anos depois, quando me recoradava daqueles homens brancos metidos naquele buraco, mal conseguia imaginar o tamanho do sacrifício a que estavam sujeitos.

Ele ficou a ser o Júlio e eu o Chico, nomes emprestados a dois técnicos africanos que tinham vindo a Fajonquito para efectuar a reparação de alguma avaria da rádio de transmissões do quartel. Desse dia para a frente passámos a constituir um duo infernal no futebol juvenil.

Para além da irreverência e alma de desportistas natos, unia-nos o gosto da aventura e a frequência do quartel o nosso palco de actuação predilecto. Ao contrário dos outros rapazes da mesma idade, tínhamos a particularidade de andar sempre de calções em saia, sem ligações entre as pernas, a violencia da prática de futebol e a vagabundagem constante não permitiam tanto aprumo e tambem éramos daqueles que raramente voltavam a casa para o habitual banho da tarde e a troca de roupas, a água lamacenta da bolanha para nós ja era suficiente mesmo se pareciamos mais com porcos de mato com a lama branca da bolanha a cobrir a maior parte do corpo e os olhos cor de tijolo.

Na altura toda a gente queria ser o Pelé ou o Eusébio, sobretudo este último que estava muito em voga. Mas nem tudo era assim tão simples, os mais fortes é que escolhiam primeiro, se o Sambaro era Eusébio, então tínhamos que contentar com outros nomes menos sonantes, o baixinho Simões, por exemplo, quem conhecia o Simões?..

Para nós tudo o que era afro era melhor, isto enchia-nos de orgulho contrabalançando assim um pouco a superioridade evidente dos brancos que, mesmo sendo nossos amigos não deixavam de ser diferentes de nós, na verdade, esta fronteira racial nunca deixou de existir e de se manifestar no comportamento dos actores em cena, verificando-se uma espécie de invasão ou interpenetração de comportamentos estranhos, a cultura e educação tradicional de parte a parte e em especial dentro das nossas moranças que a insolência e incontinência dos soldados no baixo do escalão da hierarquia militar, e não só, agudizavam cada dia mais.

Será que podia ser doutra forma?... Não se esqueçam, estamos no princípio dos anos 70 e já existe no ar uma certa africanizaçao dos espíritos e começa a apontar uma certa confrontação atiçada pelos desafios de futebol entre africanos (que ou são tropas auxiliares em preparação ou serviçais no quartel) contra soldados portugueses, que sempre terminavam em brigas, sem consequencias graves, de resto.

Nós ja tínhamos os nossos atletas preferidos entre os africanos, claro, mesmo se a vantagem era quase sempre do lado dos brancos mais fortes e exímios em jogadas rápidas e golpes traiçoeiros de bola parada. Quando havia briga, os brancos venciam na mesma. Não eram soldados preparados para a guerra?... Os africanos tomavam a sua desforra durante os bailes da noite, com ritmos de Angola e do Congo com a luz de vácuo meio apagada para apalpar, na escuridão, os corpos redondos e suados das bajudas nas coladeiras.

O mal estava feito e o fosso ganhava contornos de um racismo ainda primário e de um proto-nacionalismo africano. Na verdade, o que parecia ser, na nossa opinião, o início de um conflito entre raças nao era senão o confronto nascido da vontade de suplantar o outro, o estranho e usurpador que, na realidade, era considerado superior e logo dominador no exíguo espaço da aldeia que constituia o palco central do cenário dos actores envolvidos na peça.

Hoje, passados que foram os anos e depois de todas as verdades e inverdades â volta das independencias, as vitórias e as derrotas no palmarés dos clubes que uns e outros pertenceram, por vontade própria ou por força das circunstâncias (pondo de parte, só por alguns segundos, os ideais e a obra do Amílcar Cabral), ainda questiono-me se a essência da nossa "gloriosa luta de libertação nacional" não terá sido isso mesmo: A vontade de suplantar o outro, o dominador, e de ocupar o seu lugar mas no sentido de que tudo continue na mesma, apenas mudando a sua posição de baixo para cima, afastando para isso o outro, o estranho que o impedia de usufruir de privilégios e de ser o epicentro das atenções das imaculadas bajudas.

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:

2 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4767: Blogoterapia (118): Os Fulas, o PAIGC e... os tugas (Cherno Baldé / Luís Graça)

27 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

Guiné 63/74 - P4781: Também quero homenagear os nossos picadores (J. Mexia Alves)

1. Mensagem de J. Mexia Alves (*), ex-Alf Mil da CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52 (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), com data de 3 de Agosto de 2009:

Caros camarigos editores

Tenho andado ocupado com outras guerras, mas não tenho deixado de vir ao fogo acariciador da fogueira da nossa Tabanca.

Por isso aqui vai um texto de homenagem que também quero fazer aos picadores (**).

Peço-vos que me acusem a recepção do dito cujo, visto que por vezes esta coisa falha e os textos não vos chegam às mãos.

Abraço fortemente camarigo para todos do
Joaquim Mexia Alves


2. Em o poste 966...

Caro Luís Graça,

Quero dar as boas vindas ao Mexia Alves. Lembro-me que ele, à época, estava completamente apanhado. Era boa praça.

Recordo-me dele muito bem e de um incidente no início de 1973, numa farra em Bambadinca, em que estava o Major de Operações do Batalhão [BART 3873], os alferes e furriéis da CCAÇ 12 e o Mexia Alves [Alf Mil Op Especiais, comandante do PEL CAÇ NAT 52].

Armou-se uma bronca a propósito de uns versos de uma canção, adaptada ao Comandante do Batalhão (Ten Cor António Tiago, já falecido), em que ele era tratado por Manel Ceguinho, o que levou o Major a dizer ao Mexia Alves que "não estávamos ali para armar em cobardes".

Ficou um ambiente de cortar à faca, que se ultrapassou com uma tirada do Mexia Alves, na qual dizia:

- Cobarde, eu, meu Major ?!... Eu que pico a estrada com os pés... que avanço à frente do Pelotão quando não há picadores ?!...

O Major colocou um sorriso amarelo e recolheu aos seus aposentos e nós lá ficámos a beber e a cantar as canções habituais. Umas bem sérias e outras de baixo nível, bem ordinárias como a da famosa Maria Bardajona...

Um abraço a todos,
António Duarte



Os Picadores

Caros camarigos

Reproduzo o post 966 (***), para também fazer a minha homenagem aos picadores.

Sempre me admirou a coragem daqueles homens que com uma pica na mão, desafiavam constantemente as leis das probabilidades.

Lembremo-nos que a pica era um dos artefactos militares mais modernos da longa panóplia de armamento que o nosso Exército fornecia às tropas, aqui muito bem descrito pelo Luís Graça:

«espantosa tecnologia que era um pau, menos comprido que a altura de um homem, maneirinho, direito, suficientemente pesado para dar sensibilidade à mão, terminando numa das extremidades por um prego grosso e bem afiado...»

Enquanto o resto da tropa seguia junta, para se protegerem uns aos outros, aqueles homens seguiam destacados na frente, separados dos outros, para que, imagine-se, se rebentassem alguma mina os outros não fossem atingidos.

Coisa estranha e cruel, numa tropa tão solidária!

Mas era assim que tinha de ser e era assim que se fazia.

Heróis desconhecidos a maior parte deles, porque em cada saída para as colunas ou para a mata, eles executavam o seu acto heróico à frente dos nossos olhos, conscientemente.

Por isso a reprodução do post acima, para demonstrar que só um gajo muito apanhado do clima, executaria tal missão.

Bem, é que um dia, não faço ideia porquê, decidimos ir do Mato Cão a Missirá pela estrada que já não era percorrida há longos meses.

Pegámos no burrinho como apoio e lá fomos nós estrada fora, com os picadores à frente.

Mas a coisa estava a demorar muito tempo e era preciso voltar no mesmo dia pelo que, o Alferes da coisa, (este vosso humilde criado), já muito apanhado, decidiu ir durante um pouco à frente, servindo-se dos seus pés como picas.

Há um ditado que nos diz que, “ao menino e ao borracho, põe Deus a mão por baixo” que aqui neste caso se poderia alterar para, “ao militar que é tolo, protege-o Deus de ficar num bolo”.

Depois, se bem me lembro, optámos por tentar seguir paralelamente à dita estrada.

Não houve problemas e regressámos ao palácio do Mato Cão em paz e sossego.

Um abraço sentido aos picadores.
Abraço camarigo para todos
Joaquim Mexia Alves


As Picas em acção na estrada Catió/Ganjola

Foto e legenda: © Jorge Teixeira (Portojo) (2009). Direitos reservados.


Bironque, 03DEZ71 > Esta mina AC felizmente foi detectada pelo método científico da vareta, ou pica.

Foto e legenda: © Carlos Vinhal (2009). Direitos reservados.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4773: Blogoterapia (119): Ainda choro e me revolto por todas as nossas mentiras... (Joaquim Mexia Alves, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)

(**) Vd. poste de 30 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4760: Pensamento do dia (17): Recordando as Picas (Jorge Teixeira)

(***) Vd. poste de 17 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P966: O Mexia Alves que eu conheci em Bambadinca (António Duarte, CCAÇ 12, 1973)

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4780: In Memoriam (29): Manuel Canhão, ex-Fur Mil (Guiné, 1968/70), faleceu ontem, dia 3 de Agosto de 2009 (Jorge Teixeira/Portojo)

1. Mensagem de hoje, dia 4 de Agosto de 2009, do nosso camarada e tertuliano Jorge Teixeira (Portojo):

Amigo Vinhal

O Manuel Canhão deixou-nos.

Camarada de muitos de nós desde Vendas Novas em 1967 até à Guiné, amigo, desenfiado, mulherengo, aceitava todas as brincadeiras com o maior desportivismo.

Tantas estórias que temos dele e com ele, algumas já as referi num post antigo, deixa principalmente o nosso ainda pequeno grupo do Bando dos Furrieis do Café Progresso bem tristes.

A maior parte dos camaradas que com ele conviveu muitos momentos, espalharam-se principalmente pelas ex-Companhias independentes desde a CART 2410 até à 2414.

O corpo está em câmara ardente na Igreja de Gueifães, Maia, realizando-se o funeral amanhã pelas 10 horas.

Jorge Teixeira
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Guiné 63/74 - P4779: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (5): “O Campo de Ourique” da CCAÇ 675, Binta - 1964/66

1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 5ª estória, com data de 03 de Agosto de 2009, a que deu o seguinte título:

O «Campo de Ourique»

Carlos Dias Rodrigues de seu nome era um alfacinha de gema. Cenógrafo na vida civil foi na “675” 1º Cabo – Auto.



Opinioso e de palavra fácil percebia-se que se sentia melhor junto de Sargentos e Oficiais de que junto dos seus «pares».


Era metódico e cuidadoso na sua especialidade e, sempre que podia, questionava as ordens e... não deixava de "dar troco" ao seu furriel das «viaturas»...


O «Campo de Ourique» não tinha complexos de inferioridade...


Durante a fase mais complicada da vida da Companhia em termos operacionais «apanhou» com um mini-estilhaço de granada que o fez cliente assíduo do Posto de Socorros.


Queixava-se da cabeça e tantas queixas fez que a sua «crónica» dor de cabeça nem sempre foi levada muito a sério.


Pelo menos com a «seriedade» que o «Campo de Ourique» julgava que merecia. Julgamos que o «mini-estilhaçado» nunca foi localizado!


Depois na 2ª. Fase da Companhia – regresso das populações e melhorias do aquartelamento – foi sempre colaborante embora com pecadilho de anunciar «super-produções» que...demoraram o seu tempo a realizar.


Mas finalmente fez obra e foi o grande responsável pelo embelezamento da “Avenida Capitão de Binta”, com uma gigantesca “estrela” feita com garrafas de cerveja... Garrafas vazias, está claro...

Depois... no regresso foi presença assídua nos convívios da Companhia – referindo sempre que estava por perto alguém ligado ao S. Saúde o célebre estilhaço da cabeça.
Com estilhaço ou sem ele... esteve ligado a um dos momentos mais conseguidos de uma das festas realizadas em Lisboa.

Ligado ao teatro – recordamos que era cenógrafo – conseguiu bilhetes para a malta da “675” que, nesse ano, depois do almoço, foi assistir a uma peça que era protagonizada por Jacinto Ramos e Irene Cruz.

Durante a representação o actor principal – um “grande senhor” do teatro e do cinema – interrompeu a cena para dedicar algumas simpáticas palavras aos ex-combatentes da “675”, que se encontravam na plateia.

Foi um momento muito bonito que ficámos a dever ao...Campo de Ourique.

Depois os anos passaram e... o «Campo de Ourique» foi sempre aparecendo mas percebia-se que já não era o mesmo.

Num dos últimos convívios ficámos ao pé dele. Conversámos muito e ouvimos da sua boca um testemunho impressionante.

Tinha um filho apanhado pela droga. Estava a fazer uma «autêntica Via Sacra» pelos locais onde se vendia e consumia droga para tentar perceber o que tinha levado o seu filho para aquela «zona da vida»... tão perto da morte.

Confessou-me que já tinha ido vezes sem conta ao Casal Ventoso e não conseguia perceber a opção de vida... dos drogados.

Era um homem amargurado. Muito amargurado.

Desconhecemos como acabou o drama que o atormentava.

Julgamos que... não acabou bem.

Um homem da cidade, da grande cidade, refugiou-se nos últimos anos da sua vida na Madeira. Na Ilha de Porto Santo...

Onde veio a falecer em 18 de Outubro de 2005.

Recordamos com respeito o «Campo de Ourique».

Carregou penas bem pesadas. Que a terra lhe seja leve.

Em tempo:

Telefonou-me ontem o Tavares. O ex-Alferes Belmiro Tavares, da CCaç. 675. Havia boas notícias do filho do “Campo de Ourique”.

O rapaz estava curado. Tinha casado e era um homem novo.

Caro Carlos estejas onde estiveres aqui fica a boa nova e, por favor, descansa em paz.

Os teus amigos( ainda por cá…) podem agora ,de novo, recordar-te com um sorriso .

Algures no tempo… a tua gigantesca “estrela” da Avenida Capitão de Binta brilha agora de novo na noite do Norte da Guiné “Estrela” feita com garrafas de cerveja... Garrafas vazias, está claro...mas com a tua marca de cenógrafo, de homem das artes, de artista, de sonhador!.

Boa noite, Carlos.

Um abraço Amigo,
JERO
Fur Mil da CCAÇ 675
Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P4778: Tabanca Grande (168): Armando Pires, ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã (1969/70)

1. Mensagem de Armando Pires, ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70, com data de 1 de Agosto de 2009:

Caro Editor.
Em anexo segue o texto bem com as fotos que o ilustram.
Qualquer dúvida pode ser prontamente respondida pelo telefone 96 293 88 17.
Se momentanteamente não me fôr possível atender, é porque estou na praia.
Mas descanse que a 16 já cá estou.

Um grande abraço do
Armando Pires


2. Camaradas.

Com vossa licença, e sem dispêndio para a Fazenda Nacional, apresenta-se o ex-Furriel Miliciano Armando Pires, Enfermeiro da CCS do BCAÇ 2861, Guiné, Fev69 a Dez70.

E apresento-me de baraço ao pescoço, porque faz tempo que entrei aqui na Tabanca, furtivamente, sem um olá, como vai isso, abri armários, saltitei de prateleira em prateleira, vasculhei gavetas, lendo-vos a alma e vendo como o tempo vos (nos) enrugou o rosto.

Reconheço que não foi bonito.

Todavia, tenho a atenuante de não vos ter tomado a aldeia num golpe de mão premeditado. Estava, até, longe de saber as vossas coordenadas. Não foi um de vós que me ensinou o caminho, mas alguém que vos conhece.

A coisa foi assim:

Estava eu à conversa com um camarada de profissão acerca de um trabalho que ele realizava sobre a guerra na Guiné e perguntei-lhe:

- Olha lá, onde é que descobriste esse matreco?

- Pesquisei no blog de um tipo chamado Luís Graça. Não conheces?.

E porque não conhecia, deu-me o endereço e foi assim que cá vim parar.

Entrei pela porta dentro a gritar pela minha gente, mas deles, da minha gente, não estava cá ninguém.

De todo o Batalhão, que incluía as CCAÇ 2464, 2465 e 2466, nem um só homem respondeu ao chamamento.

Talvez vocês os conheçam.

É tudo malta que andou ali pelo sector de Bula e Bissorã.

Bula primeiro, chegamos lá em Fevereiro, 14. As Companhias foram distribuídas por Binar, Biambe, Encheia e arredores.

Em Agosto de 69 vim de férias, a casa, e quando regressei, no final do mês, foi-me dito que ia de DO para Bissorã, porque a sede do Batalhão passara para lá.

Bom, não encontrei aqui nenhum dos meus, mas, de tanto esgravatar, na segunda gaveta do armário da entrada, dei de caras com uma pasta que, ao abri-la, até me deu estremeções.

Havia ali nomes que não me eram estranhos, relatos que reconheci.

Desde logo quando o Leão Lopes, numa resposta ao Benjamim, do BART 2917, dizia lembrar-se de um tal Vinagre que admitia ser de Coruche.

Antes que me perca nas entrelhinhas, fica já um apelo ao Leão para, quando puderes, me explicares essa do tal Vinagre.

Porque Vinagre, de Coruche, sem margem para dúvidas, era o Alferes de Informações do meu Batalhão e não me consta que o Polidoro tenha ficado com ele na Guiné.

Seria familiar? Podemos tirar isso a limpo?

Se puder ser agradeço e prometo explicar depois porquê.

E por falar em Polidoro, vejam só, num comentário do Luís Graça li esta passagem:

- "sendo então comandante (do BART 2917) o ten-cor Polidoro Monteiro".

Ó Luís, o Polidoro, João Polidoro Monteiro, foi comandante do meu Batalhão, do 2861.

Chegou periquito a Bissorã, em finais de Novembro de 1969, vindo de Moçambique, onde comandou a Guarda Fiscal, para render o Ten Cor César Correia da Silva.

Estou a vê-lo, ao Polidoro, galões reluzentes sobre um camuflado acabadinho de saír do Casão Militar, olhos protegidos pelas lentes escuras de uns inevitáveis Ray-Ban's, pingalim tremelicando na mão direita, voz forte e decidida advertindo a força em parada:

- Não me tomem por periquito, que de guerra venho eu farto.

Depois, a ordem que obrigava todos os militares a andarem devidamente fardados e ataviados quando não em serviço (???).

Se esta não fosse já um mimo, a cereja em cima do bolo veio de seguida.

Íamos fazer exercícios de protecção ao aquartelamento.

Poupo-vos ao relato e consequências, embora fossem de ir às lágrimas.

Já mais tarimbado na função, o Paulo Santiago, ex-comandante do Pel Caç Nat 53, aqui nos relatos da Tabanca mostra-o, ao Polidoro, numa foto (1) tirada nas margens do Geba, ali no Mato Cão, exibindo um magnifico troféu de caça.

Com a mais respeitosa vénia ao Santiago, recoloco aqui a tal foto, ao lado de uma outra (2) tirada por mim, em Bissorã, pedindo-lhes que descubram a semelhança.

(1) - Guiné > Mato Cão > 1971

(2) - Bissorã > 1970 > Festa tribal. À esquerda o Alf Capelão Batista, à direita o Ten Cor Polidoro Monteiro

- Hum!!! Já viram? Reparem outra vez… olhem bem… não deram por ela?... É A FACA DE MATO, caramba! Ali, sempre pendurada no ombro direito.

Já agora, aquele tipo baixinho e anafadinho que também está na foto, a fingir que está lá por engano, mas sem conseguir esconder o sorriso travesso e olhar guloso, é o Batista, o Alferes Batista, O CAPELÃO, a quem aproveito para prestar a homenagem devida a quem, ano após ano, continua a marcar presença nos nossos encontros para celebrar a missa que só ele pode celebrar e sentir em Honra dos Nossos Mortos.

Disse.

Começo a olhar para trás e a sentir que o texto já vai longo, que se calhar o Editor não vai achar graça nenhuma, mas como é a primeira vez e, já se sabe, à primeira vez todos somos desajeitados, vou prosseguir.

Não para contar como foi que através do “Jornal da Tabanca” cheguei até um tal ex-furriel miliciano Cerqueira, de Braga, o enfermeiro que me rendeu, de quem eu tinha uma foto, que ele de todo não tinha, dando-lhe um abraço à sua chegada a Bissorã, foto, cuja, lhe quis enviar na presunção de que lhe daria tanto prazer a ele como a mim.

O recordar desse instante ocorrido há quase 40 anos, e que quando lhe telefonei (com emoção, senhores, que emoção) para saber do seu endereço electrónico, usei a norma inscrita nas NEP’s da Tabanca tratando-o por Camarada, o que eu fui arranjar porque... “eu não sou camarada, ouviu” - claro que ouvi, estupefacto, mas ouvi, mas dê lá o seu email, lá foram as fotos mas um “pronto recebi e obrigado” é que nada e assim sendo, assunto encerrado.

Deixem-me então contar como foi que me encontrei com o Carlos Fortunato.

Como disse, andava eu a vasculhar sem pudor e sem licença nas vossas memórias, quando ouço relatos de um tipo que estivera em Bissorã nos anos 70, pertencente à CCAÇ 13, vulgo “Os Leões Negros”.

Pimba já está que isto é comigo – gritei eu - eu tenho de conhecer este gajo, eu conheço este gajo da 13, abri a gaveta das minhas recordações e lá estava, o crachá da 13, o tipo, o Fortunato até tinha ali um link para a página dos leoesnegros.com, lá vou eu devorando tudo o que havia para ver e ler, abro a pasta que se titulava de “ataque à outra banda”, mergulho no relato, fechei os olhos a meio, recostei-me na cadeira e completei o resto, ouvindo de novo as armas, as correrias, os gritos, as ordens, o chão a tremer, o cheiro que fica no ar quando as armas se calam, “oh Sousa, traz o jeep para levar este para baixo "(estava ferido), isto gritei eu, que estava lá, na Outra Banda, não porque tivesse que lá estar, mas porque nessa noite me apeteceu lá ir beber umas cervejolas com a malta, e o Fortunato, na sua página, tinha uma foto (3) tirada do interior da caserna para o exterior, através de um buraco de RPG 7, e eu tinha uma outra (4) tirada exactamente ao mesmo buraco, mas do exterior para o interior.

Deixem-me partilhar convosco esses documentos.

(3) - O impacto da granada visto do interior da caserna

(4) - O mesmo impacto, mas de fora para dentro. O caretas sou eu.

O tipo que faz caretas à máquina (ou à outra?) sou eu!

Num ápice escrevi ao Fortunato, mandei-lhe a minha foto e, como vivemos próximos, marcamos um encontro.

Face a face não nos reconhecemos, mas nenhum de nós precisa de se reconhecer, basta o santo e a senha, Guiné!, e é como se toda uma vida houvesse para nos unir.

Aquela manhã, à mesa do Aquários, teve o sabor dos velhos tempos dos bancos da escola.

Regressei a casa e gastei uma pipa em telefone (porque há quem não tenha esta maquineta) a dar conta à malta da minha turma do encontro com o Fortunato.

E pronto, como acho que já me estiquei nos caractéres, fico por aqui.

Claro que quero pedir para ser admitido à mesa da Tabanca.

Nas formalidades que faltam, vão as fotos do antes e do depois.

E dizer que nasci em Santarém, que sou da recruta de Jan/67 nas Caldas da Rainha, que daí fui para Tavira com a Especialidade de Atirador e como Tavira ficava muito longe da universidade nocturna de Lisboa, onde depois da Licenciatura me preparava para fazer o Mestrado, uns gajos que conheciam umas gajas que conheciam uns gajos que mexiam nos cartões mecanográficos do Exército, concluíram que o melhor, para estarmos juntos, era ficar na Estrela a fazer a Especialidade de Enfermeiro.

São ínvios os caminhos da vida, e assim a coisa aconteceu.

Como é que os cartões mexeram é que não conto, porque não sei se os crimes já prescreveram.

Acabou-se a tropa, deixei a seringa lá dentro, e fiz-me à vida que foi o sonho de toda a vida.

Vivo agora acalmado em Miraflores e estou danado para lançar um convite ao meu vizinho Luís Graça.

Se quiseres beber um copo combina que eu é só atravessar a rua.

Agora vou uns dias de vacances.

Se quando voltar tiver sido aceite na Tabanca, prometo acrescentar algumas estórias a este poderoso livro de contos.

A todos o meu abraço.


3. Comentário de CV:

Caro Pires, depois deste texto de apresentação, só posso dizer-te que entres, que escolhas o melhor lugar, talvez junto a uma janela, ainda há por aí algumas cadeiras vagas, e que te instales o melhor possível.

Não demos por que andasses a mexer nas nossas coisas, situação a que estamos habituaddos desde há muito. Sabemos que até jovens estudantes nos rebuscam quando pretendem elementos sobre a guerra colonial, particularmente a da Guiné. Como deves depreender é para nós uma honra ter uma página recheada de histórias contadas pelos intervenientes naquela guerra, possuír um acervo de fotografias inéditas, com instantâneos verdadeiramente espectaculares. Nada de truques ou fotomontagens.

A tua entrada promete que irás ter um papel activo no nosso Blogue. Não desiludas, porque jeito não te falta e material terás de sobejo.

Eu ainda sou teu contemporâneo (ABR70/MAR72) e estive em Bissorã julgo que em 1970, ou 71? Não me perguntes o que lá fui fazer.
Fomos quase vizinhos, já que eu estive em Mansabá o tempo todo. Curiosamente havia a oeste de Mansabá uma pequena elevação conhecida por Alto de Bissorã, donde éramos atacados vezes sem conta. Má vizinhança tínhamos por ali.

Caro novo camarada e amigo, em nome de toda a tertúlia envio-te o inevitável abraço de boas-vindas. A partir de hoje tens mais 360 amigos e camaradas, camarigos, a quem poderás contar a tua experiência como militar, muito mais, como elemento do Serviço de Saúde do Exército Português, que tinha na nossa guerra uma função ímpar junto da população nativa. Tens que nos contar tudo.

Um abraço do novo camarada
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4774: Tabanca Grande (167): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissorã e Mansabá (1965/67)

Guiné 63/74 - P4777: Estórias do Mário Pinto (5): “O Palácio das Confusões” e o “Pilão”

1. Mais uma mensagem, que nos trás muitas saudosas memórias, enviada pelo nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71:

Amigos e Camaradas,

Hoje venho recordar ao pessoal da Tabanca Grande, uma degradada instalação militar em Bissau, que era posta à disposição dos furriéis milicianos e demais Sargentos, em trânsito por aquela cidade, nos anos 1969/71, vindos do interior do C.T.I.G..

Refiro-me àquele que ficou tristemente então conhecido por:

"O Palácio das Confusões"

No meu tempo, os elementos da classe de sargentos, à qual eu pertencia, que tinham necessidade de transitar (passar uns dias) em Bissau, vindos das suas unidades do meio do mato, por diversas situações (férias, consultas, tratamentos médicos que não necessitavam de internamento hospitalar e outros assuntos pessoais), tinham como destino o Q.G. de Bissau.

Sempre que esses militares necessitavam de pernoitar, o Quartel-General colocava ao seu dispor, uma camarata sem o mínimo de condições de higiene e habitabilidade, para que, os mesmos, pudessem repousar digna e satisfatoriamente.

Assim, quem não aceitava aqueles “alojamentos”, como era o meu caso, restava-lhe gastar então os seus preciosos e parcos Pesos, numa das várias pensões que haviam espalhadas pela cidade, ou dormindo em instalações de camaradas nossos amigos, ou conhecidos, que estavam colocados nas diversas unidades da capital.

Quantas vezes não nos valeu, para “dormirmos”, o tão “atractivo” Pilão?

Quem pode esquecer aquele temido e místico bairro periférico de Bissau, com as suas numerosas e famosas rameiras, onde muitos de nós nas nossas aventureiras e saudosas juventudes, por lá se arriscavam a ficar uma(s) noite(s), apesar dos eminentes e graves perigos que corríamos (onde se incluía o da própria vida)?

Eu não esqueço!

Desconheço quem foi o autor deste adequado e justo nome de baptismo: "O Palácio das Confusões", mas que no meu tempo fez escola e era conhecido de todos nós, pelos piores motivos, disso ninguém duvide.

É certo que a grande maioria de nós não estava habituado a instalações de luxo nas nossas unidades, como eu e os meus camaradas que estávamos bem cientes de estarmos devidamente “instancionados” no bu… rako de Mampatá, sem nunca termos visto casernas ou instalações condignas, pois tudo o que nos servia de abrigo era desenrascado com enorme “engenho e arte”, pela malta (raros “feiticeiros” de sacrifício e trabalho)… nos confins da Guiné.

Agora, em Bissau “aquele nojo”?!

Devia ter sido questão de honra e lealdade, para os então respectivos serviços do exército, prestarem alojamento aos seus sargentos, condignamente, viessem eles deslocados de longe ou de perto de Bissau, porque eram estes homens que davam o corpo ao manifesto no tarrafo e nas bolanhas, para reter e combater o IN, de modo que nunca os atacassem a eles, no “bem-bom”.

Creio que anos mais tarde, alguém mais consciencioso e decidido do Q.G., resolveu acabar com estas macabras instalações e construir, no mesmo local, não outra mísera caserna, mas um edifício sólido construído em blocos, com quartos já com alguma comodidade, para o tal pessoal “passageiro”.

Termino esta crónica a citar um “ditado”, a meu modo torneado, para condizer com a narração: “Não havia bem que sempre durasse, nem mal que não se acabasse”.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art

Foto: © Casimiro Carvalho (2009). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

31 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4762: Estórias do Mário Pinto (4): Fotógrafos de guerra