Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Álbum fotográfico do Albano Gomes > Foto nº 10 > "O Obus 10.5, virado à fonte, que, conjuntamente com outro instalado do lado contrário do Aquartelamento, e quando manuseados pelo Pelotão de Artilharia ali instalado, faziam Manga de Ronco" (AG).
Fotos (e legendas): © Albano Gomes (2008) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
1. Mensagem de Torcato Mendonça, de 28 de Setembro último:
Assunto: Destinos
Meu Caro Camarada e Amigo [Carlos Vinhal]:
Antes que o mês acabe vou fazer paragem na sabática. Ou seja, envio um texto lamechas na leitura apressada. O 3 de Outubro está perto. Sabes, aquele escrito e outros estão "aquietados". Mas li este e fiquei a pensar, a recordar. São coisas que só um homem sabe bem e, se for lido em linhas e entrelinhas ou se vai lá ou, em gente de certo passado como nós, estabelecemos analogias.
Tenho ultimamente lido mais ao correr do rato. Outros paro e consumo devagar. Concordo, discordo e, como anteriormente disse, não comento. É pior e fica-se a remoer. Há concepções...bem não adianto mais ou... delete. A pluralidade opinativa é um valor adquirido e tem toda a razão, Felismina, de existir. Mas será extensível a tudo o que aqui aparece. O "aqui" é o blogue.
Eu nem sei se estás ao serviço ou de serviço. Parto do princípio que sim e, como quase sempre peço, diz se chegou...basta um Ok. Quanto ao anexo é vosso e dele fazem o que quiserem.
Ainda vou tratar de uns assuntos e já é 28 de Setembro
Abraço a ti e extensível aos Editores e a Todos claro está.
Torcato
PS- Esta Bolha pode ser a uma por semana. Serei capaz? Sem compromisso, como sempre.
2. Estórias de Mansambo II > Logo Ali, o Vazio…
por Torcato Mendonça (**)
Alegre, sorriso fácil, normal gosto por festas e bailaricos. Cresceu na planície com horizonte largo, a cidade lá muito ao fundo, e, á noite, sentado no portal da casa, olhava as luzes da cidade a tremerem devido ao calor a sair lento, lentamente da terra quente.
Planície de terra negra, fértil, terra de barros e terra mãe a dar sustento a ranchos de homens e mulheres que nela trabalhavam.
Ele trabalhava-a com carinho, mesmo com jorna magra e quando o sol se começava a querer esconder no horizonte a casa voltava.
Recebeu, através da Junta de Freguesia, a carta a dizer que teria que ir para um quartel. Carta curta, simples e a partir daquele momento estava incorporado como militar. Assim, poucos dias depois beijou a mulher, tocou-lhe ao de leve na cara a desviar a lágrima que descia.
Partiu então e por lá andou, correu, saltou, aturou berros e gritos. Nada disse, quase nada sentia a não ser o desejo de voltar. Voltar para junto da mulher, da terra negra, afagar ambas e á tardinha olhar a planície sem fim.
Um dia disseram que teria que ir para África. Onde? África e Guiné.
Ficou triste. Voltou a casa por breves dias, olhava ternamente a planície, o horizonte e com a mulher ao lado sem nada dizerem. Sentia quanto aquela aproximação seria breve. Sentiam, ele e ela, de modo diferente tudo o que os rodeava. Guiné? África? Porquê?
Voltou a despedir-se da mulher, fez-lhe uma festa no ventre e sorriu. Sorriram ambos na angústia de um destino desconhecido.
Meteram-no num barco, barco enorme, barco prenhe de militares companheiros de viagem em porão mal cheiroso e, cada vez mais nauseabundo á medida que os dias passavam. Sulcavam mares como o seu povo há séculos fazia mas, ele e outros, certamente também de pronto dispensavam. Passaram os dias, lentos e numa manhã ouviram o grito de que estava terra á vista.
Olhou e ao longe viu a neblina a levantar-se da terra. Lembrou a sua planície e rápido desviou o pensamento.
Horas depois aí estava o barco parado, a azáfama do desembarque, o calor a encharcar o corpo, a humidade a fazer-se sentir. Olhava e sentia ser tudo diferente, tudo a nada lhe dizer, tudo a levar a questionar-se o que ali fazia.
Não o deixaram gastar muito tempo, em visitas, olhares ou pensamentos. Não tardou a ser metido num batelão de nome esquisito. Ele, viaturas, caixotes enormes e, claro, os seus e outros companheiros, que aqui eram camaradas, lá seguiram viagem. Desta vez, não por mar, mas por um rio enorme acima.
Foi parar a um quartel. Chamavam àquele amontoado de casas desgastadas, barracões e buracos enormes tapados por troncos e com valas, no chão abertas, quartel. Seria um quartel ou um aquartelamento. Tudo bem para ele.
Tudo diferente, tudo estranho, onde o horizonte era já ali baço e verde, com a floresta num verde-escuro a sobressair da terra vermelha e quente.
Os amigos eram os camaradas do grupo e da Companhia. Falavam, riam, tentavam adaptar-se e afugentar para longe as recordações do seu Pais.
O tempo passava lento, tão lento que, sem por isso dar, veio a carta e nela a nova de que era pai de uma menina.
Se até aí as saídas para o mato em operações, as colunas com muitas viaturas, os tiros e rebentamentos eram a normalidade daquele estúpido viver e até a vontade de rir ou sorrir iam desaparecendo, naquele momento ficou parado, quieto, olhar vazio. Não soube o tempo que assim passou. Despertou com o vozear dos camaradas e sentiu que as forças lhe fugiam corpo abaixo, a cara a ficar molhada, os cheiros a serem os da planície, da mulher, da terra negra. Sentiu-se só, demasiado só. Sentou-se e o corpo ali e ele lá, ele a lá voltar, não sabia quem já era, que fazia ali, que tinham feito dele, porque, em tão pouco tempo, vira tanta desgraça e tanta miséria. Sentiu medo, mais medo, medo de tudo e dele também.
A partir daquele dia sentiu-se outro, mais temeroso e a desgastar-se no tempo. Tempo a passar cada vez mais lento, tão lento.
Andava cabisbaixo, diferente e fazia contas ao tempo que faltava. Quanto? Um ano, seis meses, três?
Se saía para o mato sentia-se mais fraco, sentia mais o medo, os medos que todos sentem e mais os dele.
Recebeu a notícia com certa indiferença. Ia para Bissau para tratar e cuidar de teres e haveres dos seus Camaradas da Companhia. Tinha tantos meses de comissão e nunca vira Bissau, excepto, brevemente, ao desembarcar e nem dera para ver nada. Vida de soldado era difícil.
Passados dias aí estava Bissau. Habituou-se rapidamente e reaprendeu a sorrir. Os pensamentos continuavam caminhando para a sua planície, família e os seus camaradas no mato. Como a guerra ali era diferente. Guerra só de nome e gente com risos e vidas a correrem rápidas e alegres. Muito deles em passagem para voltarem ao mato, aos medos, á vida que dispensavam.
Naquela manhã saiu alegre. Entrou no jeep, o amigo a conduzir, Bissalanca logo ali. Estrada fora ele a dizer que teria o embarque daí a dois meses. Seria?
A hiena apareceu, o jeep guinou, saiu célere da estrada, o baga-baga parou-o. Da testa escorria-lhe um ligeiro fio de sangue. Talvez o seu último pensamento tivesse chegado á planície, á terra mãe, á mulher e a sua filha…talvez…
Nenhures ou entre o Alentejo e Bissau aos 3 de Outubro de 1969
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Nota de L.G.:
Nota de L.G.:
18 de Maio de 2010
Guiné 63/74 – P6423: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (21): Zumbidos em noite de Verão
(**)
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2010/05/guine-6374-p6423-estorias-de-mansambo.html
(***) Na lista dos Mortos do Ultramar, organizada pelo portal Guerra do Ultramar, consta, no concelho de Beja, o nome de José Francisco Gaié Casadinho, natural da freguesia de São Matias, sold da CART 2339, vítima de acidente de viação em 2 (e não 3) de Outubro de 1969.
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(***) Na lista dos Mortos do Ultramar, organizada pelo portal Guerra do Ultramar, consta, no concelho de Beja, o nome de José Francisco Gaié Casadinho, natural da freguesia de São Matias, sold da CART 2339, vítima de acidente de viação em 2 (e não 3) de Outubro de 1969.