1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Dezembro de 2010:
Malta,
Foi na verdade um dia de emoções fortes.
Não mais entrara naquele quartel nem percorrera assim Bambadinca. Não me fora dado supor, nem ninguém me alertara para esta expectativa do direito a uma pensão militar, se nosso alfero nos vem cumprimentar certamente que nos traz a recompensa devida… o dia de amanhã terá igualmente o seu torvelinho de emoções, quando sair do Bairro Joli tenho o meu querido Mamadu Djao à espera, iremos ao porto de Bambadinca visitar o que dele resta.
Haverá mais surpresas à porta da casa do Fodé. Depois, iremos em excursão até Samba Juli, Lorde Torcato poderá estar atento com o que lhe será dado a conhecer. E depois Fá Mandinga, coutada do Jorge Cabral. Serei mal recebido, paciência, mas a missão será cumprida.
Um abraço do
Mário
Operação Tangomau (6)
Beja Santos
Bambadinca, recordações da casa dos mortos
1. O Tangomau dormiu mal, não lhe falta discernimento para as dores que se avizinham, hoje chegam soldados, há perguntas inevitáveis, as respostas serão facadas que chegam ao osso. Negociou com o patrão de costa, Fodé Dahaba, que o dia deve ser reservado à primeira imersão em Bambadinca, o lugar entre os lugares. Em dois anos que foram vividos ininterruptamente na região, aqui descobriu as delícias da amizade, aqui se reforçaram os cânones da solidariedade, Bambadinca alimentava os estômagos, as armas, os transportes e as comunicações, desde o Cuor até ao Xitoli, de Udunduma às bolanhas do Poindon.
Levantou-se cedo, depois do banho de caneco foi fazer leituras em frente a Bambadinca e às bolanhas de Ponta Nova e de Finete. Mesmo antes das 8 horas, chegam Calilo e Iaguba, ingerido o pequeno-almoço seguimos para o mercado, o dono da casa está sem viatura, impõe-se andar com a lista das compras à procura do possível e do impossível. O possível pode dar pelo nome de margarina, açúcar, batata inglesa, carne, farinha, ovos. O impossível anda à volta dos legumes. Entregues as compras, mentalizado para os encontros e as visitas, a Renault Express entre no Bambadincazinho e pára à porta do homem grande que já anda aos gritos, chegaram soldados milícias. Depois de suplicar pela enésima vez ao Fodé que o deixe de tratar por Dr. Mário, os visitantes lançam-se nos seus braços. Quem são eles? Madjo Baldé, o n.º 18, anuncia ter 64 anos e recorda que acompanhou todas as andanças da operação “Anda Cá”; Djiné Baldé, o 21, surpreende pela dignidade, pelo porte, pela doçura da voz; apresenta-se um tenente de uma Companhia Africana, Aladji Jamanca, vem por curiosidade, sabia da visita através do seu primo Fodé. O Tangomau pergunta por Sadibi Camara, Sila Sabali e Tomani Sanhá, há hesitações, ninguém sabe onde vive mas pelo menos a resposta foi de que estão vivos. Trazem cumprimentos da família de Mamadu Baldé, que foi comandante das milícias de Amedalai e da família de Cherno Baldé, que foi comandante do pelotão de Demba Taco. Os presentes anunciam que ainda hoje vai chegar Arafan Dembó, o Zé Finete, maqueiro na dita povoação. O Tangomau pergunta-lhes se têm notícias de Ieró Djaló, o soldado milícia de Missirá que deixou fugir o prisioneiro durante a operação “Anda Cá” e Madjo Baldé esclarece que ele já foi informado mas vive longe, para cima de Sonaco; o outro Ieró Djaló, o primeiro guarda-costas do Tangomau, também conhecido por Nova Lamego, está também informado desta viagem, irá telefonar ao Fodé, espera vir à festa. Calilo vai levar Aidja a um choro na Bantajã mandinga, quem vai acompanhar o Tangomau e seus camaradas é Iaguba. E começa a excursão de Bambadincazinho para as memórias do quartel de Bambadinca.
Disse-se em comentário a um anterior álbum fotográfico que ainda existe o porto do Xime. É totalmente falso. Os vestígios do porto do Xime são estas estacas, as canoas pertencem a pescadores e do outro lado temos a bolanha do Enxalé. Ninguém entende a fúria depredadora que leva à perda de infra-estruturas com o significado que tinha o porto do Xime. O Tangomau não acreditava no que estava a ver. Nem previa que o porto de Bambadinca se encontrava numa desolação parecida.
2. No mercado de Bambadincazinho dá-se uma ligeira guinada para a direita e fica-se em frente dos restos da porta de armas que dava para os itinerários do Xime, à direita, e Mansambo e Xitole, à esquerda. Até se fica com a ilusão que se está a entrar no quartel, o equipamento que se avista não está desfigurado. Os amargos de boca vão aparecer mais adiante. A capela aparece recuperada, ao lado funciona uma escola das irmãs missionárias, o Tangomau pede autorização para visitar o templo. Alguém vem abrir a porta, foi pena terem-se perdido as imagens do seu interior. O Tangomau rezou pelos seus mortos, memorizou as diferenças e sensibilizou-se com as semelhanças entre o passado e o presente. Quase em delírio, até viu a imagem do António Ribeiro Teixeira (o Teixeira das Transmissões) que lhe por amor de Deus que o libertasse da incumbência em ajudar a vestir o morto, estava enojado com aquela carne fria. O Tangomau rasgou como pôde as costas da camisa e compôs o falecido enquanto o Teixeira olhava para o lado, a fugir da assombração.
Saiu da capela, passou ao largo do quartel, verificou que a enfermaria era uma ruina, menos ruina estava a secção automóvel (pelo menos o edifício estava telhado) e desceu a rampa. Aqui a tensão nervosa sobrepôs-se, a rampa perdeu a compostura, é um declive escalavrado, com as gretas das águas impiedosas da época das chuvas. Aquela é a rampa da vida do Tangomau, desce-a e sobe-a perante o olhar atónito de Iaguba. Madjo Baldé sossega-o: Mário, sufre, Mário tem paciência. Mas o Tangomau não tem paciência nenhuma, está indignado com a descompostura daqueles lugares fundamentais da sua existência; e brada para os céus: “isto não se faz!”, “Bambadinca não merecia este tratamento”. A estrada encurtou, é um simples caminho pedonal, das crianças, dos pescadores e dos moradores do que resta de Bambadinca. Até ao porto, sucedem-se os escombros, os da Casa Gouveia, da Ultramarina, há mesmo armazéns abandonados em plena agonia. Lamentavelmente, perderam-se as imagens da conversa com a D. Rosa, uma das professoras de Bambadinca, que queria à viva-força ficar com um dos livros destinados à população de Missirá e Finete; perdeu-se a imagem da Mariama gorda, toda enfeitada, era a outra lavadeira do alferes Machado, ele dera esta incumbência ao Tangomau; como se perderam as imagens do interior da casa do Sr. Rendeiro, felizmente habitada por família numerosa. Do que resta desta artéria outrora buliçosa segue imagem esclarecedora.
Ninguém explicou satisfatoriamente ao Tangomau de quem era este armazém, ele até pensou tratar-se do estanco de José Maria Tavares. São estes vestígios espectrais, estas ruinas de povoação fantasma que falam da Bambadinca dos anos 60 e 70, que os militares conheceram.
3. A excursão encaminha-se para o porto, ou para o que dele resta. Antes, porém, é tal o peso da nostalgia, o Tangomau vai perguntando nas moranças vizinhas do Geba estreito onde está o resto da estrada que levava ao ponto de cambança. E fala no nome de Mufali, o canoeiro. Alguém indica o caminho, também ele reduzido a um vestígio. Em frente, também o que resta da estrada que atravessava a bolanha de Finete. Olhando à esquerda, vêem-se canoas. O Tangomau volta-se, às arrecuas, foge dali espavorido. E será por ali que amanhã começará o dia. Volta a subir a rampa, pára em frente da antiga casa do chefe de posto, hoje residência do representante político. Vá lá, está compostinha, não lhe subtraíram a dignidade. A mãe de água apodreceu.
O poilão é imponente, lança tentáculos até ao fim dos tempos, não haverá fúria da natureza capaz de o desalojar. Aquela instalação vem do tempo da guerra e a mãe de água, ou o que dela resta ergue um olhar ufano, do alto da sua desdita. O que mais impressionou o Tangomau é que este é um recanto muito próximo da Bambadinca onde ele viveu.
4. Ganhou-se coragem, é a vez de entrar no quartel. À porta, quem acolhe o grupo é o Tenente-Coronel Seco Mané, o Comandante Militar da Unidade. Surpreende-se com a visita, o Tangomau mostra-lhe os livros com as imagens do interior e do exterior. Entra-se no corredor do edifício dos oficiais, o Tangomau apresenta as versões daquele tempo: aqui vivia o tenente da secretaria, lá ao fundo os oficiais superiores… segue-se em cortejo para messe. Aqui é o desabar de emoções, choro compulsivo, era inimaginável encontrar tal transfiguração. Aqui, era o lugar dos lugares, o verdadeiro ponto de chegada ou de partida, não só para comer ou desabafar, não só para escrever aerogramas ou para ler o jornal de seis semanas antes.
Aqui era a vida de relação, o seu epicentro. Por isso, como um boneco de palha, o Tangomau caiu por terra, magoado com a insensibilidade dos homens. O Tenente-Coronel pede-lhe para não chorar, só que a indignação do Tangomau é mais forte, percorre os espaços, ocorrem-lhe imagens, sente cheiros, pressente vultos, parece ter entrado em transe. Vai recuperando lentamente, estaca na velha estrada onde se formava a longa coluna de abastecimento ao Xitole, recorda que havia uma outra porta de armas junto à rampa, mas esta desapareceu. Há ainda uma deambulação em torno do refeitório das praças, por detrás da antiga escola. Aqui o abalo demolidor foi menor, há instalações aproveitadas, no meio construíram o novo equipamento escolar. O Tangomau sente o peso das emoções, pede para voltar. No regresso, uma nova emoção forte: Sadjo Seidi, o bondoso e valoroso Sadjo Seidi, mesmo contido, acolhe-o de braços abertos. Veio de bicicleta dos confins do Xime, mal lhe chegou a notícia de que o Tangomau arribara.
Sadjo Seidi está à esquerda, Madjo Baldé no centro e Djiné Baldé à direita, Fodé está cortado. Solucei abraçado a Sadjo Seidi, foi um dos feridos da operação “Tigre Vadio”, aliás o único ferido do Pel Caç Nat 52. Ele ia na coluna da frente quando entrámos, com total surpresa, no interior do acampamento de Belel. No desespero, a sentinela disparou a sua bazuca, Sadjo guarda no peito as marcas de alguns estilhaços. Mas o mais importante é que Sadjo veio dizer publicamente que nunca esquecera a dívida que tinha com o Tangomau, contas afectivas antigas que não vem ao caso aqui contar. Vai ser um dos momentos mais consoladores de todos estes encontros.
5. O Tangomau cai em si, começa-se a fazer luz sobre um ritual até agora indecifrável. Na verdade, cada vez que chega alguém, retira cuidadosamente de um bolso do interior da camisa a sua documentação militar, umas vezes cuidadosamente resguardado com plástico, outras vezes um papel amarelecido e esquartejado pelo uso. Dado o caso de Fodé o ter chamado à parte, amanhã é o dia de Samba Juli e de Fá, ele propõe mesmo um dia de visita a Finete e Malandim, é, no decurso desta conversa que ele pergunta a Fodé porque é que lhe mostram invariavelmente a documentação militar. Sibilino, este adianta: “Eles já sabem que não tens os poderes do presidente da República, mas acreditam que tu vais resolver o problema da pensão de reforma, não lhes passa pela cabeça que não vieste para os ajudar, vê o que podes fazer”. O Tangomau disparata com Fodé, escrevera-lhe dando-lhe conta dos seus intentos, era impossível que Fodé pudesse invocar ignorância sobre a impossibilidade de prometer pensões ou de encontrar uma solução justa para estes militares que, em tantos casos, tinham combatido mais dez anos sob a égide da bandeira portuguesa.
Irado, o Tangomau procurou esclarecer os presentes do que o trouxera à Guiné. Fez questão de que Fodé passasse tudo para crioulo. Tudo foi ouvido em silêncio e depois ouviu-se o comentário resignado: faça-se a vontade de Deus. O dia caminha para o zénite, foram emoções a mais, o Tangomau ainda dá dois dedos de conversa a todos os presentes, pede para regressar a pé e só, até ao Bairro Joli. Tem assim mais uma oportunidade de disfrutar a descida da rampa, inflectir pela bolanha, pejada de lírios brancos, formam um tapete deslumbrante. Quando chega a casa, a bola de fogo do sol caminha para o acaso. É o instantâneo da hora mais procurada, pois a luz despede-se triunfal, como se dissesse: até amanhã, eu sou o segredo da vida, faça-se noite para amanhã se fazer dia. Há que meditar sobre tudo o que aconteceu, ganhar coragem para o dia que irá nascer.
Dentro de segundos, extinguir-se-á o dia. Este é o ocaso dos trópicos, o refulgente astro-rei lança a derradeira radiação solar. É a imagem perene que o Tangomau guarda das travessias da bolanha de Finete. A última luz a anunciar o manto da noite. E a prenunciar que amanhã há um novo dia, o eterno recomeço.
Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 17 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7456: Notas de leitura (178): Breves Considerações Sobre Plâncton - Copépodes da Guiné, de Dr.ª Emerita Marques (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 15 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7440: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (5): Do Bambadincazinho para Ponta Varela
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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