"Um grande senhor" (pp. 46/47): é assim que o António Reis se refere ao Dr. Fernando Garcia, tenente miliciano médico, talvez o melhor cirurgião do HM 241, naquela época em que o autor foi 1º Cabo Aux Enf... Dêmos-lhe a palavra:
"Quantos hoje lhe devem a vida ? Muitas centenas (...). Eu sou testemunha que se estão vivos, a vida devem a este senhor (...).
"Ele superou de longe o louvor. que o nosso director, o Dr. Pinheiro, lhe deu. Como pessoa de fino trato, de conduta esmerada, sempre pronto a exercer as suas funções, mesmo com prejuízo das suas hiras de refeições e descanso. Este senhor foi mais do que tudo isso. Quantas vezes o ouvi dizer: 'Este não fui eu que o operei, aquele não fui eu que o operei'. Dizia isso quando achava demais os ter salvo.
"Os negros adoravam-no. Nós admirávamo-lo. Chegávamos mesmo a dizer: 'Deus no céu e o Dr. Fernando Garcia na Guiné'.
"Não consigo lembrar-me se ele tinha jipe e condutor, mas parece que não, mas lembro-me que tinha lá a mulher e dois filhos. Não ligava à farda, com os galões de tenente, a maior parte das vezes vinha em chinelos e bata branca com o seu Citröen dois cavalos, velho mas que andava.
"Quando o serviço estava difícil e lhe pediam mais um cabo de reforço, ele indicava sempre dois nomes: 'Avança o Reis ou o Pereira' (...).
Para o Reis, o Dr. Fernando Garcia é sempre referido como o "senhor", o "grande mestre" (p. 28):
"O médico-dia olhou [o ferido que acabara de chegar de helicóptero, com os membros todos esfacelados e o tronco estilhaçado] e pareceu-lhe nada haver a fazer, mas chegou o grande mestre (Dr. Fernando Garcia), olhou e pediu sangue, deu um certo grau de inclinação à maca, fez-lhe a reanimação, e passado algum tempo o nosso homem gritava, perguntou onde estava e nós dissemos-lhe" (...).
Noutra ocasião chegou ao hospital um camarada que tinha estado com o Reis, na recruta em Leiria:
"Chegou num estado lastimável, perdia todo o sangue das transfusões pelos orifícios que tinha nos pulmões. Ele dizia que ia morrer, eu encorajava-o, dizia-lhe que se ele se aguentou até ali, já não morr[er]ia, que o Dr. Fernando Garcia o ia safar. Ele ainda foi para a sala , mas já não voltou. Da Sala de Operações foi direito à mortuária " (p. 30).
Há ainda outra passagem (p. 50), com referência ao Dr. Fernando Garcia:
"O nosso homem [um chefe de tabanca] chegou todo furado, para além da sonda gástrica, algália, soro e oxigénio, ainda tinha mais dois frascos debaixo da cama para onde iam correndo líquidos por uns tubos. Era daqueles que o Dr. Fernando Gracia dizia, quando via ter sido de mais tê-los salvo: ' Este não fui eu que o operei' - fazendo alusão a Alguém acima dele. Era um homem e fé, não sei se ainda hoje o é".
Sabemos que foi substuído pelo Dr. Manuel Diaz, possivelmente em finais de 1967 ou princípios de 1968. O Reis, que regressou à Metrópole em 24 de Março de 1968, foi louvado pelo Dr. Fernando Garcia:
"Eu tinha sido louvado pelo Dr. Fernando Garcia porque tinha correspondido perfeitamente à missão para a qual tinha sido treinado (...)" (p. 40).
Outros médicos, para além do Dr. António Augusto Antunes Pinheiro, director do Hospital (pp. 61/62), que são citados pelo Reis, é o Dr. Vilaça Ramos, também cirurgião (p. 31), o Dr. Melo (p. 40) , e o Dr. Gomes da Costa (p. 24). Num dia negro, 5 de Outubro de 1967, em que chegaram dezenas de feridos, do mato, o Reis estava de serviço com o Dr. Gomes da Costa, o sargento Marcos e o cabo Silvino. A causa de tantos mortos e feridos terá sido uma mina incendiária, accionada por uma GMC (p. 25). Os feridos mais gaves seriam depois evacuados para Lisboa, cinco dias mais tarde.
Outros dois médicos referidos no livro do Reis são o Dr. Sá Meneses e o Dr. Manuel Diaz, este último o médico-chefe, periquito, que veio substituir o Dr. Fernando Garcia, e que quis participar do Reis, por ter respondido, com duas bofetadas, a um insulto de um prisioneiro do PAIGC (pp. 39/40)... Há ainda um médico psiquiatra, o Dr. Castelão (p.44).
Pergunto aos nossos amigos e camaradas da Guiné: algum de vocês conhece um ou mais destes nomes, e muito em especial o Dr. Fernando Garcia, tenente miliciano médico ?
Na Internet, encontro uma referência a um Dr. Fernando Garcia, cirurgião geral, com consultório privado na Praça João A Coutinho 5,1º-D, 1170-190 Lisboa . Telefone: 218 148 543. Alguém quer confirmar ?
_______________________
Nota de L.G.:
(*) Vd. poste de 14 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3132: Notas de leitura (10): A minha Jornada em África (Beja Santos)
(...) António Ramalho da Silva Reis, nascido em Avintes, em 1944, embarcou em Março de 1966 no “Rita Maria” e foi colocado no HM 241. A sua experiência ao longo de dois anos na Guiné constitui o relato comovente “A Minha Jornada em África” (...).
Relato na primeira pessoa do singular, toca-nos pela simplicidade e ausência de pretensões:
“Vi talvez centenas de moços da minha idade morrerem ou chegarem mortos. Vi milhares de feridos entrarem por aquele hospital dentro. A tudo isto assisti, pois passei a minha comissão dividido entre o Posto de Socorros, a sala de observações e a Cirurgia 1, onde ficavam os casos mais graves. Os outros, de menos gravidade, eram distribuídos por outras enfermarias”.
Assentou praça no RI7, em Leiria, confessa que procurou todos os pretextos para se safar, ser mobilizado para a guerra, já que tinha um braço arqueado, mas ninguém se apiedou:
“Filho de pobre só não ia para a tropa o cego, o coxo ou o maneta. Filho de rico ainda se safavam alguns, arranjando falsos exames médicos onde apareciam com cavernas nos pulmões ou úlceras no estômago”.
Embarcou num barco de carga, carga bruta e carga humana, a Ritinha “desencostou ao som da grafonola que tocava o hino nacional”. (...).
Desembarca em Bissau, assustou-se com os primeiros feridos que viu chegar ao hospital, foi com o 27 (condutor do carro fúnebre) levar umas urnas à capela de Bissau (...).
Descreve a chegada dos feridos ao HM 241, o helicóptero a aterrar e a abordagem de um piquete constituído por quatro soldados e um cabo. Ao princípio o António ainda lhes perguntava o que é que tinha acontecido, depois limitava-se a fazer o seu trabalho. Havia dias especiais como o 5 de Outubro de 1967 em que chegaram quarenta corpos, todos a cheirar a carne humana queimada, todos transformados em múmias, quem estava vivo foi transferido para Lisboa. E confessa:
“Era duro trabalhar naquela enfermaria. Ainda recordo o cabo Silvino ter-me dito que tinha de arranjar formar de fugir daquela enfermaria se não morria ou ficava louco, mas muito mais duro era ficar destacado no mato e aparecer lá num estado como chegaram aqueles e outros desgraçados”.
Há sofrimento inesquecível: o ferido que parecia nada haver a fazer para o salvar e que irá recuperar, tratado com desvelo por aquela malta toda; o camarada que esteve com ele na recruta em Leiria e que chegou num estado lastimável a perder todo o sangue das transfusões pelos orifícios que tinha nos pulmões. Depois a camaradagem, levara soldados à mortuária para os convencer que o camarada de pelotão não estava entre os mortos. (...)
As histórias que ele conta referem camaradas pícaros, bebedeiras, o tratamento de prisioneiros, a chegada da malta lá da terra internada no hospital, as recordações do Dr. Fernando Garcia, a sua referência profissional, as vicissitudes da única gorjeta que recebeu, as visitas das senhoras da Cruz Vermelha e do Movimento Nacional Feminino. Há recordações dolorosas como a chegada daquele alferes que vinha paralisado que ele calçou com almofadas, friccionou com álcool e empoou com Lauroderme para que não ganhasse escaras. Prometeu visitá-lo quando viesse para Portugal, encontraram-se. Anos mais tarde, voltou a procurá-lo, o alferes não o reconheceu, talvez tivesse subido muito na vida e não quisesse ser visto com aquele homem com cara de jardineiro ou cantoneiro...
Regressou a metrópole em 1968, aqui está agora o seu relato que finda assim: “Exteriorizei aquilo que me ia na alma, se alguém me quiser julgar que o faça, mas que esse juiz tenha vivido no mínimo aquilo que eu vivi”. (...).