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Queridos amigos,
A tese de mestrado de Álvaro Nóbrega é um trabalho digno de crédito, abre portas, favorece discussões salutares, alarga o horizonte polémico do conflito e da violência entre guineenses fora do contexto da luta armada.
É mais uma achega bibliográfica que justifica a indispensabilidade do blogue para a consulta dos estudiosos.
E após esta pausa sigo para os meus deveres na Operação Tangomau.
Um abraço do
Mário
A luta pelo poder na Guiné-Bissau
Beja Santos
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O resultado é estimulante e abre pistas bem curiosas para melhor compreender a Guiné-Bissau da actualidade (“A luta pelo poder na Guiné-Bissau”, por Álvaro Nóbrega, ISCSP – Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 2003).
Que propõe o investigador, acima de tudo? Identificar os mais salientes factores endógenos que contribuem para exercício da violência no poder e para compreender a resposta do poder político local na resolução dos conflitos. Para tal, o estudioso recorreu a trabalho de campo, procedeu à história oral, mergulhou nos arquivos, rodeou-se de bibliografia elementar, assim chegou a uma cartografia onde foi posicionando os instrumentos da sua análise, vejamos a que conclusões acabou por chegar, em consonância com a sua pesquisa e análise.
Primeiro, questionando a Guiné-Bissau como unidade política autónoma, desvela que apesar da exiguidade de recursos, o país possui algumas condições para manter a sua integridade: possui uma língua franca, o crioulo, hoje a generalidade da população usa-a supletivamente ao português; não há incompatibilidade étnica estrutural, se bem que o peso do direito costumeiro tenha uma importância indiscutível; não há uma clivagem agressiva entre etnias politicamente descentralizadas (caso dos Balantas ou Felupes) e etnias politicamente centralizadas (caso dos Papéis ou dos Bijagós), a zona islamizada do país não revela pretensões hegemónicas e muito menos fundamentalistas; a apropriação de terras não tem gerado conflitos étnicos, pelo contrário verifica-se que a ocupação do território após a independência se tem desenvolvido pacificamente; o espaço urbano de Bissau é o verdadeiro quebra-cabeças do país, a cidade cresce anarquicamente, a qualidade dos serviços é paupérrima e os habitantes não dispõem dos equipamentos minimamente necessários para se falar numa qualidade de vida satisfatória; se não há fome o mesmo não significa que não haja carências alimentares, graças aos recursos piscícolas e ao uso da terra a base da auto-sustentação permite que não se morra de fome; enfim, país maioritariamente agrícola, dependente de uma monocultura (caju), com elevadas riquezas na plataforma continental marítima, a Guiné-Bissau dá pouca esperança aos seus trabalhadores especializados, dispõe de muito poucas indústrias, não investe não habilitações técnico-profissionais, criou a habituação e a resignação na dependência da ajuda internacional.
Segundo, a Guiné tem uma longa tradição de violência, e não só dos autóctones contra os portugueses. Álvaro Nóbrega convoca a historiografia para nos recordar o que foi a via-sacra das operações militares das autoridades portuguesas até 1936, os conflitos interétnicos, a violência das tradições (aqui entendidas como os cerimoniais animistas que envolvem oferendas de vitimas e a imolação de animais, a feitiçaria, o peso da justiça tradicional, os infanticídios rituais, a antropofagia, o roubo de gado, isto para já não falar na prática social corrente das sociedades escravocratas). Nomeadamente a partir da luta armada, a Guiné-Bissau viu-se confrontada com o novo tipo de conflito latente, entre a modernidade sociopolítica e cultural e o peso da lógica tradicional. Logo a seguir à independência, o PAIGC acreditou que bastava fuzilar ou demitir as autoridades tradicionais e substitui-las pelos comités de tabanca para que o país desse um salto para a modernidade. Nada aconteceu assim, depois do golpe de 14 de Novembro de 1980 voltou-se ao compromisso com o direito costumeiro, a justiça tradicional e o poder dos chefes locais. Violência dissimulada ocorreu entre a burguesia cabo-verdiana que dominou ideologicamente o PAIGC e os combatentes guineenses; no entretanto, com a morte de Amílcar Cabral que, como se veio a descobrir, era o único produtor ideológico singular, o pensamento político dentro do PAIGC conheceu altos e baixos e atracções pelo socialismo tipo soviético até pulsões da mais descarada liberdade de mercado. Que detém o poder do dia possui uma visão patrimonial do Estado, constrói os seus mecanismos de recompensas materiais, cria cadeias de lealdade, destitui e nomeia a seu belo prazer.
Terceiro, o autor vem interrogar toda esta luta pelo poder a partir dos nacionalistas que se afirmaram na Casa de Estudantes do Império, prossegue com a análise da especificidade guineense da passagem à luta armada, descreve os acontecimentos do Congresso de Cassacá, em que Amilcar Cabral mandou punir os comandantes torcionários que aterrorizavam as populações, recorda o assassinato de Amílcar Cabral e o estranhíssimo silêncio que continua a envolver a conspiração, enuncia os crimes perpetrados e os ajustes de contas com quem foi leal com as autoridades portuguesas, explica as razões do chamado “Movimento Reajustador” e a repressão subsequente, demissão de políticos, golpes de Estado fantoches, perseguições pessoais, etc. A partir do momento em que o comunismo colapsou, até mesmo os radicais do PAIGC se aperceberam que devia haver mudança, entretanto chegara-se ao colapso económico, ao défice público permanente, dentro do PAIGC estalaram as facções e a aura messiânica de Nino Vieira caminhou para o acaso. Assim se chegou ao conflito de 1998 – 1999 que veio exaurir a Guiné, levar Nino Vieira ao exílio, ao assassínio bárbaro do brigadeiro Ansumane Mané e à ascensão do demagogo Cumba Ialá, por sua vez forçado a demitir-se depois de uma presidência de tragicomédia.
De tudo isto, que conclui o investigador? A complexidade do carácter nacional em que, curiosamente, “a diversidade é uma riqueza, mas contém em si um potencial de conflito”; o PAIGC continua a ser o eixo central do sistema político, com desavenças e reconciliações; na Guiné-Bissau, a luta política não pode ser dissociada da violência que terá as suas raízes no passado militar de muitos dos dirigentes do PAIGC; regista-se uma cristalização do pensamento de Cabral, ele é utilizado arbitrariamente, oportunisticamente ou, em desespero de causa, como o único cimento possível para invocar a lógica nacional; se durante a luta armada, e até 1980, os militares estavam enquadrados pelos dirigentes políticos, com Nino Vieira o poder militar superlativou-se e é hoje uma roda livre na cultura do poder. A retoma pela subordinação do militar ao político é uma das pedras essenciais para que se possa vir a falar na sinceridade e justeza do processo democrático.
Álvaro Nóbrega analisa com rigor todas as peças deste conflito, a leitura do seu estudo é recomendável para quem queira perceber a essência e a expressão do conflito permanente em que vive a classe política na Guiné-Bissau e como está divorciada dos reais interesses das populações.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 18 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7462: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (6): Bambadinca, recordações da casa dos mortos
Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7456: Notas de leitura (178): Breves Considerações Sobre Plâncton - Copépodes da Guiné, de Dr.ª Emerita Marques (Mário Beja Santos)