Meus camarigos editores
Aqui, a pensar sozinho, saiu-me este escrito que vos envio.
Como sempre fica à vossa disposição para dele fazerdes o que quiserdes.
Um abraço forte e amigo do
Joaquim
A GERAÇÃO DA GUERRA
Lentamente as feridas vão fechando, a pele vai-se unindo, vamos passando cada vez mais creme hidratante para ver se não ficam cicatrizes, e vamos olhando para as maleitas à espera que não deixem marcas.
A cauterização é lenta, nalguns mais difícil, ou porque as feridas são mais profundas, ou porque tem um feitio mais “hemofílico”.
Curiosamente o tratamento de choque, a sanação das feridas, o acalmar das dores, faz-se normalmente à volta da mesa, em encontros preparados para o efeito.
É realmente curioso percebermos a importância da “mesa” no desenvolvimento das relações humanas.
As festas de família, fazem-se à volta da mesa.
As chegadas e as partidas, fazem-se à volta da mesa.
As alegrias e as tristezas, fazem-se à volta da mesa.
Os encontros e alguns desencontros, fazem-se à volta da mesa.
Negócios, combinações e até vigarices, fazem-se à volta da mesa.
Mesmo na religião, o Mistério central do cristianismo, se fez à volta da mesa, na Última Ceia.
Também a nossa Tabanca Grande, apesar dos escritos e das leituras, sente necessidade de uma vez por ano se reunir à volta da mesa, e como aos atabancados parece pouco apenas uma vez por ano, arranjaram maneira de constituir outras tabancas para se reunirem mais vezes… à volta da mesa!
Aspecto do V Encontro da Tertúlia, em Monte Real, Junho de 2010, organizado por Joaquim Mexia Alves
Foto de Manuel CarmelitaMas regressemos ao inicio do texto, e às feridas que vão sendo curadas e às vezes até quase esquecidas.
Não é fácil esta coisa de falarmos da guerra, sobretudo porque há muitos que não nos entendem, nem compreendem a nossa linguagem, pelo que, estes encontros à volta da escrita e sobretudo à volta da mesa, são sem dúvida o maior e mais permanente bálsamo para as nossas feridas.
E depois ficamos a pensar que realmente a nossa geração passou por muita provação, por muitas dificuldades.
A verdade é que, sem envolver a politica no assunto, esta geração foi chamada a lutar em territórios longe de suas casas e a dar o melhor de si, dos seus anos, voluntária ou forçadamente, em circunstâncias a maior parte das vezes adversas, ou para ser mais correcto, em circunstâncias abaixo de qualquer nível de humanidade.
E é também verdade que a última geração da guerra, levou ainda com uma “revolução”, (não discuto politica aqui neste nosso espaço), que veio alterar toda a sociedade em que vivia, e que assim obrigou a uma nova adaptação mesmo em cima do seu regresso da tal guerra, da qual ainda andava a curar as feridas.
Mas esta geração, ou melhor, estas gerações da guerra, eram e são tenazes, não só por tudo aquilo que passaram, mas pela necessidade que sentiram de continuar a lutar por uma vida melhor.
É ver a quantidade daqueles que vindos da guerra voltaram aos estudos e se licenciaram em cursos superiores.
E aqueles que deitaram as mãos ao trabalho e se especializaram em tantas áreas e até alguns que se tornaram empresários de sucesso merecido.
Quando hoje vemos tanta depressão já em jovens, tanta indecisão em prosseguir carreira e trabalho, tanta dificuldade em decidir e decidir bem, temos que perceber forçosamente que o cadinho das dificuldades nos revestiu de uma força e capacidade interior, que é marca indelével destas gerações.
Não tivemos a vida facilitada, nem pelo estado, nem pelos pais, (pois nesses tempos a educação era espartana), não tivemos as portas abertas a tantas oportunidades, passámos verdadeiramente as “passas do Algarve”, e no entanto, ou provavelmente por causa disso mesmo, não desistimos e continuámos a lutar.
Pois é, a realidade é que a Pátria, ou melhor o Estado, não nos deve apenas o sacrifício das nossas vidas na guerra, deve-nos também e apesar de tudo, o termos continuado a lutar e termos construído as bases, tantas vezes mantendo-as com tanto esforço, para que tudo continuasse a existir.
E somos nós ainda que nos preocupamos e tentamos ajudar aqueles que da nossa geração da guerra, por tantas e tantas razões que não lhes podem ser assacadas, se arrastam pela vida, esquecidos do Estado que os mandou para a guerra, e agora quer enjeitar as suas responsabilidades.
Mas ainda fomos mais longe, pois perante a “impossibilidade” de um relacionamento sério e honesto por parte do nosso Estado com aqueles com quem lutámos, somos nós que, colocando de lado feridas e dores, vamos estabelecendo com eles bases de uma nova amizade, cimentada muito mais no que nos une do que naquilo que nos divide.
E é assim também, verdade seja dita, que vamos curando as nossas mágoas e purificando as nossas memórias.
E não, não estou a querer fazer comparações com as gerações de agora, ou com aquelas que passaram antes de nós, (os tempos eram e são diferentes), mas apenas a constatar uma realidade que a todos nós toca sem dúvida, e que nos ajuda a percebermos que mesmo que não nos reconheçam, a nossa dignidade e a nossa hombridade está muito acima da homenagem hipócrita e feita apenas para nos tentar calar.
Escrevo o que escrevo e à medida que o vou escrevendo sinto-me bem, mais em paz comigo mesmo, e chego à conclusão que não preciso dessas tais homenagens ou benesses que vêm de uma qualquer concessão para calar vozes e passados incómodos, o que eu preciso realmente é de vós meus camarigos, e de todos aqueles que querem perceber que:
Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!
Monte Real, 28 de Outubro de 2010
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Notas de CV:
(*) Vd. último poste de 3 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7074: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (12): Tempo presente, A honra aos que lutaram
Vd. último poste da série de 29 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7189: Blogoterapia (164): O Blogue está a sofrer uma mutação evolutiva de qualidade / Sinal de maturidade é virmos aqui contar o que nos vai na alma (Carlos Filipe / Luís Graça)