sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6901: José Corceiro na CCAÇ 5 (16): O depoimento do Armando Oliveira Alves, ex-Alf Mil, Brá, Cheche, Canjadude, 1967/69 (José Corceiro)


1. O nosso Camarada José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos, Canjadude, 1969/71), enviou-nos a seguinte mensagem com data de 26 de Agosto de 2010:

Camaradas,

Estou de férias na Madeira, mas não deixo de dar uma espreitadela à caixa de correio electrónico. Hoje recebi uma mensagem do nosso estimado Gato Preto, Armando Oliveira Alves, ex-Alferes Miliciano 1967/69, que tenho a certeza que tem muitas estórias, enquanto Gato Preto, para nos contar, pois foi testemunha de muitos factos que aconteceram na picada entre Canjadude e Cheche onde esteve destacado largos meses.

Na mensagem que enviou, diz que provavelmente no próximo Domingo, dia 29 de Agosto, o Correio da Manhã na revista Domingo que acompanha o Jornal, publicará na rubrica “A Minha Guerra” o artigo do Armando Alves.

Teve a gentileza, que agradeço, de me enviar o depoimento que deu origem ao artigo que vai sair na revista, depoimento esse, que eu envio em anexo, para todos os Gatos Pretos e não só.

Os nossos parabéns ao Armando Alves pelo seu depoimento tão articulado e consistente.


A Minha Guerra na CCAÇ 5 (Companhia de Caçadores 5)


1)- Fez parte de que Batalhão?

Concluído, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, no 1º trimestre de 1967, o Curso de Oficiais Milicianos e após ministrar uma recruta no Regimento de Infantaria de Viseu (RI 14), fui mobilizado, em Junho desse ano, para uma comissão de serviço na Guiné-Bissau, em rendição individual.
Assim, nos primeiros dias de Agosto (não consigo precisar o dia) embarquei, no Cais de Alcântara, no navio Alfredo da Silva (embarcação mista de passageiros e carga).

2)- Quando é que chegou?

Apesar de alguns enjoos, a viagem correu sem sobressaltos, tendo o navio feito escala nos portos das cidades do Funchal, S. Vicente e Praia. Durante o percurso, impressionou-me, negativamente, a forma como iam instalados os soldados: amontoados no porão, sem quaisquer comodidades e sem as condições de higiene, minimamente, exigíveis. Volvidos, mais ou menos, doze dias, o barco atracou no Porto de Bissau, em pleno estuário do rio Geba.

3)- Soube logo para onde ia?

Como ia em rendição individual, não fazia a menor ideia em que Unidade seria colocado. À chegada, tinha à minha espera um representante da Companhia Geral de Adidos, posteriormente Depósito Geral de Adidos, que me conduziu, de imediato, ao respectivo Aquartelamento, localizado em Brá, junto ao Aeroporto.

4)- O que sentiu quando chegou?

Ainda a bordo do Alfredo da Silva, tive uma vista panorâmica da cidade, mormente a Avª da República, ao cimo da qual ficava a Praça do Império, onde se localizava o Palácio do Governador. A sensação, que tive ao desembarcar, foi pouco animadora: clima agreste (muito quente e húmido), pobreza acentuada e bem visível, reduzidíssima população branca e um enorme fosso económico e cultural entre nativos e metropolitanos. Embora, à data, a Guiné-Bissau fosse considerada parte integrante de Portugal, ao pisar, pela primeira vez, aquele território senti-me estrangeiro e um intruso.

5)- Como foram os primeiros tempos?

Como atrás referi, fui mobilizado em rendição individual, tendo ido substituir um Alferes Miliciano, de Coimbra, que, quando regressou à Metrópole, desempenhava as funções de Oficial de Justiça na já mencionada Companhia Geral de Adidos. Embora fosse de Infantaria e sem qualquer formação académica no ramo do Direito, julgo que, com muito trabalho, dedicação, consultas e trocas de impressões com camaradas do Quartel-general, desempenhei, durante três meses, com rigor e competência as respectivas funções. Sem quaisquer preconceitos de falsa modéstia, esta minha opinião alicerçou-se no facto do Comandante da Companhia, Sr. Capitão Gândara, ter solicitado, mais do que uma vez, ao Sr. Brigadeiro Reimão Nogueira, do Quartel-general, a minha colocação definitiva na Unidade referenciada, alegando um bom desempenho a todos os níveis.
Neste período, a adaptação foi, relativamente, fácil, pois, para além das agruras do clima e da ausência dos entes queridos, as contrariedades eram diminutas e as privações quase nulas. Chamo a esse período, bem como a outro, após o regresso do mato, “a guerra da caneta”.

Como não foi possível a minha permanência definitiva em Bissau, em Dezembro de 1967 foi colocado na CCAÇ 5 (Companhia de Caçadores 5), uma Unidade militar constituída, essencialmente, por africanos. Apenas os Comandos/Chefias e os postos mais técnicos, como, por exemplo, maqueiros/enfermeiros e radiotelegrafistas, eram exercidos por europeus.
Embarquei num avião Dakota, com bancos em madeira a toda a volta e cujos cintos de segurança eram pequenas correias com fivelas nas pontas. Como era habitual na época, o avião, para além de pessoas, também transportava animais e mercadorias de diversas espécies, o que, diga-se em abono da verdade, não proporcionava o mínimo de conforto. À data, a CCAÇ 5, com sede em Gabu/Nova Lamego, onde funcionavam o Comando e os Serviços, estava dividida em três Destacamentos: Cabuca (localizado na zona de Piche), Canjadude (entre Nova Lamego e o Cheche e futura Sede da Companhia) e Cheche (encostado ao rio Corubal e próximo de Madina de Boé, local onde foi proclamada, pelo PAIGC, a independência do território).

Após alguns dias em Nova Lamego, para adaptação, fui colocado no Destacamento do Cheche, tendo sido, para o efeito, organizada uma coluna militar. Nesta Unidade, brancos eram cinco e negros sessenta (um pelotão de tropa regular e um pelotão de milícias), sem contar com mulheres e filhos. Embora houvesse tabancas, feitas de madeira e capim, as instalações eram subterrâneas (os chamados abrigos), cavadas no solo e com cobertura à base de troncos de madeira.
Vivia-se em estado permanente de alerta, pois, quase diariamente, era fustigado com tiros de morteiro, provenientes da margem esquerda do rio Corubal. Felizmente, o rio, em frente ao Destacamento, era muito largo, pelo que todos os ataques, durante a minha permanência, redundaram em fracasso.
As missões militares, incumbidas ao Destacamento, para além de patrulhamentos na zona envolvente, limitavam-se a patrulhar e a “picar” a estrada em terra até Canjadude, no sentido de detectar, essencialmente, minas anticarro, aquando das colunas de reabastecimento ao Cheche e/ou a Madina do Boé, e a participar, como reforço, nas deslocações a este último Aquartelamento.

6)- Quando voltou?

Após ter cumprido uma comissão de serviço, no mato, de mais ou menos 13 meses, repartida pelo Cheche (+- 11 meses) e por Canjadude (o restante), voltei a Bissau, novamente ao Depósito Geral de Adidos, como responsável pela organização de transportes de regresso dos militares às respectivas Unidades, após internamento hospitalar, consultas externas, tratamentos de fisioterapia, retorno de férias, etc, etc.
Regressei à Metrópole, a bordo do navio Uige, no início de Setembro de 1969, tendo cumprido, na totalidade, uma comissão de serviço de 25 meses.

7)- Qual foi o dia mais marcante? E porquê?

Embora não consiga precisar a data, o dia mais marcante, durante a permanência no teatro de guerra, foi quando assisti ao rebentamento de uma mina anticarro, que tirou a vida ao Sr. Major de Engenharia Pedra (Oficial de Carreira) e a dois Furriéis Milicianos, também de Engenharia, que se deslocavam ao Cheche, já em fim de comissão, para estudar a possibilidade de uma alternativa à jangada de madeira na travessia do rio Corubal. Embora ainda tivessem sido evacuados com vida, mas muito maltratados, acabaram por falecer, a bordo do helicóptero, a caminho do hospital.
Um dos furriéis, com as duas pernas quase desfeitas, enquanto lhe prestava, juntamente com o enfermeiro, apoio, virou-se para mim e suplicou: “Estás a ver o estado em que me encontro! Se és, realmente, meu amigo, peço-te que utilizes a tua arma e põe fim a este sofrimento”!!! Com o coração desfeito e banhado em lágrimas, tentei confortá-lo e incutir-lhe o mínimo de esperança, o que, reconheço, não foi nada fácil. Nestas circunstâncias, um minuto parece uma eternidade!

8)- O que lhe lembra a guerra?

A quarenta e três anos de distância, a lembrança que tenho da guerra é a mesma que tinha, quando fui mobilizado: um autêntico desastre em termos políticos, económicos e sociais. É caso para perguntar: sacrifícios, privações, mortos e deficientes, em larga escala, em prol de quê? Se tivesse havido, desde o início, uma negociação política, ter-se-iam evitado imensos dramas e as pessoas, que consideravam as ex-colónias como a sua pátria, onde nasceram os seus filhos e onde investiram as suas economias, não seriam forçados a regressar, apressadamente, à Metrópole, “com uma mão à frente e outra atrás”, como se costuma dizer. Por outro lado, a juventude da época não teria sido tão castigada e privada dos melhores anos das suas vidas.

9)- Fazem-se irmãos?

Não restam dúvidas que o teatro de guerra proporciona, em larga escala, espírito de união e de entreajuda, fomenta a amizade e a solidariedade. Sem que cada um deixe de assumir as suas responsabilidades, não há superiores nem subordinados, não há pais nem filhos, são todos irmãos, imbuídos do mesmo pensamento: colaboração recíproca, no sentido de ultrapassar, em todas as circunstâncias, as contrariedades, que vão surgindo, por forma a que a comissão de serviço, imposta pelas autoridades governativas, atinja, rapidamente, o seu términus e todos possam regressar em segurança, saúde e paz aos seus lares. Este “sentimento de irmandade” só acaba, quando todos “partirem”, pois, enquanto vivos, procuram conviver, alegremente, uns com os outros, pelo menos uma vez por ano, através de encontros previamente organizados.

10)- Esteve debaixo de fogo?

Infelizmente, mais de uma vez, embora sempre com muita sorte, pois nunca sofri qualquer tipo de ferimento. Há uma situação, que me marcou para toda a vida, não só pelo número de mortos sofrido (20), mas, também, pelas circunstâncias em que ocorreu o ataque/emboscada e pelas consequências que provocou.
Antes da época das chuvas, cujo início ocorria, normalmente, em meados de Maio, programava-se o reabastecimento ao Destacamento do Cheche e ao Aquartelamento de Madina do Boé, pois, durante aquele período, a estrada em terra (picada) ficava intransitável. Assim, nos primeiros dias de Maio de 1968, deu-se início à coluna militar, constituída, ao nível de efectivos, por uma Companhia e por diversas viaturas, incluindo carros de combate. Ao destacamento do Cheche, sob o meu comando, competiu, para além de outras tarefas, “picar” a estrada ao encontro da coluna. A primeira fase, embora, como sempre, debaixo de grande tensão, correu sem sobressaltos. No regresso e a poucos quilómetros do Destacamento do Cheche (+- 6/7), numa grande clareira em forma arredondada e quando a coluna militar se encontrava, totalmente, dentro da mesma, sofreu um ataque violentíssimo, perpretado por um grupo numeroso de guerrilheiros, equipado com material bélico sofisticado, incluindo canhão sem recuo (uma novidade, para a época, em emboscadas). As nossas tropas, face à surpresa e intensidade do ataque, desmembraram-se por completo e, praticamente, não reagiram. Cada combatente, independente do posto e da responsabilidade atribuidos, procurou proteger-se e, na medida do possível, afastar-se “daquele inferno”.
Particularizando, as minhas protecções foram, num primeiro momento, o rodado de uma viatura e, posteriormente, um “bagabaga” (formação fortíssima, de vários metros de altura, resistente à destruição, construída pelas térmitas – formigas tenazes e temidas -, com a argamassa resultante da mastigação, por elas próprias, de madeira, terra, excrementos e saliva). A desorientação foi de tal ordem, que a coluna militar não mais se conseguiu reorganizar, acabando todos os elementos sobreviventes por chegar ao Destacamento do Cheche isoladamente. As viaturas foram incendiadas e o reabastecimento roubado. Para além dos géneros alimentícios, levaram, também, o correio destinado aos militares do Cheche e de Madina do Boé, o que, como se depreende, teve consequências gravíssimas ao nível das suas famílias, pois o PAIGC fez constar que os destinatários da correspondência estavam presos e às suas ordens. A carência de alimentos foi, igualmente, problemática, obrigando, até ser decidida a sua reposição por meios aéreos (sacos largados do ar por avionetas e/ou helicópteros) a recorrer a tudo o que era possível: peixe “pescado” no rio Corubal com granadas ofensivas, pombos verdes “abatidos” com G3 e macacos fidalgos assados no forno, “tipo cabrito”!

11)- A guerra marca para sempre?

Creio que a guerra, em que cada um foi obrigado a participar, marca para sempre, de uma forma mais intensa ou de um modo mais indelével, a vivência de cada interveniente. Julgo que para tal contribuiu, de forma decisiva, a atitude psicológica de cada um, a maneira como conseguiu conviver com as situações mais adversas e o antídoto utilizado para as ultrapassar.

Nota Biográfica: o que fez, faz, idade, percurso profissional. Casado, netos, etc

Nome: Armando de Oliveira Alves
Naturalidade: Fiães – Santa Maria da Feira
Idade: 65 anos (nascido a15 de Agosto de 1944)
Estado Civil: Casado
Filhos: 2. O mais velho, formado em Gestão de Empresas, está radicado em S. Paulo – Brasil e exerce a sua actividade profissional na Empresa Portuguesa Somague Engenharia. O mais novo, formado em Informática de Gestão, também está radicado em S. Paulo – Brasil e exerce a sua actividade profissional na Empresa Americana Logic Information Systems.
Netos: uma menina luso-brasileira, a Beatriz.
Percurso profissional: Antes do serviço militar, fui estudante-trabalhador (funcionário público). Após o regresso do Ultramar, ingressei na Banca, tendo sido reformado, em 2006, com a categoria profissional de Director.

Um abraço e boa saúde para todos. Boas férias.
José Corceiro
1º Cabo TRMS da CCaç 5
___________
Notas de M.R.:

É óbvio que o José Corceiro já falou nesta nossa Tertúlia ao Armando de Oliveira Alves e o convidou a reforçar o “batalhão”, que já conta com mais de 400 Camaradas.

Assim, em nome do Luís Graça & Restantes Camaradas, resta-nos deixar aqui expresso esse mesmo desejo de que, logo que lhe seja possível, o Armando Alves se junte a nós nesta nossa parada virtual, enviando as fotos da praxe, as estórias de que ainda se recorde e, se as tiver, as suas fotografias da tropa.

Por agora ficamos por aqui com um abraço Amigo.

Vd. último poste desta série em:

18 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6756: José Corceiro na CCAÇ 5 (15): Canjadude, CCAÇ 5, onde a surpresa acontece

4 comentários:

Unknown disse...

Obrigado José Corceiro, por proporcionares a divulgação deste depoimento no Blog. E a minha admiração pelo "depoimento tão articulado e consistente", como tu descreves, de Armando Oliveira Alves.
É de facto um texto que não deixa dúvidas na sua interpretação. Facultando margem de "criação" aos mais imaginativos e ou elementos sérios para o conhecimento do que foi aquele "cenário".
Sendo que mais uma vez fica demonstrado que o número de mortos na Guiné, era elevadissimo em relação às outra colónias. E que já em 67/69 começava a ser notória a situação com dificuldades de isolamento de algumas unidades militares no território.
Em 71, na zona de Galomaro (sector Leste) tambem aqui muito dos alimentos e outros, eram lançados a partir de Noratlas na pequena pista que existia.
Outra referência sériamente apontada, era a forma como os soldados eram transportados nos porões dos barcos. Eu tive o aflitivo previlégio de viajar em camarote (devidamente controlado, mas isso é outra história) e desci algumas vezes aos porões para ir ao encontro de camaradas, e essas descidas, faziam-me rever tudo que tinha visto em fotos e lido sobre o nazismo, na minha adolescência, e naquele momento eu, armado em um " Valente Soldado SheveiK ".
Obrigado Armando Alves.
Um abraço para todos, e para cada um.

anti-anonimato
Carlos Filipe
ex CCS BCAÇ3872 - Galomaro
galomaro@sapo.pt

Juvenal Amado disse...

Um abraço ao José Corceiro pela forma que nos deu a conhecer este ex combatente.
É mais uma poderosa descrição das agruras porque passaram os combatentes na zona, até ao abandono de Medina de Boé.
A violência está bem descrita no ferido que pede para se lhe acabar com o sofrimento. Aliás é o segundo caso de que tenho conhecimento, pois uns postes atrasados, também houve um pedido igual desta vez da parte de um guerrilheiro.

Um abraço ao J. Corceiro e ao Armando.

Juvenal Amado

Anónimo disse...

Amigo Magalhães Ribeiro

Obrigado por teres editado o depoimento do Armando Alves, que eu enviei, não com o intuito de poste, mas sim como apreciação informativa. Espero que o Armando brevemente nos dê o prazer de entrar na Tabanca Grande.

Uma breve nota: O rebentamento da mina, na picada do Cheche, que vitimou o Sr. Major Luís Vasco Veiga Ferreira Pedras e mais dois Furriéis que o Armando Alves menciona no depoimento, ocorreu no dia 15 de Janeiro de 1968. Eu passado ano e meio ainda vi ”in loco” vestígios dessa tragédia; assim como integrei, por duas vezes, a força que foi a recuperar viaturas que foram queimadas na fatídica emboscada, em que sucumbiram 20 pessoas.

Um abraço para todos.

José Corceiro

Colaço disse...

É lamentável que se acorde um texto a publicar e depois publiquem um com cortes de quase cinquenta por cento.
No meu caso fizeram o mesmo, protestei e a única resposta foi para não ficar chateado, era um situação de caracteres.
É como diz o Luís Borrega só têm espaços para falar do filho do Cristiano ou para mostrar as pernas da Angelina Jolie.

Um alfa bravo
Colaço.