sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9060: Blogoterapia (192): Em dia dos meus anos, na medieva Ucanha, lembrando tantos e bons amigos, incluindo o malogrado soldado Napoleão, da minha companhia, a CART 6250, Mampatá, 1972/74 (José Manuel Lopes)


Peso da Régua > Galafura > São Leonardo de Galafura > 12 de Abril de 2009 > Um dos mais dez deslumbrantes miradouros de Portugal. Na foto, em primeiro plano, a Maria Alice, o António Pimentel e o nosso guia, Zé Manel... Daqui, dos 640 m de altitude,  vê-se cinco distritos, garante ele, que é um apaixondo pelo seu Douro...

Foto: © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados


1. Texto de José Manuel Lopes, poeta, vitivinicultor da Região Demarcada do Douro, ex-Fur Mil da CCAÇ 6250, Mampatá, 1972/74:

Domingo, 13 de Novembro de 2011, um dia como outro qualquer, só um pouco diferente para mim e meus familiares porque faço 61 anos. Tenho em casa um amigo muito especial, o António Pimentel, com ele uma pessoa também especial a Lurdes e mais quatro novos amigos que eles trouxeram da Figueira, aquela terra simpática que fica mesmo paredes meias com Buarcos. Não é,  Vasco da Gama?

No sábado fomos a um almoço organizado pelos "Viciados do Douro", ao qual eu não pertenço, mas fui convidado, na terra de Miguel Torga,  São Martinho de Anta. E fiquei contente com o que vi e ouvi de gente boa e bonita por dentro e por fora. O almoço correu muito bem, tudo estava bom e o magusto que se seguiu no meio da Praça da Aldeia ainda melhor.

No dia seguinte, 13 de Novembro fomos logo pela manhã a S. Leonardo de Galafura, encher a vista e a alma daquela deslumbrante paisagem do Douro e ler os poemas de Torga sobre o seu o nosso Douro sublimado. Depois rumamos à Ponte do Ucanha,  monumento do Sec. XI, testemunha da grandeza da nossa história e de tempos passados que pelo que vou vendo à minha volta nunca mais atingirão tamanha dimensão.


Depois da visita à Ponte, já não havia tempo de ir ao Mosteiro de Salzedas e ao Bairro Judeu, pois a fome apertava e a paciência daquela gente não dava mais para fazer esperar os petiscos da Tasquinha do outro lado da Ponte de Ucanha. [, Foto à esquerda, Abrild e 2004, cortesia de Wikipédia].

Éramos 9 para almoçar e já passava das duas. Entramos na Tasquinha [do Matias], mesas postas com deliciosas entradas e ainda não tínhamos ocupado os nossos lugares, rebenta a emboscada, mas os sons eram outros, saídos de 19 gargantas bem afinadas, que entravam pelas traseiras do Restaurante. O António Carvalho, o Zé Pedro Rosa, o Zé Cancela, o Peixoto (sem o Frade), o Silva, o Carmelita, o Rodrigues,  o Jaime Machado e respectivas companheiras.

Confesso que a operação foi muito bem preparada e melhor executada. A minha surpresa foi tal e a minha expressão tão surpreendente que soltou as gargalhadas de todos. Não hove baixas, apenas eu fiquei ainda mais prisioneiro daqueles amigos até ao limite.

Depois na hora de "botar faladura", lembrei-me do Napoleão, soldado da minha Companhia que era dos mais fieis aos nossos encontros anuais. Faltou em 2010, uma doença fatal o levou, mas no seu lugar apareceu a mulher e a filha com uma mensagem sua, um postal com a sua foto, onde agradecia o ter-nos tido como amigos.

Em 2011 a CART 6250,  "Os Unidos",  homenageou-o s com uma lápide que dizia o seguinte:

"A verdadeira coragem
está na nobreza dos gestos e pensamentos,
a tua mensagem num momento tão difícil
foi um hino à amizade
e caiu bem fundo dentro de nós,
naquelas picadas nunca caminhávamos sós,

o nosso olhar guardava aquele que nos precedia
e as nossas costas protegidas
pelo camarada que ia mais atrás;
assim…
nasceram amizades que não têm fim,
todos nós, da Companhia dos UNIDOS,
estamos orgulhosos por te termos tido
como camarada e amigo,
obrigado Napoleão."

Sim, tenho a certeza, de que não há amizades tão profundas e duradouras como as que nasceram entre os ex-combatentes.


Obrigado a todos

josé manuel

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Nota do editor:

Último poste da série > 8 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9012: Blogoterapia (191): Na varanda e a Guiné-Bissau (Carlos Filipe)

Guiné 63/74 - P9059: Memória dos lugares (163): Mampatá saúda Mampatá (António Carvalho / José Câmara / José Eduardo Alves / Mário Pinto)

Região de Tombali > Mampatá > Uma foto aérea de povoação e aquartelamento.
Foto: © José Manuel Lopes (2008). Todo os direitos reservados .


Comentários deixados no Poste 9052*, referente à apresentação à tertúlia do nosso novo camarada José Santos que foi 1.º Cabo Auxiliar de Enfermeiro na CCAÇ 3326, Mampatá e Quinhamel, 1071/73:

1. Do nosso camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto foi Fur Mil At Art na CART 2519 (Os Morcegos de Mampatá), Buba, Aldeia Formosa e Mampatá,1969 a 1971:

Caro José Santos
Em meu nome e da Cart 2519, Os Morcegos de Mampatá, dou-te as boas vindas ao nosso convívio.

Como deves estar lembrado a CCAÇ 3326, foi a Companhia que rendeu a minha em Fevereiro de 1971. Nesse altura metade da minha Companhia seguiu para Bissau via Buba, através de LDG, ficando 2 Gr Comb em Mampatá, um dos quais o meu.

Na primeira saída que fiz com vocês para o corredor de Missirá, tiveram o vosso baptismo de fogo num forte contacto e onde a CCAÇ 3326 teve os primeiros feridos e o IN 2 mortos e algumas baixas. Como resultado, vocês tiveram o o vosso primeiro material capturado (ronco).

Mampatá encontra-se no Blog, bem documentada, em períodos distintos conforme as unidades que por lá passaram sendo o período com menos informação o ocupado pela CCAÇ 3326 (1971/72). Convido-te [para o fazer], se puderes e estiveres interessado, para assim conseguirmos fechar o círculo das unidades instaladas em Mampatá.

Um abraço
Mário Pinto
ex-Fur Mil CART 2519


2. Do nosso camarada António Carvalho, ex-Fur Mil Enf da CART 6250, Mampatá, 1972/74:

Caro José Santos:
Também te saúdo de forma muito especial porque também sou de Mampatá. Fui Fur Mil Enf da CART 6250 que vos foi render, no fim de Julho de 72. Só me lembro do Real e do vosso capitão que nunca mais encontrei.
Devo dizer-te que passámos a comissão a proteger os trabalhos de abertura e asfaltagem de duas estradas: uma entre Aldeia e Buba com passagem por Mampatá e Nhala, e outra ligando Mampatá a Colibuía, Cumbidjã e Nhacobá.

Um abraço
António Carvalho


Do nosso camarada José Eduardo Alves, ex-Condutor da Cart 6250, Mampatá, 1972/74:

Camarada e amigo José Santos,
Em primeiro deixa-me dar-te as boas vindas ao blogue. Eu, José Eduardo Alves, fui condutor da CART 6250 que vos foi render a Mampatá. Estou contente por saber que estás com ideias em ir ajudar aquela gente para o hospital da Comura, pois eu indiretamente estou ligado à gente que faz lá serviço de voluntariado.

Já fui 3 anos seguidos à Guiné-Bissau, claro visitar a gente de Mampatá onde tenho bons amigos. Fui com a minha esposa, e no próximo ano talvez volte lá.

Um abraço, depois falamos.
José Eduardo Alves


4. Finalmente, do lado de lá do Atlântico, do nosso camarada José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73, estes dois comentários:

Bem-vindo ao Blogue. Em tempos estive em contacto com o Brum. Por aqui, no estado de Massachusetts, conheço o Soldado Condutor Auto Manuel Fortuna, natural do Faial. Vive em Taunton. Também tenho os contactos dos Fur Mil José Bendito e Fernando Portugal.

Se estiveres interessado no meu contacto, podes pedi-lo aos editores.

Já agora, tal como o Luís Graça, gostaria de saber de onde veio essa história dos “Jovens Assassinos de Mampatá”. Tenho alguma dificuldade em aceitar que o vosso Cap Paula de Carvalho, um Comandante muito austero, permitisse o nome de guerra “Jovens Assassinos de Mampatá”. Mesmo assim tudo é possível.

Eu tenho um crachá da vossa companhia, “Os Sempre Operacionais”. Foi este crachá que esteve presente no último convívio da CCaç 3327 e para o qual foram convidadas as CCaçs 3326 e 3328.

Um abraço,
José Câmara
CCaç 3327


5. Ainda do camarada José da Câmara:

Caros amigos,
Decidi prosseguir um pouco mais com o meu comentário anterior por ter sentido que o nome de guerra "Jovens Assassinos" não se coadunava com a docilidade do soldado açoriano. Também não é menos verdade que conheci muitos dos militares que compunham a CCaç 3326, com os seus graduados e mantenho correspondência com alguns. Foi a um desses graduados que me dirigi para aclarar um pouco sobre aquele nome de guerra.

Tal como deixara antever antes, nunca houve nome de guerra Jovens Assassinos de Mampatá, mas uma alcunha feita por forças exteriores à Companhia.

Por ter entendido que essa alcunha não orgulhava o meu correspondente, camarada e amigo, pedi-lhe e foi-me concedida a devida autorização para usar as suas próprias palavras na explicação do que então aconteceu.

Com a devida vénia:

“Quando chegámos a Mampatá entrámos a "matar" naquela zona em que praticamente se havia perdido o controle e rapidamente o reconquistamos .

Foram uns primeiros 7 ou 8 meses verdadeiramente infernais. Mas atenção:
NÃO FOMOS NÓS QUE NOS BAPTIZÁMOS COMO "JOVENS ASSASINOS DE MAMPATÁ"
Nós fomos baptizados assim pelo PAIGC e por outras Companhias que souberam do nosso percurso ao fazermos a "limpeza" da zona.

Não tenho orgulho nisso, por que as guerras têm sempre o lado injusto. Mas era a lei da sobrevivência. Eram eles ou nós.”

De notar que o grande e único juízo de valor que esse nosso camarada faz, que importa realçar, é a sua afirmação “Não tenho orgulho nisso”, nesse nome, acrescento. Nas mesmas circunstâncias, como filho dos Açores e de Portugal, eu também não teria, nem tenho.

Um abraço amigo,
José Câmara
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9052: Tabanca Grande (306): José Santos, ex-1º Cabo Enf, CCAÇ 3326 (Mampatá e Quinhamel, Jan 71/Jan 73)

Vd. último poste da série de 9 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9016: Memória dos lugares (162): Farim do Cantanhez e suas gentes... (João Graça)

Guiné 63/74 - P9058: O nosso blogue em números (18): A propósito dos 3 milhões de visitas... Comentário de Ricardo Figueiredo (ex-Fur Mil, 2ª CART / BART 6523, Cabuca, 1973/74)

Lisboa > Margem direita do estuário do Tejo, na zona de Belém > 15 de Outubro de 2011... A ponte suspensa sob a nossa cabeça... Uma parte de nós passou sob ela, duas vezes, na ida para (e na vinda de)  a Guiné, que foi o nosso fado... Na época ia-se de barco, e só para o fim, de avião... A ponte começou a ser construída em 1962 e foi inaugurada em 1966... Continua a ser uma das mais belas do mundo... (LG)

Foto : ©  Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados


1. Mensagem, com data de ontem, do nosso camarada, portuense, de Cedofeita, Ricardo Figueiredo [ , ex-Fur Mil da 2.ª CART/BART 6523, Cabuca, 1973/74), ], que entrou entrou para a Tabanca Grande em 19 de janeiro de 2011, com o nº 472.


Meus Caros Camaradas Luis Graça, Carlos Vinhal e Magalhães Ribeiro,

Os três milhões de visitantes demonstram,  à saciedade, a importância e o interesse que este blogue desperta, não só nos ex-combatentes, como também em alguns, muitos dos seus familiares, amigos e estudiosos do fenómeno da guerra colonial que a todos nos envolveu.

As intervenções que nele são espelhadas, demonstram bem quão vivos estão o espírito de corpo e de camaradagem, que então nos ensinaram e abraçámos na nossa juventude  e que deixámos de alguma forma salpicados por toda a Guiné.


Os exemplos desse espírito são tantos, que seria fastidioso, aqui e agora, enumerá-los, mas não posso deixar de chamar à colação a solidariedade que diariamente nos é transmitida por muitas das intervenções, quer  nos pequenos  quer nos grandes acontecimentos que testemunhamos.

A manta de recordações de que é feita este Blogue, que nos dá alegrias, nos traz  a nostalgia, a saudade, às vezes a tristeza, ao tomarmos conhecimento da partida de um camarada, mas também a felicidade de bebermos uma taça na comemoração de mais um aniversário natalício de um outro camarada é feita, dizia eu, diariamente por camaradas que abnegadamente, utilizando as suas horas de descanso, de ócio ou de convívio
com a família, nos proporcionaram a possibilidade de atingirmos este maravilhoso marco dos Três Milhões de visitantes.


Para vós, camaradas Luís Graça, Carlos Vinhal e Magalhães Ribeiro, na qualidade de Editor e co-Editores, sem menosprezo de tantos outros camaradas que dão necessariamente o seu melhor, permitam-me que vos apresente os meus melhores agradecimentos por todo o trabalho desenvolvido, pela postura manifestada em circunstâncias por vezes adversas  e pelo saber conciliatório com que têm contornado situações muitas vezes explosivas.


Continuem a divulgar com a mesma seriedade e transparência, a narrativa, a vossa e a nossa, que foi a Guerra Colonial, sobretudo a da Guiné.

Ricardo Figueiredo

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Nota do editor:

Ultimo poste da série > 17 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9055: O nosso blogue em números (17): A propósito da sondagem dos 3 milhões... Comentários de Armando Fonseca / José Nunes / Manuel Bastos / Rui Silva.... Foto de Guileje, de Abílio Pimentel

Guiné 63/74 - P9057: Notas de leitura (303): Amílcar Cabral Filho de África, de Oleg Ignatiev (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Outubro de 2011:

Queridos amigos,
Nada a opor às reedições, com averbamentos e polimento. Haja a decência de avisar que se trata de produto retocado. No afã de juntar o maior número possível de peças para esta babilónica bibliografia que também engrandece o blogue, deparei-me com dois títulos aparentemente diferentes e no fundo iguais.
Oleg Ignatiev entendeu em momentos diferentes publicar o mesmo conteúdo com novo visual. Não é curial este procedimento, é um logro para o leitor. Não se faz. Amílcar Cabral não merecia esta mascarada.
Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral, uma outra biografia de Oleg Ignatiev (?!)

Beja Santos

Oleg Ignatiev, o jornalista que porventura mais vezes visitou a Guiné-Bissau, e que estabeleceu uma relação profunda com Amílcar Cabral, é autor de uma biografia datada de 1975 pelas Edições Progresso e que foi traduzida para português em 1984. Esta recensão já foi publicada no blogue*.

Qual não foi a minha surpresa quando encontrei uma tradução intitulada “Amílcar Cabral, filho de África”, da Prelo Editora, 1975. Comecei a ler e senti-me desorientado, tinha lido, algures, aquela prosa.

Depois foi uma questão de comparar os índices. Na edição de Moscovo de 1984, Ignatiev dá-nos um capítulo inicial sobre Juvenal Cabral, pai de Amílcar, logo a seguir introduz a Casa dos Estudantes do Império, o espaço em que Amílcar Cabral estabeleceu convivência com Marcelino dos Santos, Agostinho Neto e Vasco Cabral, entre outros. Iniludivelmente, o jornalista soviético fez copy/paste da primeira edição, adicionando-lhe o referido capítulo sobre Juvenal Cabral, desdobrou o capítulo referente à presença de Amílcar na Guiné, a partir de 1952 e forjou uma conversa de conteúdo duvidoso com o Governador Melo e Alvim. Igualmente mais adiante desdobra a descrição do Congresso de Cassacá, juntando pormenores referentes à luta de libertação.

Aqui fica o alerta para os estudiosos: a leitura de uma narrativa biográfica é substituível pela outra. É desconcertante como um autor não é capaz de explicar aos leitores que o novo título não passa de uma versão corrigida e aumentada. Paciência, também assim alguns escritores vêem crescer os estipêndios com os seus direitos autorais e a notoriedade nos escaparates, impingindo gato por lebre. Aqui fica o aviso à navegação.
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Notas de CV:

(*) Vd. postes de:

4 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8995: Notas de leitura (299): Amílcar Cabral, por Oleg Ignátiev (1) (Mário Beja Santos)
e
7 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9006: Notas de leitura (300): Amílcar Cabral, por Oleg Ignátiev (2) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 14 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9039: Notas de leitura (302): Terra Ardente - Narrativas da Guiné, de Norberto Lopes (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P9056: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (10): O grande choque (2)

1. Em mensagem do dia 17 de Novembro de 2011, o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta menos boa memória da sua guerra.


Outras memorias da minha guerra (10)

O grande choque II

Ainda atordoado com tantas mudanças repentinas (relatadas no post P8466 - O grande choque) e já experimentava novas mazelas.

Em Fá (Bambadinca), logo de início, o nosso Capitão (oficial de carreira) mostrou bem o seu profissionalismo. Procurou dar trabalho a toda a gente e segurar bem o grupo no aspecto disciplinar, ainda que cedendo um ou outro maço de cigarros aos revolucionários de referência. E logo se preocupou em obrigar a malta a andar limpa e asseada e até com as botas engraxadas (conforme formaturas efectuadas para o efeito).

Tudo bem, mas a situação já não era a mesma da Metrópole. As saudades, o calor, os mosquitos, o isolamento e as primeiras saídas, não nos davam disposição para mais sacrifícios desnecessários. Por outro lado, não aceitávamos a falta de bebida fresca naquele “forno de Maio”. Quanto ao afastamento do grupo de oficiais (técnica do “manter as distâncias”) relativamente aos furriéis, durou pouco tempo. O próprio Capitão (quando “elas” começaram a doer) chegou cedo à conclusão que era essencial contar com aquele bom grupo de furriéis. Porém, foram ainda umas semanas para ele ceder.

Entretanto, recordo:
Dia 6 de Maio de 1967
Recebo a primeira informação sobre o ferimento em combate (tiro na coluna vertebral) na noite de 29/4, do meu maior amigo José Ribeiro, na véspera de se deslocar de Empada para Bissau (onde supostamente nos iríamos encontrar) e vir de férias para casar neste mesmo dia 6, em Santa Maria da Feira. Encontrava-se agora em coma no Hospital Militar de Lisboa. Fiquei ainda mais destroçado.

Nestes dias de calor infernal, iniciámos os patrulhamentos e uns treinos operacionais para os lados de Xime e Enxalé.


 Entre 15 e 20 de Maio, fomos para Enxalé fazer treino operacional. Para além dos medos que nos metiam, o que mais recordo foi o ambiente festivo em que a tropa lá sediada festejava os seus 4 meses de Guiné. Para nós, aqueles 4 meses, já eram uma barreira difícil de vencer. E faziam-no com tanto fervor e tanta exuberância que nos amesquinhavam e diminuíam. Não esqueço aquela formatura de despedida, em que vários dos nossos militares foram descalços para a formatura por terem desaparecido as botas, enquanto que a tropa local gozava à gargalhada, misturada com “elogios” aos periquitos.

Uns dias depois (22/24 de Maio), numa noite dessa “iniciação ao teatro de guerra”, estando eu, no Xime, a dormitar ao ar livre e ao sabor dos mosquitos, ouvi uns gritos enormes de homem. Quando perguntei o que se passava, disseram-me para ter calma, porque era o cozinheiro (tido como um valentão daquela Companhia) que estava a “fritar os pés de um turra”.

Ainda fizemos uma Operação (“Governar”), sem contacto com o inimigo. Numa destas Oerações de treino, a frente da nossa Companhia avistou um grupo de “turras” em movimento e como ainda não se havia disparado um tiro em combate, esperou-se a indicação do Capitão que, não autorizou o ataque. Justificou com problemas de consciência, o que, conforme se constou, lhe veio a trazer observações de chacota, por parte dos seus pares (e superiores) no Comando de Bafatá.

Sempre que eu podia, ia de boleia até Bafatá, na viatura de apoio ao Vagomestre. Mal chegava a Bafatá, metia-me logo na piscina, bebia umas cervejas geladas e pedia frango de churrasco picante, para o regresso. Eram estas escassas horitas de “grandes prazeres” que nos fizeram iniciar da melhor forma a “resistência” àquela guerra maldita.

Numa dessas deslocações, o motorista “Coimbra” teve um acidente, no centro de Bafatá. Quando seguíamos a uma velocidade normal, fomos embatidos do lado esquerdo, junto do depósito do combustível do Unimog, por uma moto com dois jovens locais. Como ficaram bastante feridos, tiveram que ser evacuados de avião para Bissau e o Comando de Sector tomou conta da ocorrência. Tratava-se de jovens muito populares em Bafatá, o que nos atirou logo para a condição de culpados. Acresce dizer que nos valeu um Capitão Guimarães (?), que nos acalmou e muito especialmente ao motorista, que não parava de chorar.

Logo que o nosso Capitão veio de Bafatá, onde fora tratar dos seus assuntos militares, alertou-me para o facto de eu ser o responsável no acidente. Alegava ele que a viatura militar era tida como culpada e que sendo eu o mais antigo dos graduados que lá seguiam, incluindo o Vagomestre, seria responsabilizado pelo acidente. Ainda lhe disse que fora de boleia e que nem sequer seguia na frente da viatura, pois que estava sentado atrás, de costas para o movimento, mas ele não queria saber. Além disso, eu não via motivos para que se pudesse considerar a viatura militar como culpada. Prometeu que iria preparar o processo e interceder por nós, mas para eu me preparar para o pior.

Não sei bem porquê, mas tive sempre a impressão de que o Capitão não simpatizava comigo (ao contrário de outros) e que apenas me foi suportando porque precisava da minha contribuição militar.

Poucos dias depois fomos lançados para Oio, a partir de Banjara, tendo-nos sido infligido um violento ataque, como baptismo de fogo, seguido de outros contactos que, a par da nossa desorientação e cansaço, nos deixou de rastos, conforme descrição nos Post P7004 e P7159, tendo, até, havido casos de militares que tiveram que beber urina. Passara-se apenas um mês e pouco desde a chegada à Guiné e já havia uma grande quantidade de situações tão surpreendentes quanto anormais, que me puseram em “stress” permanente.

Já se bebia demais, a fim de se esquecer a situação em que estávamos metidos. Os sonhos de amor e amizade tornaram-se inatingíveis. Eram agora pesadelos horríveis. Quantas vezes me “via” junto dos amigos, da namorada e, desesperadamente, não conseguia contactá-los. Gritava-lhes e eles não me respondiam. Acordava, aflito, e enfrentava de novo, em catadupa, um montão de coisas más que estavam a acontecer. E eu, impotente, nada podia fazer.

Tentava controlar-me para não fazer algo de irremediável e confiar que teria que melhorar.

Silva da Cart 1689
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8909: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (9): Oficial não Cavalheiro

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9055: O nosso blogue em números (17): A propósito da sondagem dos 3 milhões... Comentários de Armando Fonseca / José Nunes / Manuel Bastos / Rui Silva.... Foto de Guileje, de Abílio Pimentel


Guine > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 2617, Magriços do Guileje, Março de 1970 / Fevereiro de 1971.. Uma saída para o mato... Não elementos para identificar estes camaradas... Destaque para o apontador e o municiador do morteiro 60, e ainda o apontador e o municiador de diligrama... O único que leva granadas de mão (defensivas) é o aponteiro do morteiro... Duas armas temíveis, o morteiro e o dilagrama, quando em boas mãos... (LG)

Foto : © Abílio Pimentel / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006). Direitos reservados. (Editada por L.G. Reprodução com a devida vénia...)


1. Manuel Bastos (17/11/2011)


Camaradas,

Venho responder ao desafio, quanto a justificar a minha classificação (de "muito melhor") [ na respoosta à sondagem].


De um blog, era costume esperar-se algo despretensioso e casual, mas este é um dos casos em que o interesse dos conteúdos, a exigência dos visitantes e a resposta dos administradores elevaram o blog a um patamar difícil de imaginar inicialmente.

É seguramente o espaço da Internet por excelência no âmbito da Guerra Colonial Portuguesa, mas essa excelência começa a ser o seu problema porque extravasa as limitações e o conceito da plataforma, i. e. os conteúdos pela sua diversidade e quantidade já precisavam de uma poderosa base de dados on-line.

Julgo que se deveriam conjugar os diversos meios hoje disponíveis, para em torno do blog, que jamais deverá ser posto em causa, se oferecer todo o acervo já existente de uma forma ágil, enquanto se usasse uma rede social para troca de informações rápidas e casuais e um espaço de debate num fórum, mantendo o blog como interface desta rede e onde se fossem publicando os artigos habituais.Falar é fácil, eu sei, mas foi assim que nasceu o blog, porque não usar o mesmo método? Ir caminhando e inventando o caminho.


Um abraço.


Manuel Bastos
 

2. Rui Silva (16/112011):


Votei e sem vacilar em "muito melhor", e porquê ?  Porque acho que está cada vez melhor:_ mais camaradas aderentes, mas abrangente, e até mais espalhado no mundo.

Até acho que algumas discrepâncias têm lugar, porque isto não deve ser "amen e sim senhor". E, caramba, nós até somos dessa casta: Amigos mas irreverentes.


Eu sou daqueles que foi educado [num época] em que as ações ficam com quem as pratica.

O Blogue está como o vinho do porto: Quanto mais velho (mais velhos) melhor (melhores).


Aproveito para enviar um grande abraço ao Luís, ao Vinhal, ao Magalhães Ribeiro e a outros co-editores e colaboradores. Que grande família eu arranjei depois de "velho"! Ponho velho entre aspas porque, se o BI aponta para aí, ainda nos sentimos novos olhando ao que estamos a dar e ao ainda para dar.

Bem hajam e Viva o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.



3. José Nunes (16/11/2011)

(...)  Camaradas,  a descoberta do blogue foi para mim um tónico, durante muitos anos nunca falei de Guiné nem queria saber de nada acerca do tempo de serviço militar, era algo que não me satisfazia recordar.


Sabendo que fiz 12 meses de assistência ao mato e o resto 12 meses em Bissau, até tive uma Comissão muito boa, por onde andei sempre fui bem tratado pelos camaradas operacionais, posso dizer que tive comissão tranquila, trabalhei muito em Bissau,  ganhei muito dinheiro que me permitiu alguns devaneios, com fazer as refeições nos restaurantes, quarto particular em Bissau, e amealhar algum para regressar de avião derivado ao embarque estar previsto para 2 meses depois de terminar a comissão. Portanto fui um privilegiado.


O blogue foi um ponto de viragem da minha maneira de estar e sentir a Guiné, e verifiquei a forma carinhosa e de sã Camaradagem que tive o privilégio de assistir no 10 de Junho, sendo que o blogue me liga a todos Vós, diariamente aqui venho às vezes mais de uma vez sempre na ânsia de encontrar mais um escrito.


Sendo eu o único representante da Engenharia, tive sempre alguma relutância em apresentar-me... Em boa hora o fiz, pois aqui encontrei uma sombra frondosa e amizade que sei sincera.


Hoje sou um propagandista deste Blogue faço saber da sua existência e instigo os Camaradas a fazerem uma visita.


Hoje que somos um Batalhão, decerto não deixaremos ficar mal o nosso Comandante e demais Oficiais do Comando.


Para todos vós o meu sincero agradecimento pelo trabalho que vos dignifica, e a nós enche de orgulho de estar nesta Tabanca.

José Silvério Correia Nunes
1ªCabo Mec Elect Centrais
 447 Brá 68/70


4. Armando Fonseca (15/11/2011):


(...) Estou inteiramente de acordo com os comentários do camarigo Manuel Marinho. Eu próprio não enviei o resto da minha história por me parecer que estaria fora de contexto visto que o que tem aparecido ultimamente - e visito o blogue totos os dias - são textos escritos por intelectuais da escrita e não as simples descrições das situações vividas na guerra. Com um  abraço  (...)


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Nota do editor

Último poste da série > 14 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9042: O nosso blogue em números (16): A propósito dos 3 milhões de visitas... Nem só mel nem só castanha amarga (J. L. Mendes Gomes) / Fotos de Catió, 1967, de Benito Neves

Guiné 63/74 - P9054: In memoriam (96): Dia 17 de Novembro de 1967, data tão distante, ainda hoje lembrada (Felismina Costa)

Mensagem da nossa tertuliana Felismina Costa*:

Caro Editor e Amigo Carlos Vinhal
Acometida pela nostalgia, escrevi as palavras que lhe envio, que sem pretenderem ser uma homenagem são acima de tudo, a minha saudade dum passado, que pese embora difícil e pobre, foi muito rico de valores e que gostaria de ver perpetuados por todas as gerações vindouras.

Sei, que sai do âmbito do blogue, mas, se aí permaneço e a minha vivência não foi a da guerra, que vivi à distância, apenas posso falar do que vivi, que também já é História, uma história feliz, na pacatez da minha condição, mas rica, muito rica no que confere aos valores que me fizeram crescer agradecida à vida, por tudo o que me deu em criança.

Um abraço fraterno
Felismina Costa


É Outono!

Por que razão me terei lembrado hoje, de um dia tão distante?
Era 17 de Novembro de 1967.

O dia, muito nublado, já bastante frio, pedia a sementeira de favas e ervilhas e o avô Carlos, à rabiça do arado lavrava a terra, onde a mãe ia deixando cair as favas secas e depois as ervilhas.

A mãe, fazia anos nesse dia, dia sem festa, sem bolos, sem convidados. Fazia anos e pronto. Nós dávamos-lhes os parabéns e a vida continuava sem alterações. A mesma roupa para trabalhar a terra, para nesse dia semear as favas e as ervilhas e fazer um sem numero de trabalhos, como todos os dias. A refeição, também não sofria alterações, aliás, a mãe não ligava muito à cozinha, porque lhe roubava muito tempo ao trabalho, que urgia fazer. O pai, muitas vezes, é que nos brindava com os seus acepipes, sempre caprichados, sempre carinhosos. A mãe acarinhava-nos constantemente, mas, não havia tempo para parar junto ao fogão, enquanto lá fora havia tanta coisa à espera dela. As favas e as ervilhas nasciam e tinham de ser cavadas, mondadas, a seguir o trigo, e todo o ano o trabalho na quinta era um sem cessar de urgências; couves, pimentos, tomates, cebolas, feijão verde, milho, feijão e outras leguminosas, exigiam tratamento e rega, para que os seus curtos braços eram pequenos. Nos grandes dias de verão, lavava-se no tanque a roupa, à hora do calor e, era ainda nessas horas que se limpava e arrumava a casa, para depois, pela frescura da tarde, voltar novamente ao labor infindável do trabalho agrícola. A seu lado escutava atenta, as suas conversas intencionalmente formativas, num desejo manifesto de criar em nós uma consciência o mais possível, de acordo com o seu carácter bem formado.

A noite, sem portas, como ela dizia, permitia que se fizesse serão até às duas da manhã, costurando e engomando a roupa, que os filhos levariam para a escola no dia seguinte. Caía, depois, exausta sobre o leito, e durante quatro ou cinco horas descansava, para novamente se erguer e de novo recomeçar a sua rotina, que diga-se, a bem da verdade, a encantava. A terra para ela era uma mãe abençoada. Eu via nos seus olhos a alegria de ver a semente transformar-se em flor e fruto, em pão. A enxada era uma ferramenta que manuseava com destreza. Plantar, arranjar, num brio perfeccionista, era seu apanágio.

Metro e meio de altura de capacidades infindáveis, de sentimentos, de dádiva.
Foi assim até 27 de Julho de 1981, data em que nos deixou sós, tristes e saudosos, recordando para sempre a sua actividade, as suas palavras, os seus sentimentos, o seu carinho, tão grande como o seu coração, que não lhe cabia no peito e por isso a levou para outra dimensão, para outras paragens, desconhecidas para os que por cá continuamos.

Descobri então, porque recordo aquele dia tão distante de 17 de Novembro de 1967!
Eu era jovem e tinha uma mãe jovem, tão jovem e tão madura, tão belamente formada, no trabalho, no conhecimento das gentes, no respeito e na coragem para enfrentar dificuldades, que nos transmitia toda a confiança no mundo, desde que nos dispuséssemos a trabalhar como ela.

A cultura encantava-a, e, muito à frente do seu tempo, ela interessava-se por tudo, em todas as áreas. Desde a literatura à ciência, ela demonstrava o seu interesse profundo, com uma avidez de conhecimento extraordinária, que alimentava mentalmente, ao mesmo tempo que desenvolvia o seu trabalho no sector primário.

E, tenho saudades, muitas saudades, da sua voz, da sua coragem, do seu exemplo, do seu carinho e por conseguinte, da minha infância e Juventude.

Faria agora 87 anos, mas há já 30 anos que a não vejo!


“Saudade”

Há sempre no fundo do meu ser
Uma saudade do passado!
Saudade de uma voz.
De um corpo querido
Que há muito partiu
e nos deixou sós!
Uma voz estridente!
Bem timbrada!
Inteligente!
Forte!
Calma!
Uma voz que me enche a alma
e me acalma…
A voz da minha mãe!..

Felismina Costa
Agualva, 26 de Março de 2006
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 2 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8847: Notas de leitura (280): As Mulheres nas Malhas da Guerra Colonial, de Ana Bela Vinagre (Felismina Costa)

Vd. último poste da série de 12 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9031: In Memoriam (95): Zé Santos, da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, capturado e assassinado pelo PAIGC (Manuel Maia)

Gravura retirada de http://prenoviciadosdb.blogspot.com/, com a devida vénia

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9053: Blogpoesia (169): Sopa quente, depois de três noites de relento (Manuel Maia)

1. Em mensagem do dia 13 de Novembro de 2011, o nosso camarada Manuel Maia (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74), enviou-nos este poema intitulado Sopa quente.


SOPA QUENTE

Três noites de relento e me marimbo,
p`ras frias madrugadas de cacimbo,
que a aragem "curte" o corpo e até conserva...
Estou farto é de enlatados, de rações,
três dias sempre as mesmas refeições,
sardinha, atum, dobrada, que já enerva...

A sede é implacável, marca pontos,
desfalecidos, quase, e sempre prontos,
p`ra mais um gole d`água que não há...
No charco vislumbrado por alguém,
cantil é atestado, vejam bem,
com líquido amarelo, cor de chá...

Pastilhas despejadas modificam
o visual nojento e "pacificam"
as consciências pela ingestão...
Brutal desinteria acometeu,
o cabo Pinto que desfaleceu
levando a antecipar regresso então...

Chegados ao quartel, nem sopa quente,
iria ser servida àquela gente,
para um "lavar de tripas", de conforto...
De pronto me insurgi p`la afirmação
de estarmos abonados de ração,
ouviu-me o vaguemestre a "falar torto"...

Casqueiro com fiambre e sopa quente,
decide o capitão, que num repente,
firmeza quis mostrar na decisão...
Cem anos qu`inda dure, não olvido,
o ar do velho Ginja, algo aturdido,
p`la força que emprestei p`ràquela acção...

Manuel Maia
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9031: Blopoesia (168): Chamava-se Zé Santos (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P9052: Tabanca Grande (306): José Santos, ex-1º Cabo Enf, CCAÇ 3326 (Mampatá e Quinhamel, Jan 71/Jan 73)

Guiné > Região de Tombali > Mampatá (?) > CCAÇ 3326 (1971/73) > Ex-1º Cabo Enf José Santos

Foto: © José Santos (2011). Todos os direitos reservados


1. Mensagem, de 14 do corrente, do novo membro da Tabanca Grande, José Santos, que mora em Algés, Oeiras:

Caro amigo Luís Graça, fui 1.º Cabo Enfermeiro da Companhia de Caçadores 3326, de Janeiro de 1971 a Janeiro de 1973 em Mampatá (Aldeia Formosa) e Quinhamel.

Tenho lido algumas descrições da tabanca, e em uma delas fui encontrar o meu colega Brum, rapaz do meu pelotão e que se encontra no Canadá, e a carta foi escrita pela sua filha.

Caro Luís, tenho dois episódios muito significativos para mim, que me ficarão para sempre na minha memória, e são para serem publicados na tabanca caso entendas ok.

O primeiro aconteceu em Mampatá, certo dia estando de serviço à enfermaria cerca das 3 horas da madrugada, foi solicitada a minha presença numa tabanca a fim de dar assistência a uma africana. Quando cheguei encontrei um panorama tremendo, a mulher deu à luz um casal de gémeos que ainda respiravam, e com o estetoscópio verifiquei seus batimentos cardíacos, mas as crianças acabariam por falecer cerca de uma hora depois. A mulher encontrava-se deitada em cima de uma esteira com todo o aparato inerente a uma gravidez.

A mulher teria 7 meses de gestação, mas abortou derivado a ter levado uma tareia do marido. Cuidei dela aplicando-lhe uma injecção de buscopan para as dores, uns comprimidos,  e ajudei a limpá-la pois ainda continha impurezas.

Dias depois de já se encontrar restabelecida, foi ter comigo à enfermaria levar-me uma galinha de mato pelo reconhecimento da forma como a tratei.

O segundo  episódio passou-se em Quinhamel, também uma rapariga apresentava a canela com um buracão, carne esponjosa, ulceração, com as moscas era horrível, levei cerca de 7 a 8 semanas a tratá-la mas ficaria curada.

A seguir a isto tudo, surgiu na enfermaria com uma galinha de mato e uma dúzia de ovos, pela ajuda prestada.

Estes dois casos deixaram em mim imenso orgulho, tanto pessoal como profissional na área da saúde e não só, aliás fui durante 40 anos técnico de farmácia, e um dos meus patrões era enfermeiro diplomado da Cruz Vermelha como seu filho e nora, e aprendi muito com estas pessoas.

Estando em Mampatá fui sempre eu que acompanhava os doentes ao Hospital de Bissau, o capitão não confiava essa missão ao furriel, e assim viajei muito entre a Aldeia Formosa e Bissau.

Amigo Luís Graça,  já nos conhecemos na livraria em Oeiras, e agora vou-te comunicar o seguinte: etou com ideias de ir exercer voluntariado para o Hospital de Cumura, fui convidado por um padre médico que exerce lá esse serviço, já falei pessoalmente com ele, de momento encontra-se cá em Lisboa a fim de recolher medicamentos e material necessário, porque a falta destes é evidente.

Para mim a nível sentimental e profissional é uma enorme alegria, e caso concretize tal acto será sem duvidas poder pôr ao serviço da saúde todos os meus conhecimentos adquiridos, e ajudar e contribuir para as melhoras desta gente tão desprotegida.

Os meus contactos são (...).
 
 Um abraço

Santos

2. Comentário de L.G.:

Deixa-me, camarada José Santos, dar-te as boas vindas em nome de todos os membros da Tabanca Grande que, com a tua entrada, passam a perfazer um total de 526.  Já nos encontrámos, de facto,  na Livraria-Galeria Municipal Verney, em Oeiras, há uns meses atrás. Esse primeiro encontro deu para nos apresentarmo-nos. Depois disso já temos falado (e continuaremos a falar) ao telefone.

Ficas formalmente apresentado aos amigos e camaradas da Guiné que fazem parte deste blogue. Conheces as nossas regras de convívio [, que consta da coluna do lado esquerdo do blogue,] e comprometes-te a colaborar connosco sempre que achares oportuno e necessário.

Para já ficam aqui as tuas primeiras fotos e histórias. Mais tarde falar-nos-á com mais detalhe da tua CCAÇ 3326, e dos sítios por onde andaste. Julgo que és o primeiro da tua companhia a figurar na nossa Tabanca Grande. Se não erro, só tenho uma ou duas referências à CCAÇ 3326.

Aproveito para acrescentar algo sobre esta subunidade (que, tanto quanto sei, era independente):

(i) Foi mobilizada pelo BII 17 (Angra do Heroísmo);
(ii) Partiu para o TO da Guiné em 21/1/1971 e regressou quse 24 meses depois, a 7/1/1973;
(iii) Esteve em Mampatá e Quinhamel;
(iv) Comandante: Cap Mil Art José Carlos de Paula Carvalho.

Seguiu para a Guiné, no mesmo navio, com a CCAÇ 3325 (Guileje e Nhacra), a CCAÇ 3327 (Brá, Bachile, Bassarel, Tite, Bissau), e ainda a CCAÇ 3328 (Bula, Ponta Augusto Barros e Bula). A CCAÇ 3325 era madeirense (BII 19, Funchal), e as restantes, açorianas (BII 17, Angra do Heroísmo). 

Guiné 63/74 – P9051: Memórias de Gabú (José Saúde) (14): Festa no quarto e uma equipa de “craques”

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.


FESTA NO QUARTO E UMA EQUIPA DE “CRAQUES”

MOMENTOS DE LAZER E DESPORTO

Das minhas “Memórias de Gabú” ficaram momentos inesquecíveis que marcam ainda hoje pedaços de uma vida que conheceu ápices bons e maus. Por inteira justiça trago, com a devida vénia, à estampa instantes vividos quando malta se divertia e se entretinha a jogar à bola. A guerra passava então de lado!

E a verdade é que esses episódios inolvidáveis enriquecem no presente a minha suculenta montra dos “troféus” conquistados. Com o peso da idade (já sou sexagenário) recorro amiúde ao meu sentimento nostálgico e ele, muito grato, remete-me para pausas que me levam a cruzar épocas e escrever pequenos apontamentos sobre a guerrilha na Guiné.

Era domingo! No quarto impregnado de fotos - mulheres semi-nuas, equipas de futebol, motos de alta cilindrada, carros de corrida (fórmula 1) entre outros motivos atraentes – a rapaziada divertia-se. O som ambiente emitido pelo Sanyo (ronco comprado numa loja de monhés em Gabú) enternecia as nossas almas.

Corpos elegantes, nada trespassados por inusitados pingos de celulite, dançavam de acordo com a solenidade da música. Os meus companheiros, entusiasmados com o evoluir da dança, tentavam seguir os meus acelerados passos de bailado. Tudo batia certo!

A dada altura, um outro rádio, em onda média, que nos trazia da Metrópole o relato entre o FC Porto e o Vitória de Setúbal dava-nos em directo a notícia infeliz da morte do Pavão, médio azul e branco, em pleno terreno de jogo.

Nós que lidávamos permanentemente com o imprevisto concluímos que o eco do eterno adeus ocorre em qualquer parte do Mundo, não obstante o lugar mais recôndito onde por ventura nos encontremos.

Fluxos de prazer ocasionais que se misturavam com momentos de dor! Talvez que naquele preciso momento algures em território guineense alguém chorasse, também, a morte de um companheiro que acabara de tombar em combate no palanque da guerra.

À parte dessa inequívoca realidade o pessoal curtia momentos do jogo da bola. O futebol era uma bênção que nos preenchia em finais de tarde de calor intenso. Um campo, duas balizas, as equipas constituídas (cinco para cada lado) e toca a jogar.

Aliás, o futebol foi sempre o meu grande sonho desportivo. Os craques mostravam qualidades quanto baste para realizar aqueles “grandes derby´s” que entretanto se protelavam no tempo, levando, contudo, a raríssima assistência ao rubro. Eram giros os instantes da entrega da malta ao jogo!

De pé: Santos, Dias, “Maia” e Fonseca. De cócoras: eu e o Rui

O “Charles Bronson” (como amiúde lhe chamávamos face às suas parecenças com o ilustre actor cinematográfico de Hollywood) e o Rui, parecem atentos aos meus geniais passos de dança.

Um abraço a todos os camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

 7 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 – P9010: Memórias de Gabú (José Saúde) (13): Bafatá, cidade acolhedora

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9050: (Ex)citações (157): A relação comandante operacional/subordinado nas companhias de quadrícula (José Manuel Dinis)

1. Comentário de José Manuel Dinis ao Poste P9041 (*)

Viva o Chico e o restante tabancal!

O Chico tem mostrado de diferentes pontos de vista, o seu interesse e sagacidade, relativamente aos militares portugueses envolvidos na guerra que a todos condicionou. Vem agora lançar um desafio: o de avaliarmos sob o aspecto da humanidade a relação dos capitães com as companhias em quadrícula.

Designou-se, de quadrícula, a malha de aquartelamentos que deviam garantir a segurança nos territórios em luta. Tornava-se mais ou menos densa, conforme os índices de população, a preservação de meios de comunicação, e a intensidade da luta. Não havia um critério rígido.

Já sobre as relações dos capitães com os seus subordinados, pode dizer-se muita coisa, porque tratando-se de comunidades relativamente autónomas,que podiam extravasar do âmbito de relações de um chefe de um serviço com os seus subordinados, a ligação dos capitães aos comandados pode ou deve ser apreciada de muitos pontos de vista, que resumo a: níveis de equilíbrios psiquícos, níveis de segurança e de relações internas, níveis de organização administrativa, níveis de relacionamento com as esferas militares de que dependia.

Dentro de cada nível poderemos considerar outros itens de avaliação, que no conjunto nos permitirão aferir sobre a real capacidade de intervenção do comandante para o bom desempenho da companhia.

Do meu ponto de vista, e já o tenho comentado, houve grandes falhas na organização piramidal que, pontualmente, estimularam o alheamento dos interesses colectivos, e permitiram o desenvolvimento de acções egoístas e de afastamento ao interesse maior, em última análise, o interesse público, neste caso, uma relação do interesse nacional com o dos militares que serviam nas companhias.

Como nota final: o papel de cada capitão era de muito mais variada e premente responsabilidade, do que o da maioria dos oficiais superiores, que no remanso dos gabinetes lidavam como especialistas, sem as urgências e as necessidades que em cada dia se faziam sentir nas companhias. Deste ponto de vista, acho que os capitães não foram devidamente acompanhados, por isso distinguiram-se positiva, ou negativamente, conforme as suas formações pessoais de carácter, conjugadas com a experiência e capacidade de adaptação ao meio. (**)

Abraços fraternos
JD
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Notas do editor:


(...) Entre nós há um provérbio que diz que os mais velhos são como as lixeiras, sítios/espaços para (des)carregar as mazelas e...o lixo dos outros. Na língua Fula chamam-lhe "Donha" e em crioulo é “Muntudo”, ou seja a capacidade de sofrimento na humildade.
Estas observações me levam a uma tese (questionamento) que lanço à discussão de todos e em especial ao meu irmão de Contuboel, Luís Graça na qualidade de antigo combatente e sociólogo:
A forma (modelo de base) como as companhias (de quadrícula) eram formadas, estruturadas criava laços de união (ver cumplicidade) tão fortes que, por sua vez recriavam, no conjunto do pessoal, uma espécie de confiançaa/dependência exclusiva e quase paternal nos comandantes como única forma de alcançar reais sucessos no teatro de operações ou de, pelo menos, conseguir sair do inevitável sem grandes prejuízos. (...)

(**) Último poste da série > 15 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9046: (Ex)citações (156): A recensão a Pami Na Dondo foi feita não ao livro mas à pessoa do autor (Mário Fitas)