terça-feira, 24 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6894: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (8): Ébano Febre Africana, de Ryszard Kapuscinski (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
Não há melhor boa vida que estar em férias e ler, regressar, escrever e voltar para o folguedo.
Fui até à Arrábida no rasto do Sebastião da Gama e tive sorte com o tempo, a amenidade da paisagem, visitei o convento e andei à procura do Manuel de Oliveira, John Malkovich e Catherine Deneuve. Não os encontrei mas segui-lhes as pegadas. Para quem não conhece, aquele convento é uma jóia preciosa cercada de flora mediterrânica, vale a pena ir até lá. E acabei em Moura, com mais de 40º à sombra, também confirmei que a nova Aldeia da Luz é uma beleza.

Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (8)

Beja Santos

Ébano, 40 anos de reportagens em África para entendermos os homens,
Sabermos ler da descolonização para o presente


“Ébano, Febre Africana”, de Ryszard Kapuscinski, é uma obra-prima, uma dissertação avassaladora sobre a situação africana ao longo das décadas que vão da descolonização ao presente, um recado e um contributo indispensável para entender os itinerários políticos por onde passaram aqueles que acreditavam na revolução, na vontade soberana, no bem-estar dos povos.

Seria impossível imaginar leitura mais poderosa para este final de férias em Casal dos Matos, ali na fronteira entre Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de Pêra. O dia despertou e sente-se no ar que caminhamos para uma frigideira, ouve-se a cega-rega das cigarras, recolho-me na biblioteca. Ontem, suspendi a leitura quando John Okello, de 25 anos, conquistou o poder em Zanzibar. Está cercado de jornalistas, mas também ali se acotovelam outras dezenas de pessoas no quartel do marechal de campo, era o mínimo que se poderia esperar deste jovem ditador. Vejamos como Kapuscinski descreve a situação: “Okello, que se encontra num grande átrio oriental, está sentado numa poltrona de ébano, a fumar um cigarro. Ele, que possui uma pele muito escura e uma cara larga de feições pouco delicadas, tem na cabeça um boné de polícia, que lhe está manifestamente pequeno – assaltaram uns armazéns da polícia onde encontraram umas carabinas e alguns uniformes. À volta do boné tem enrolado um pedaço de pano azul. Okello parece ausente, como se estivesse em estado de choque, e nós ficamos com a sensação de que nem dá pela nossa presença. Há muita gente à volta dele, as pessoas empurram-se, falam todas ao mesmo tempo, gesticulam, o caos é total e ninguém tenta contrariá-lo. Nós queremos apenas pedir-lhe autorização para prolongar a nossa estadia na ilha. Okello diz que sim, com a cabeça. Mas, de repente, alguma coisa lhe passa pela mente, pois apaga o cigarro e toma providências para nos mandar embora. Tem uma velha carabina ao ombro e outra na mão. Com a outra mão arranja a pistola que tem no cinto e, a seguir, pega ainda numa outra pistola. Depois, armado desta forma, empurra-nos à sua frente até ao pátio, como se nos quisesse fuzilar”. Chega entretanto uma notícia surpreendente: no Quénia, no Tanganica e no Uganda os exércitos fizeram golpes militares. Começa a odisseia de encontrar transporte para ir ao encontro do nosso manancial de notícias, parece que há coisas mais importantes que o marechal Okello.

Os golpes de Estado são acontecimentos comuns em África. Em 1966, Kapuscinski voa para a Nigéria onde caiu mais uma dinastia corrupta, uns abatidos à bala, outros são dados como desaparecidos, o povo bate as palmas ao militares que são bem aproveitar-se da ganância e da insaciabilidade dos políticos e a desilusão dos populares. A uma elite militar ou a uma guarda pretoriana sucede-se outra, o mesmo é dizer que em cada golpe de Estado acumula-se gente desocupada que sobrevive no gangsterismo e no simples roubo. O repórter põe-se a caminho no deserto, atravessa o Sara. Outra descrição impressionante: “Uma viagem através do Sara representa uma aventura perigosa, uma constante lotaria, uma eterna incógnita. Num percurso cheio de crateras, buracos, desabamentos de terras, coberto de pedras e rochas, dunas movediças e montes de entulho, os carros avançam a uma velocidade de caracol, de apenas poucos quilómetros por hora. Nestes camiões, cada roda tem tracção própria e, metro a metro, cada uma delas tem de encontrar o seu ponto de apoio; por isso, avança e pára logo depois, em face de um novo obstáculo, que tanto é um penedo como um buraco. Mas é a soma destes esforços e destas lutas, permanentemente acompanhados pelos gritos do motor sobreaquecido e pelo baloiçar arriscado da caixa, que permitem ao camião ir avançando”. E assim chegamos à Etiópia em pleno caos. Em Adis Abeba, à volta do repuxo onde a água cai num suave murmúrio, rodeado de viçosas buganvílias de tom vermelho escuro e forsítias amarelo-vivo, é difícil imaginar que a escassas centenas de quilómetros se morre em massa. Vive-se uma das maiores secas africanas de sempre, o gado morreu, não há pastagens, não há água, os nómadas vendem as peles que arrancam dos cadáveres dos animais. À volta de Adis Abeba instalou-se a pirataria, toda a gente reivindica dinheiro e pede esmola, a começar pela polícia. Por uma questão de prestígio, o homem que derrubou o imperador Hailé Selassié, o major Mengistu, um marxista muito estimado em Moscovo, recusa a ajuda internacional, numa altura em que já morreram um milhão de pessoas. É uma situação absolutamente indescritível. Mas o que é que em África não é indescritível? Quem é que pode acreditar em Idi Amin o tirano sanguinário do Uganda? Ou em Bokassa, na República Centro-Africana? A descrição de Kapuscinski, por abreviada, torna qualquer tirania um cenário de pechisbeque: “O domínio de Amin durou oito anos. De acordo com diversas fontes, o marechal terá assassinado durante a sua vida entre 150 000 e 300 000 pessoas. Depois foi ele quem se conduziu a si próprio para o abismo. Uma das suas obsessões era o ódio ao presidente da vizinha Tanzânia, Julius Nyerere. Em finais de 1978, atacou aquele país. O exército da Tanzânia reagiu. Os soldados de Nyerere invadiram o Uganda. Amin fugiu para a Líbia, depois instalou-se na Arábia Saudita, que o recompensou pelo seu esforço de divulgação do Islão. O exército de Amin desfez-se, uma parte voltou para casa, a outra passou a viver de assaltos. Nessa guerra, o que o exército da Tanzânia perdeu foi um tanque”.

Na aparência, todos estes actos violentos são corriqueiros, repetem-se com uma certa similitude, seja qual for o local em que ocorrem. É verdade que por detrás deles estão questões tribais, a partida precipitada das forças coloniais, a avidez dos novos dirigentes, incapazes de programar e fundamentar as bases sociais de apoio. Mas há acontecimentos que extravasam as dimensões da pura brutalidade: será o caso do que aconteceu no Ruanda, um morticínio que escapa a qualquer lei da compreensão das guerras étnicas. Kapuscinski descreve com rigor as castas de Ruanda, em poucas páginas ficamos a perceber o que separa radicalmente os tutsis dos hutus, como, a seguir à independência do Congo, o pesadelo ruandês se foi avolumando. Só por estas páginas alucinantes é indispensável ler o Ébano, ficamos a conhecer as mortandades, as ditaduras militares feudais, as explosões de ódio, as intervenções estrangeiras e o massacre de Abril de 1994. Esta a África dos feiticeiros, das superstições, dos políticos venais, da ajuda humanitária indecente, dos cooperantes que enriquecem à custa da miséria alheia. Mais umas horas, e ao fim do dia regresso. No término destas férias, a pretexto de uma canícula, embrenhei-me em leituras numa biblioteca onde ardi de curiosidade. Falta-me ainda ir ao Sudão, à Libéria e despedir-me na alucinante Eritreia. Não sei o que é um livro paradigmático. Mas se me perguntassem se existe um livro onde se fala das explicações do imobilismo africano, da permanente ameaça da sua ruína total, de como se chegou à desesperança e à corrupção incomportáveis, não hesitarei em sugerir a leitura de Ébano.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6872: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (7): Ébano Febre Africana, de Ryszard Kapuscinski (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Anónimo disse...

Mário, não perco os teus livros, pois graças a ti, muitos destes livros poupas-me a comprá-los e a lê-los.

Este é um dos casos em que daria o dinheiro e o tempo como perdido.

Por isso vê o que me poupas-te.

O que mais detesto neste tipo de jornalistas é apresentarem estes africanos como governantes selvagens, cuja irresponsabilidade é deles próprios.

Nem Idi Amin, nem Mobutu ou Lumumba ou Bokassa se fizeram a eles próprios. Portanto são inocentes.

Assim como Nino Vieira, Sekou Turé e outros, alguem teve a culpa, e não foi o povo.

(O mesmo já não digo de certos antigos portugueses).

Estes jornalistas provocam um mal estar e uma revolta nos africanos que os leem, que sem exagero lhe provoca um ódio pior do que o colonialismo de que foram vítimas.

E teem razão.

Claro, agora que os africanos não perdem nenhuma leitura que lhe diga respeito.

Antº Rosinha

antonio graça de abreu disse...

Desculpa lá, meu caro Rosinha, mas isso de chamar inocentes a refinados facínoras e sanguinários criminosos
como o Idi Amin (que comia o coração dos seus inimigos!)ou Mobutu, ou Bokassa, é forte, muito forte.
Salva-se o Patrice Lumumba.

E que bom saber que o Mário Beja Santos, andou pelo esplendoroso conventinho da Arrábida em busca da Catherine Deneuve...

Abraço do

António Graça de Abreu
regressado ontem dos desertos chineses da Ásia Central e de Xangai.

Anónimo disse...

Efectivamente, Antonio Graça de Abreu, devo distinguir entre a irresponsabilidade e a inocência.

Mas na realidade nunca Idi Amin será inocente mas a responsabilidade maior é da potência que lhe proporcionava apoio a ele asim como todods os outros.

Porque querer entregar a responsabilidade de governar tantas etnias, mesmo no caso do próprio Mandela, que foi só após a perestroika, só com acordos internacionais (Russia, EUA, UK, etc.), o que não aconteceu com a maioria.

Cumprimentos,

Antº Rosinha