terça-feira, 30 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10597: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (19): A pobreza em chão manjaco


1. No Diário da Guiné, do António Graça de Abreu (AGA), há algumas referências à "pobreza" e à miséria" em que viviam as populações guineenses, nomeadamente  no chão manjaco... AGA tinha chegado à Guiné, há pouco tempo, tinha vivido em países ricos como a Alemanha... O contraste é duro, aos seus olhos, mesmo cotejando as duas pobrezas, a nossa e a deles...  Aqui se reproduz essa parte do Diário do AGA, com a devida vénia... (LG):


(...) Teixeira Pinto ou Canchungo, 27 de Junho de 1972

Fui dar uma volta pela terra e já ouvi uma enormidade de coisas sobre o lugar para onde me atiraram os acasos da sorte e da pouca fortuna.

Teixeira Pinto ou Canchungo é a quarta ou quinta maior povoação da Guiné, tem uma larga avenida central quase com um quilómetro e casas razoáveis estendendo-se para ambos os lados. Ao fundo situa-se a praça Dr. Oliveira Salazar. Isto é airoso e parece sossegado. À volta da avenida, para norte, ficam as tabancas ou moranças, centenas e centenas de casas pobres da população predominantemente de etnia manjaca, uma das muitas existentes neste território. Estamos no Chão Manjaco, a terra destes negros. Os miúdos pretos são uma ternura que dói. A carapinha, os olhos muito escuros, nus e sujos, as barrigas grandes, subalimentados, mas por dentro são iguais aos meninos loiros e morenos da nossa Europa. O mundo à sua volta é que os faz diferentes! (...).

(...) Canchungo, 5 de Julho de 1972 

Não é tempo de inventar coisa nenhuma, são horas de tudo descobrir.  Não posso falar, escrever sobre a guerra se não a conhecer, se não a viver até dilacerar o sentir, não posso falar deste povo, deste solo queimado se desconheço os negros e os brancos, a terra que pisamos.

Hoje, a primeira saída. Fui até ao Bachile, um aquartelamento uns quinze quilómetros a norte, na estrada para o Cacheu, junto às florestas que dão acesso ao Balanguerez e à Caboiana, zonas libertadas pelo PAIGC. Dois jipes, no da dianteira, um capitão e dois cabos armados, no meu, três homens desarmados. Fui à confiança, esta zona é controlada pelas nossas tropas, não há perigo. As populações da região, de etnia manjaca, parecem estar do nosso lado e os guerrilheiros vivem ainda longe, não atacam, não costumam atacar.

O que vi? Logo à saída de Canchungo, tabancas paupérrimas cobertas de colmo, negros indolentes, lixeiras, vacas esqueléticas, cabras, porcos passeando pela estrada. A savana africana, terras pobres para se cultivar o que quer que seja. O jipe do capitão atropelou um porco e seguiu em frente.  (...)

(...) Canchungo, 11 de Julho de 1972 

Faz amanhã um mês que estive de serviço como adjunto do oficial de dia no quartel do Depósito Geral de Adidos, na calçada da Ajuda, em Lisboa. Há quanto tempo isso foi! 

Precisava de comer um bom bacalhau ou um borrego assado, um cozido, um esplendoroso bife em qualquer parte do nosso Portugal mimoso. Parece que saí daí há três anos e ainda não tenho três semanas de Guiné.

Hoje dei comigo a pensar na grande Europa por onde já derramei algum suor durante um dos meus vinte e cinco anos de vida. Quero atravessar outra vez o velho continente, saltitar de país para país, falta-me conhecer Londres, Viena, Budapeste, Florença, Roma, sei lá, tanta coisa! Há-de acontecer. A esperança é uma menina com olhos de todas as cores.

De tarde, resolvi sair e dar uma grande volta a pé, sozinho pelas ruelas e tabancas de Canchungo, Guiné, África. Tanta pobreza! Só o que os alemães gastam para alimentar principescamente os seus cães de estimação - o que tanta admiração me causou quando dos dezanove para os vinte anos ancorei a minha vida em Hamburgo, no norte da Alemanha, - só esses marcos, moeda forte alemã, davam para alimentar milhões de crianças desta África pobre.

Mas isto não é assim tão simples. Os problemas do continente africano são muito complexos e é aqui que têm de ser resolvidos. Está quase tudo por fazer. Como passar de uma sociedade primitiva e agrária para estádios de desenvolvimento mais decentes? Há ventos que sopram quer do leste, quer do ocidente e ajudam quem? Essa ajuda é mesmo “ajuda”? Aqui na Guiné a agricultura é um desastre e funciona como a única fonte de subsistência e riqueza. Eles têm as bolanhas, os arrozais, mas são tão difíceis de cultivar! Hoje, nas tabancas vi os negros a comer. Fazem uma bola de arroz e metem-na na boca com a mão. Não têm facas nem garfos, fiquei impressionado. 


(...) Canchungo, 3 de Agosto de 1972 

Estou rico. No meu quarto tenho agora uma cadeira com encosto de lona, outra de pau e uma mesa quadrada sobre a qual escrevo. A Companhia 122 de pára-quedistas seguiu ontem para Bissau a fim de reforçar a segurança da capital nestes dias “tenebrosos” que se aproximam, com as comemorações do aniversário do PAIGC. Fui incumbido da difícil tarefa de guardar as chaves dos quartos dos alferes pára-quedistas, companheiros de degredo nas terras da Guiné. Vai daí, fui-lhes buscar duas cadeiras e uma mesa que tanto jeito fazem no meu quarto. Os páras regressam daqui a doze dias e então devolverei a mobília, ficarei de novo pobre.



Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > 1972 > Meninos (manjacos) a caminho da escola, em transporte militar.


Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados




Canchungo, 4 de Agosto de 1972 

Ontem a brincar com a minha pobreza, hoje a sentir a pobreza a sério, brutal, dilacerante. Como se já não bastasse a guerra!... 

É uma fatalidade nascer na Guiné, a terra é avara, o clima é mau, as populações também sofrem com o calor e as doenças.

Esta manhã Canchungo foi assolada por um pequeno tufão que passou sobre uma extremidade da vila e arrasou vinte tabancas, as casas de adobe e colmo das famílias negras. Meti-me no jipe e fui ver o que se podia fazer.

Um espectáculo impressionante. Os telhados das casas de palha ou de zinco voaram e despedaçaram-se, estilhaçados. Algumas tabancas ruíram completamente arrastando as pobres mobílias, os tarecos e as gentes. Felizmente não morreu ninguém, só três feridos graves que foram hoje evacuados para Bissau.

O que me arrepiou foi a atitude dos negros. Os homens tentavam salvar os restos dos haveres, as mulheres choravam, um choro feito de berros, de esponjar na lama, de gestos como eu nunca tinha visto. O corpo encarna a dor total, é o máximo da expressividade possível. Ao olhar para aquela miséria toda e para os negros transfigurados em desgraça, lembrei-me do que será a destruição de uma aldeia aqui perto, nesta mesma Guiné, pela guerra, pelo napalm, pelo fogo. São coisas que escapam à nossa compreensão. Só quem as vive pode entender.

Isto do tufão e miséria está mal escrito. É tudo muito pior do que as palavras possam dizer. Eu ainda sou “periquito” nesta guerra. Vi pouco, continuo a tentar entender. (...)


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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10025: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (18): A ponte Alferes Nunes, a CCAÇ 16, o Bachile, a 38ª CCmds, o Canchungo, o cor pára Rafael Durão, o futebol, a violência, a morte...

Guiné 63/74 - P10596: Memória dos lugares (194): Ilhavo, Costa Nova... a terra do meu amigo e irmão mais velho e, porque não ?, meu camarada, o arquitecto Zé António Paradela, que hoje celebra 3/4 de século de existência, antigo marinheiro da pesca do bacalhau, último representante de um povo que tem o mar no ADN!... (Luís Graça)


Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Ao centro, eu e o Zé António; e à nossa esquerda, a Alice Carneiro e a Matilde (esposa do Zé António); à nossa direita, o Jorge Picado e o Jorge Paradela, o caçula do casal Zé António & Matilde. A foto foi tirada pelo filho mais velho, o Marco, que anda na Escola Superior Náutica Infante D. Henrique.


Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > O nosso comum amigo, meu e do Zé António, e nossoo grã-tabanqueiro Jorge Picado, depois de termos trocado dois dedos de conversa... Outro amigo que encontrei nesse dia, foi o João Vizinho, outro ilhavense ilustre com casa na Costa Nova. Médico do trabalho, meu velho amigo e companheiro das lutas da saúde ocupacional. Também vi nesse dia, à tarde, lá para os lados da Bruxa, o José Manuel Bastos Cachim, que foi nosso camarada no BENG, no CTIG, em 1966/68.

O Jorge lá foi ter com a neta...da! Gostei de o ver, em boa forma!


Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Os  antigos palheiros (cabanas de madeira onde os pescadores tradicionalmente guardavam as redes e os demais apetrechos de pesca), agira transformados em restaurantes e bares... ou inspirando a arquitectura das casas de veraneio. Um regalo para a vista. Um postal turístico. Um verdadeiro ex-líbris desta famosa estância de veraneio que pertence ao concelho de Ílhavo, terra de marinheiros, pescadores, tripulantes da marinha mercante...


Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Uma das muitas belas janelas das casa de praia...


Vagos > Praia da Vagueira > Restaurante Caravela > Largo  Parracho Branco > 21 de agosto de 2012 > Pintura a óleo, de António Carlos. A arte da Xávega. 1998. Pormenor I.  Fomos lá comer uma bela caldeirada de enguias.


 Vagos > Praia da Vagueira > Restaurante Caravela > Largo  Parracho Branco > 21 de agosto de 2012 > Pintura a óleo, de António Carlos. A arte da Xávega. 1998. Pormenor II


Vagis > Praia da Vagueira > Restaurante Caravela > Largo  Parracho Branco > 21 de agosto de 2012 > Pintura a óleo, de António Carlos. A arte da Xávega. 1998. Pormenor III.  Fomos lá comer uma bela caldeirada de enguias.


Ilhavo > Gafanha da Encarnação Ria  de Aveiro > Largo da Bruxa > 21 de agosto de 2012  > Um barco moliceiro, com o seu belo perfil fenício,  agora modificado para o transporte turístico de passageiros... Ao fundo, a Costa Nova, vista do outro lado da ria...


Ilhavo > Galhanha da Encarnação > Ria  de Aveiro > 21 de agosto de 2012  > A praia da Barra vista da zona portuária


Ilhavo > Gadafanha da Encarnação > Ria  de Aveiro > Cais acostável, junto ao largo da Bruxa >  21 de agosto de 2012  > Jovem em posição acrobática de mergulho para a água... Ao fundo, a Costa Nova


Ilhavo > Gafanha da Encarnação >  Ria  de Aveiro > Largo da Bruxa > 21 de agosto de 2012 > A Bruxa, misto de tasca, café, bar, cervejaria e esplanada...


Ilhavo > Gafanha da Encarnação >  Ria  de Aveiro > Largo da Bruxa > 21 de agosto de 2012 > A Bruxa.... onde ao fim da tarde se vai beber uma bebida agradável, tipo sangria, feita de cerveja e vinho branco, acompanhada com os populares tremoços, azeitonas e amendoins... desfrutando a ria, as embarcações, o pôr do sol e dando dois dedos de amena conversa com os amigos... Gostamos de lá ir, o Zé António e eu mais as nossas caras metades (e os nossos filhos, quando nos podem e querem acompanhar).

Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados


1. No verão, em agosto, no nosso querido mês de agosto (que ninguém nos há-de roubar!),  eu gosto sempre, quando a caminho do norte, de passar pela Costa Nova e  gozar um dia  da minha existência na companhia da minha Alice e dos nossos amigos Zé António e Matilde Henriques, ele arquitecto, ilhavense, e ela, socióloga, lisboeta. Somos amigos, e velhos amigos, desde há mais de trinta anos. Eles moram habitualmente em Oeiras, Miraflores. Têm casa de verão na Costa Nova.

De seu nome completo José António Boia Paradela,  é também conhecido no Facebook onde tem uma página com o seu nome literário, Ábio de Láparo.. (Confesso que não sou muito "facebook...eiro", não acompanhando a sua página com a atenção que ele me merece; temos priviligeado, em contrapartida, o convívio, de prefreência à mesa...).

Na Costa Nova ele tem muitos amigos, alguns da infância e da adolescência como  o  Comandante Valdemar Aveiro, um dos últimos "lobos do mar" da Terra Nova, e notável memorialista dos tempos heróicos da pesca do bacalhau: dois dos seus livros já aqui foram objeto de recensão crítica no nosso blogue, há uns anos atrás......

O Zé António, como bom ilhavense, é, também ele, filho e neto de gente do mar, tendo passado, aos 16 anos, pela pesca do bacalhau, na Terra Nova... Foi verdadeiramente a sua tropa, a sua guerra da Guiné... Uma experiência, duríssima, de seis meses, que o marcou para sempre... Homem de múltiplos talentos, também ele acabou de escrever um livro - a pensar nos amigos -  a que deu o belíssimo título Uma Ilha no Nome: Crónica dos Dias Líquidos, e que eu tive a honra e o prazer de prefaciar.

O que o meu/nosso querido Zé António escreveu em 2007, ao quilómetro 70 da sua árdua, mas generosa e bem sucedida caminhada da vida, foi nem mais nem menos do que um belíssimo e comovente regresso ao passado, à sua infância, à sua ilha, à sua origem ilhavense… É também a redescoberta da sua/nossa insularidade e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de morte e de finitude por todos os lados....

Como eu escrevi no prefácio, não se pense, todavia, que é uma narrativa passadista ou pessimista... No final, Irineu - um dos personagens da narrativa e, seguramente, um alter ego do autor - (re)descobre o anátema da ilha… no nome, mas também (re)descobre que faz parte de um vasto arquipélago, e que um ilhéu, um ilhavense, mesmo quando deixa a sua ilha, em busca de mundo, de mais mundo,  nunca destrói as pontes, o cordão umbilical que o liga ao passado e ao futuro…

Passados cinco anos, o nosso Àbio [Boia]  de Lápara [Paradela], chegou muito naturalmente ao quilómetro 75 da sua autoestrada da vida..."Três quartos de século", comentou ele há dias, quando fomos ao encerramento do Doclisboa2012... Comentou ele, com uma ponta de orgulho, um outra de ternura, e uma terceira de desencanto... "Três quartos de século" é obra e vida, e  merecem ser comemorados, foi a minha resposta. Comemorar o nosso aniversário, todos os anos, "faz bem à saúde"... E eu sei que o Zé António gosta de se rodear da família e dos amigos nesse dia...

Estou, por isso,  seguro que ele vai gostar de ler estas palavrinhas que  hoje lhe escrevo, em dia de aniversário, e que vou publicar num sítio inesperado para ele e para os meus amigos e camaradas da Guiné. Mas este blogue não lhe é estranho, ele aparece aqui, mais do que um vez, não com um marcador próprio (a que não tem direito) mas através da referência "pesca de bacalhau"...

Ativo, como sempre, não tão superativo e produtivo como gostaria de continuar a ser   (,que a crise afeta e muito os gabinetes de arquitetura e planeamento, mas também a sua saúde aconselha já alguma moderação...), o Zé António, apesar de reformado (face à Segurança Social), continua a tocar o barco, o seu barco, e agora até a navegar por  mares nunca dantes navegados...

É homem de muitas paixões, para além da arquitectura e o planeamento urbanístico (de que foi um dos pioneiros entre nós),: o desenho, a música, a fotografia, a escrita, a multimédia.. Espero que ele tenha muita saúde e longa vida para poder mostrar os seus outros talentos, para além dos da esfera profissional.... Pessoalmente tenho-me deslumbrado e emocionado com as suas  criações em multimédia, algumas das quais já têm sido apresentados ao público, na Costa Nova...


Zé António:

Podia chamar-te, com justiça e propriedade, "meu amigo, meu irmão mais velho, meu camarada"... A ter um irmão, rapaz, que não tenho, podia ser alguém como tu, com quem a  gente aprende, com prazer, e convive, com naturalidade, por que és  uma pessoa culta, bem formada, com valores, vivida, afável, agradável, bem disposta, e não menos importante, humilde, que assume as suas origens, que é  amigo do seu amigo, alguém que  sabe também ouvir...

"Camarada" seria mais forçado: na realidade não fizeste a guerra (colonial), embora tenhas andado na "guerra dio bacalhau", servvindo outros senhores, lá pelos idos anos de 50 (1953?)... Algum camarada meu, militar, mais ortodoxo, poderia achar abusivo sentar-te aqui ao pé de mim, ao pé de nós, à sombra do mágico, secular e fraterno poilão da nossa Tabanca Grande.

Meu camarada é o Jorge Picado, mais eu sei que não vais ficar com ciúmes, meu amigo, meu irmão mais velho... De qualquer modo, tirando o Jorge Picado, quem é que dos ilhavenses foi parar à guerra colonial ? Claro, a malta da marinha de guerra, muitos dos teus amigos,  que  vocês só podiam ser duas ou três coisas na vida: pescadores, marinheiros, tripulantes da marinha mercante...

Não tenho aqui à mão o livro que me ofereceste, com uma bela dedicatória tua, e que está profusamente ilustrado, com sugestivas fotos do antigamente da vida da Costa Nova do Prado  (, imagem da capa acima)... Creio que o autor é o engº Senos Fonseca, cunhado ao que julgo do nosso Jorge Picado.  Com as inevitáveis limitações de tempo e de saber, quis apenas homenagear-te e associar-me à celebração dos teus bem vividos e bem merecidos  75 anos.

A Costa Nova, onde passo um dia por ano, é apenas um pretexto, e uma forma habilidosa de te pôr aqui na montra deste blogue que já não é meu... Por umas horas, que seja, tu mereces,  meu amigo, meu irmão mais velho, meu camarada de outras guerras... Mereces pelo que viveste, mereces pelo que ainda vais viver, mereceres pelo muito que tens dado a todos nós, da família aos amigos, dos clientes ao país...

Um xicoração apertado do Luís (+ Alice + Joana + João). Que tenhas um resto de dia feliz, com a tua Matilde e os teus "marinheiros" Marco e Jorge... Haveremos depois de beber um copo... à saúde, à  vida, à felicidade, à amizade, á fraternidade!... E para que nenhum  f.. da p... tenha um dia a lata ou a ousadia de troikar as nossas amizades, cumplicidades, memórias e afetos.

PS - Tomo a liberdade de reproduzir aqui o prefácio que escrevi, com muita ternura, para o teu livrinho, há cinco anos atrás.

2. Prefácio ao livro de Ábio de Lápara, Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos Dias Líquidos. Lisboa: edição de autor, 2007, 77 pp. (Impressão: Critério - Impressão Gráfica Lda). Ábio de Lápara é o o pseudónimo literário de José António Boia Paradela, natural de Ilhavo, onde nasceu em 1937. Arquiteto, é o sócio-gerente da empresa PAL - Planeamento e Arquitectura Lda.

É num cenário pré-apocalíptico, mas perfeitamente verosímil, de destruição da orla costeira devida à progressiva subida das águas do mar, que se desenrola este conto – ou quiçá novela - , sob o título Uma Ilha no Nome… Prefiro simplesmente chamar-lhe narrativa.

Pela temática que lhe está subjacente – a morte, o mal escatológico, o pecado, a condenação – faz-me lembrar romances como A Peste, de Alberto Camus, ou o Ensaio da Cegueira, de José Saramago. Tem também ressonâncias da tragédia grega e, no mínimo, poderia dar uma belíssima peça do teatro português.

A originalidade (e o talento) do autor (ou não fosse ele arquitecto, de formação e profissão) consistiu em ultrapassar a questão do género ou ter criado um género novo, ao incorporar na sua narrativa o coro dos que se expressam através da palavra muda dos pichadores e grafiteiros das nossas cidades...

Eles funcionam, de algum modo, como o coro da tragédia grega, invectivando os deuses, causticando o poder, contestando a (des)ordem estabelecida… No palimpsesto, mil vezes escrito e reescrito, o narrador vais buscar pérolas e pérolas de sabedoria, que vão pontuando e secundando o discurso dos penitentes, reunidos na Assembleia Final do Tempo:
- A saudade, mano… a nossa última riqueza! Porque a lembrança é a fonte de onde parte toda a riqueza….
- We are born to loose everything, everytime and nothing at all.
- Não faças sempre a mesma pergunta. Apenas luta por uma resposta diferente.
- Mudei a passagem para ir para a outra margem, esperando que o futuro não seja uma miragem…

O que o nosso querido Zé António escreveu, ao quilómetro 70 da sua árdua, mas generosa e bem sucedida caminhada da vida, foi nem mais nem menos do que um belíssima e comovente regresso ao passado, à sua infância, à sua ilha, à sua origem ilhavense… É também a redescoberta da sua/nossa insularidade e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de morte e de finitude por todos os lados…

Além do narrador, há um alter ego – Irineu – ou mais do que um – seguramente, o Ábio – e uma plêiade de personagens que ainda têm ou tiveram carne e osso:

O Avô Materno de Ábio, mais conhecido como O Valente, sepultado na Praia da Tijuca; o Pai de Ábio, marinheiro com 12 anos; a Avó materna, a mãe Rosa… Sem dúvida, o núcleo da sua intimidade, do seu doce lar… Como o pai, sempre ausente e sempre presente, gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Mas há também outros homens e outras mulheres ilhavenses, recriados pelo autor, que fazem parte desta galeria de memórias: O Mestre Zé, marinheiro; o Manuel da América; o Sacerdote Manuel, cego; o Sant’Ana, merceeiro e chefe dos escuteiros; o Ismael, o poeta, amigo dos gatos, funileiro, contador de estórias; o João Bocanegra, mais conhecido entre o povo como o Trampolineiro, homem de muitas falas e poucos saberes; a Rosa Cravo, a oficiante do Templo de Vénus; a Joana Paciência, vendedeira de peixe, matriarca, mãe de muitos filhos espalhado pelo mundo….

Criado no matriarcado, cercado de mulheres e das suas recordações, Ábio faz, o entanto, da figura do pai a mais bela evocação da narrativa:

- Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde…

Narrativa, é o termo mais exacto: é uma tocante narrativa que se lê de um ápice e por onde perpassa a memória de um povo, de um colectivo: povo das matas costeiras, gentes da areia, povo das águas, homens do bote, pescadores e marinheiros da Terra Novo… Mas também a memória dos lugares da infância: o Vale Central, a Gândara, o Vale das Padeiras, a Laguna, o Mar, sempre o Mar, atraindo e repelindo as gentes tal como Pátio dos Ressoeiros atraía e repelia os adolescentes…

Não se pense que é uma narrativa passadista ou pessimista… No final, Irineu (re)descobre o anátema da ilha… no nome, mas também (re)descobre que faz parte de um vasto arquipélago , e que um ilhéu, mesmo quando deixa a ilha, nunca destrói as pontes, o cordão umbilical que o liga ao passado e ao futuro…

Zé António, ao quilómetro 70, já não precisavas de provar nada, nem muito menos de fazer jus à ironia queirosiana do Zé Fernandes em relação ao seu príncipe, o Jacinto de A Cidade e as Serras (“Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem”…). Os teus amigos já conheciam e apreciavam o teu talento criativo, mas agora tramaste-os, deixando-os com água no bico, à espera da próxima surpresa…

Fica, desde já, marcada na agenda uma próxima paragem ao quilómetro 71. E até lá os meus duplos parabéns, ao jovem escritor e ao veterano corredor de fundo! Escusado será dizer, para mim e para todos nós, quanto é grande o privilégio de te ter como amigo!


[Fonte: Luís Graça > Blogpoesia > 23 de novembro de 2007 >  (Pré-)Textos (1) - Crónica dos dias líquidos]

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Nota do editor:

Último poste da série > 27 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10580: Memória dos lugares (193): O inferno de São Domingos, em março de 1972, ao tempo da CCAV 3365 / BCAV 3846, Os Quixotes (Bernardino Parreira / Plácido Teixeira)

Guiné 63/74 - P10595: Agenda cultural (227): Lançamento do livro "Goa - O Preço da Identidade - Invasão 50 Anos Depois", de autoria do Prof. Doutor Valentino Viegas, dia 16 de Novembro de 2012, pelas 18h30 na Casa de Goa, em Lisboa (Maria Teresa Almeida)

1. Mensagem da nossa amiga Maria Teresa Almeida, da Liga dos Combatentes, com data de 29 de Outubro de 2012, com pedido de publicação do convite para a apresentação do livro "GOA - O Preço da Identidade - Invasão 50 Anos Depois", de autoria do Prof. Doutor Valentino Viegas:

Bom Dia Querido Combatente Sr. Carlos Vinhal
Espero que se encontre bem.
É mais um livro, que peço o favor de divulgar no Blog, um Livro de muito interesse, relativo à Invasão da Índia.

Junto envio o convite do Livro "GOA O PREÇO DA IDENTIDADE – INVASÃO 50 ANOS DEPOIS".

O Autor, é natural de Goa, é Combatente do Ultramar, em Angola, e condecorado com uma Cruz de Guerra.

Grata por mais este favor, envio o meu abraço, de imensa gratidão e estima
Maria Teresa Almeida


C O N V I T E

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10581: Agenda cultural (226): A banda musical portuguesa Melech Mechaya no 20º Festival Sete Sóis Sete Luas: seis concertos em quatro ilhas de Cabo Verde, 6-11 de novembro de 2012 (João Graça)

Guiné 63/74 - P10594: Do Ninho D'Águia até África (22): Uma história de amor em pleno conflito (Tony Borié)

1. Vigésimo segundo episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (22)

Uma história de Amor, em pleno conflito

Já era a segunda vez que desembarcava na província com um camuflado novo. Sabia quase todos os pormenores, falava algumas palavras em “crioulo”, embora não exercesse uma conversação prolongada, sabia que não havia alojamento para todos os militares, que no princípio iriam ter muitas dificuldades, alguns iriam chorar, outros iriam revoltar-se, mas depois tudo se arranjaria, e até, iriam gostar da província. Era isto que esta personagem, baptizado com o nome de “Gascidla”, dizia.

Era oriundo do Alentejo, mais propriamente de uma aldeia próximo de Borba, tinha cumprido uma primeira comissão de serviço militar na província da Guiné, dizia que era cifra, depois com as modernices, chamavam-lhe operador cripto, esteve estacionado no arquipélago dos Bijagós, onde só havia paz e bom clima, não tinha nada a dizer da comida, falava com as raparigas e passava quase todo o tempo a bronzear-se nas praias quase desertas, e dizia:
- Eu tinha uma ilha e uma praia para onde só os locais iam, portanto não havia estranhos, e para onde levava as minhas namoradas.

Acabou a sua comissão de serviço e regressou à Metrópole, como então se dizia. Regressa à sua aldeia, não quis mais pegar em qualquer alfaia agrícola, andava por ali, fazia uns biscates que não envolvessem muito esforço físico, era cliente assíduo do café da aldeia, onde numa pequena esplanada, que havia em frente, se sentava numa cadeira, debaixo de um enorme guarda sol, com reclame a determinado refrigerante, cigarro na boca, a chávena do café, um copo com água, o maço de cigarros e o isqueiro em cima da mesa, cruzava a perna, às vezes em posição provocativa, principalmente para pessoas do sexo feminino, e ele sabia isso, e olhava as pessoas que passavam.

Já lá ia algum tempo e, vendo a cor bronzeada do seu corpo a desaparecer, com algum desespero, começa a procurar emprego. Na lavoura havia muito trabalho, mas o “Gascidla” dizia:
- Eu sei conduzir, embora não tenha carta de condução, sei ler e escrever, não vou pegar numa enxada como antes, agora quero um trabalho limpo, que me dê algum dinheiro.

Por fim arranja emprego na distribuição de garrafas de gás “Gascidla”, que na época estava muito em voga, num agente que havia na vila. Nunca ninguém chegou a saber, pois ele falava, mas nunca dizia a verdade, qual o motivo que o levou a ir ao quartel general de Évora e meter requerimento para regressar ao seu paraíso que era o arquipélago dos Bijagós, onde tinha passado dois anos de felicidade. Alguns que eram oriundos da área da sua aldeia diziam que foi motivado pelo contacto com algumas clientes, que eram casadas, e não resistiam à cor do seu bronzeado e que alguns maridos ciumentos, principalmente ciganos, estavam prontos a matá-lo, com uma navalha, entre outras coisas. Mas continuando com a história, o “Gascidla”, pois era assim que ficou baptizado, apresenta-se um dia na unidade militar onde se estava a formar o comando de que o Cifra fazia parte, para juntos irem para a então província do ultramar, e muito contente diz:
- Finalmente vou regressar ao lugar de onde nunca devia de ter saído!

O Cifra, muito admirado, diz-lhe:
- Mas a guerra está lá à nossa espera, pois existe um grande conflito, há um movimento organizado e armado que quer a independência!

E ele respondia, com ar de quem sabe o que diz:
- Isso é encostado à fronteira, mas para onde nós vamos, e onde eu meti requerimento para ir, é um paraíso, tu vais ver!

Desembarcados na província, passou por todas as agruras que o Cifra passou. A princípio dizia que já sabia que era assim, mas passado uns meses, maldizia a sua sorte e afirmava que tinha sido enganado. Tinha dificuldade em comer, não executava o seu trabalho com eficiência, pois trocava as palavras ao decifrar uma mensagem e dizia que não tinha sido treinado para este trabalho, que antigamente a cifra era mais simples. Também dizia que lhe prometeram uma promoção na altura em que se alistou de novo no exército, mas continuava primeiro cabo sendo mais velho do que alguns sargentos e furriéis. Quando ia para a aldeia, que existia próximo do aquartelamento, procurava falar o seu crioulo, mas como era uma zona de etnia “Balanta”, as raparigas não o compreendiam, andava revoltado.

O “Gascidla” fumava muito, comia pouco, só gostava de feijão e grão de bico e os colegas sabendo isso, sempre lhe enchiam o prato, quando a ementa era “rancho”, bebia alguma água, não gostava de vinho, às vezes bebia uma cerveja, mas café negro, era a sua bebida preferida. Pedia ao Cifra para lhe decifrar as suas mensagens, pois era o Cifra que entrava de serviço a seguir a ele e tinha sempre umas tantas mensagens já antigas para decifrar, que depois entravam no comando com um substancial atraso, o que levava o comando a questionar, caindo as culpas no “Gascidla”, pois havia uma folha de entregas, com a hora do seu recebimento, ele não se importava e respondia:
- Promovam-me, como me prometeram e mandem-me embora daqui.

O comando, fazia “vista grossa”, pois o trabalho, embora atrasado, continuava, até que passado mais ou menos um ano, o “Gascidla”, pede um mês de férias para ir gozar no arquipélago dos Bijagós.

Aí possivelmente, encontrou uma das suas antigas namoradas, convive com ela e no final das férias decide trazê-la para a vila onde estava estacionado. Aluga um quarto na casa de uma família Libanesa, onde a namorada fica instalada. A rapariga, que era bastante bonita, de etnia “Bijagó”, tinha marcas na pele do corpo, da tribo a que pertencia, com que os pais a marcaram à nascença, diversos colares no pescoço, que com os anos lhe fizeram prolongar esse mesmo pescoço, a sua roupa era primitiva, andava descalça, com algumas argolas na parte inferior das pernas, portanto não era bem vista em território “Balanta”, e como não falava português, era muito difícil de se fazer compreender, só mesmo com a ajuda do “Gascidla”, que a acarinhava e fazia tudo para que a rapariga sentisse menos a falta da sua família, da sua praia e do ambiente natural a que estava acostumada. Entre outras coisas, o “Gascidla” levava comida do aquartelamento para a sua companheira.

Para lhe ajudar a passar o tempo, com tiras de folha de palmeira, bananeira, e de outras plantas, fazia cestos e outros utensílios, alguns em miniaturas, que eram autênticas obras de arte e também, sempre sobre a guarda e protecção do “Gascidla”, pescava camarão com uma rede, encostada à ponte do rio, metida na lama. Algum desse camarão, era vendido aos militares. Quando questionado pelo Cifra, se era feliz no que estava a fazer, ele dizia:
- Nunca fui tão feliz em toda a minha vida, ela é a mulher com que sempre sonhei, ela é real, nada nela é falso, contenta-se com aquilo que o mundo lhe deu, não tem ganância, não tem inveja, adora o sol e quando se ri para mim, só eu existo no seu pensamento. Sou feliz, Cifra, e vai ser ela que me vai dar muitos filhos.

Pelo menos nas palavras, tinha toda a razão. O tempo foi passando e quando faltavam dois meses para acabar a sua segunda comissão, com a ajuda dessa família Libanesa e do comando a que o Cifra pertencia, o “Gascidla” arranja trabalho numa sucursal da companhia ultramarina, no arquipélago dos Bijagós e como falava algum crioulo aí ficou a viver com a sua companheira.

Isto demonstra que o amor pode sobreviver no meio de uma guerra. O que se passou depois, com a continuação dessa mesma guerra, o Cifra nunca soube, mas concerteza que devia de haver algumas crianças Bijagós, a brincarem na tal praia a que só os locais iam e que não precisavam do calor do sol para ficarem com a pele do seu corpo bronzeada, pois já nasceram com essa tonalidade.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10578: Do Ninho D'Águia até África (21): O Tabaco, para alguns (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10593: Blogpoesia (310); Enquanto ouvir um piano a tocar Schubert ou Beethoven... (J. L. Mendes Gomes, Steglitz, Berlim, Alemanha)

Dois poemas, sem título, da autoria do nosso camarada J. L. Mendes Gomes, acabados de publicar na sua página do Facebook, e reproduzidos aqui com a devida vénia.

Recorde-se que o J. L. Mendes Gomes foi alf mil na CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66), e depois da tropa jurista na Caixa Geral de Depósitos, hoje reformado.

Para ele, a viver na Alemanha [, Steglitz, Berlim,] com os seus queridos netos, aqui vai um abraço de apreço, camaradagem, e amizade e esperança, dos editores e demais grã-tabanqueiros:


1. Enquanto ouvir um piano 
A tocar a serenata de Schubert,
Ou o lago dos cisnes,
Não me vou deitar
Nem deixar de viver.

Mesmo que venha a tristeza
E me afogue,
Hei-de sobreviver,

Agarrado às notas do piano,
Mesmo calado e afogado….

Hei-de voar, mesmo perdido,
Noite e dia,
Até encontrar alguém
Que também ande perdido como eu.


Ambos daremos as mãos,
Perdidos,
Algum caminho havemos de encontrar.
Até que nossas forças se apaguem…


Steglitz, 28 de Outubro de 2012
10h24m
Ouvindo Beethoven- Mondschein sonate










2. Tomara eu poder saltar um século à frente,
Com este meu tempo conturbado,
Que faz no planeta Terra!…

Ir pelo universo fora
Encontrar um cantinho,
- Podia ser um oásis - ,
Onde só coubesse
A paz e a concórdia…
Onde, nunca se tivesse ouvido falar de guerra
E a justiç a e a fé,
Num Deus uno e universal,
Fosse a bandeira da Terra inteira.

Não houvessem hospitais,
Presídios civis ou militares,
Nem campos relvados
Para toda a ordem de futebóis...

Tudo fosse
Praia, campo
E mar azul…

Só houvesse a combustão do sol,
Oculta e limpa,
Para fazer girar tudo,
Em vez do alcatrão e
Do petróleo pestilento
Que tornou a Terra irrespirável...

Não queria mais Têvês nem aviões.
Só queria as asas
E a propulsão
Do nosso coração imenso,
Que comanda cada um,

Para voar feliz
Pelo mundo todo
E firmamento.

Infelizmente..
É só um sonho!...


Steglitz, 29 de Outubro de 2012
8h8m
Joaquim Luís M. Mendes Gomes
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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10591: Blogpoesia (309): Francisco Santos, o poeta popular da CCAÇ 557 ( Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10592: História da CCAÇ 2679 (55): A mina do acaso - Pauleiro, o feeling do combatente (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem do nosso camarada José Manuel Matos Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 27 de Outubro de 2012:

Olá Carlos,
Hoje envio-te outro pedaço da história da CCaç 2679, uma ocasião de grande felicidade para mim.
É uma estória sobre esses engenhos traiçoeiros, que constituem verdadeiros riscos. Daqueles que dois camaradas, embora em circunstâncias muito diferentes, já aqui deram muitos testemunhos de fazer arrepiar; e a quem dedico o presente texto. Refiro-me ao António Matos e ao Luís Faria.
Para o Foxtrot, um excelente grupo de combate, vai a minha admiração e apreço.

Para ti e para o Tabancal envio um grande abraço
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (55)

A mina do acaso
Pauleiro, o feeling do combatente

A época seca já durava há muito, corria lenta e escaldante, às vezes sentia-se uma brisa quente do deserto. Nós entráramos no segundo ano de permanência e de hábitos em relação ao clima e ao relevo. As reservas físicas compensavam as assaduras do sol, mas os cantis eram indispensáveis nas bagagens individuais. Naquele dia saímos cedo para uma coluna a Copá.

Tratava-se de uma acção vulgar, apesar de termos a "obrigação" de picar um pouco mais além do que meio caminho. A picada arenosa, levantava uma escassa e fina poeira à nossa passagem, por meio de uma vegetação de capim amarelado e seco, e algumas árvores de pequeno e médio porte, umas vezes espaçadas, outras em definhada mata, marginavam a "estrada" durante quase todo o percurso. O chão evidenciava uma vegetação rala, quase limpo sob as copas das árvores. Agradava-me o calor matinal.

A coluna alongava-se pelos vagares da caminhada. e acompanhava as ligeiras curvas que desviavam a picada de árvores mais volumosas, que não apaziguavam os calores de cada um, porque, naquela região, a luz solar incidia na vertical. Caminhei durante algum tempo, mas depois de iniciar uma conversa com o condutor da Mercedes que seguia após os picadores, decidi subir e sentar-me a seu lado. Distraía-me do que estava a fazer, e o ramerrão daquelas viagens dava "confiança" para descurar. Mas não vou contar-vos nada que se possa imputar a uma distração, além de que outros cumpriam as suas funções, e eu não tinha lugar certo no dispositivo, andava por onde achava que devia andar.

Picadores em acção. Foto: © Jorge Teixeira (Portojo) (2009). Direitos reservados.

A velocidade da deslocação seria de uns cinco/seis quilómetros por hora, conforme as pernas permitiam e a determinação do momento. Não se ouvia mais do que o suave ruído dos motores, uma ou outra pica bater em solo mais rijo, um ou outro chamamento das aves. De súbito, ligeiramente à frente e a partir da orla da mata, ouviu-se com estrondo. Há minas!

As reacções eram as que tínhamos treinado e intuído. Não havendo tiros, cada um dos que seguiam na frente aguardava no lugar pela minha aproximação, que de pica, e lentamente, descobria caminhos da saída. Depois de uma olhada pelas bermas, verificou-se que não havia cordões detonantes. A mata apresentava-se serena, não havia turras emboscados. O Pauleiro permanecia no local de onde soltara o brado. Aproximei-me: - Por que é que há minas? Respondeu-me apontando para uma porção de terra seca, que eu achei que seria o resto de algum pequeno baga-baga. Mas o Pauleiro estava determinado de que se tratava de terra removida da picada. Mexi na terra quase solta e a dúvida estava instalada.

Andei em frente da Mercedes a avaliar a situação. Depois pedi aos picadores para picarem densamente e com toda a atenção desde a viatura. Eles fizeram-no sem resultados. No entanto, dei-me conta de que havia um espaço entre a roda e o extremo do pára-choques onde as picas não iam. Pedi ao condutor para engatar a marcha-atrás, mantendo a direcção, e que movimentasse a viatura cerca de um metro. Sem alteração da trajectória, não aconteceu nada. Voltei a pedir aos picadores para usarem as picas desde as rodas a cobrir aquela zona onde nada víramos. Agachei-me a olhar atentamente para o trabalho que desenvolviam. A um dos picadores pedi para recomeçar, porque andara depressa em relação aos outros e tinha-me distraído. Reiniciou-se a operação. O resto do pessoal estava disposto ao longo da estrada e fazia segurança. Ouvia-se o silêncio, apenas quebrado pelo picar o chão.

Ao bater de uma das picas, fiquei com a sensação de se ter projectado um pedacinho de madeira. Alto, fiz sinal. Não via qualquer pedaço de madeira, mas sabia de onde o imaginava ter partido. Saquei da faca e actuei. As primeiras tentativas revelaram um solo duríssimo, mas, de repente, novo indicio de madeira. Mais uns movimentos de remoção e a mina estava identificada, talvez a escassos quinze centímetros da roda da Mercedes sobre a qual eu seguia sentado. Com a faca fiz uma avaliação do terreno envolvente e não havia outros engenhos. Os picadores foram avaliar a situação em redor da viatura e até à terceira.

Eu esgravatava no solo, pedi ajuda a alguém para remover a terra de um lado, enquanto eu o fazia do outro, mas os progressos eram lentos, pois o chão afigurava-se rijo, rijo demais para um terreno argiloso. No entanto, a tampa do caixote já estava a descoberto. A transpiração escorria e os olhos acusavam o salitre com grande incómodo. Quase me esfarrapei para cavar até à dobra inferior do caixote. Talvez uma hora depois, limpei as zonas envolventes, o braço direito a acusar o esforço, e a mina apresentava-se esplendorosa e exercia o magnetismo de atracção. Apesar de cansado, apesar da ajuda, estava tranquilo do que devia a fazer.

Nunca me tinha acontecido uma tarefa tão difícil. Os turras estavam a evoluir na técnica, e fora um milagre que o Pauleiro se tivesse deslocado da picada para uma mijinha, tivesse olhado para a terra removida e suspeitado do que vira. Era um militar com faro e com muitas provas dadas de excelentes capacidades. Concluí que ao colocarem a mina terão feito uma massa de argila e água, que depois serviu para a cobrir. Em seguida cobriram-na com uma camada de areia fina, e depois o sol e o calor completaram a intenção de dissimulação. Aquela devia estar armadilhada, a avaliar pelos cuidados, desconfiei.

Uma equipa de minas e armadilhas neutralizando uma mina AC. 
Foto: © Carlos Vinhal (2012). Direitos reservados.

Pronto, só faltava retirar a mina. Mandei a todos que se afastassem e deitassem no terreno, quando fiz um laço em torno do caixote, pelas faces laterais. e puxei, puxei com força por mais duas ou três vezes, movimentando-a. Do meu conhecimento só havia um disparador por descompressão - o célebre rato, que funcionava subitamente quando era aliviado do peso. Aproximei-me do buraco levantei a corda, e pedi para a puxarem pela extremidade, o que conferia novo ângulo de movimentação. A mina deslocou-se sem que dali viessem indesejáveis barulhos. Não estava armadilhada.

Foi um dia de muita sorte para mim, seguramente dos mais afortunados. Aquele engenho tinha sido astutamente instalado, com recurso a nova técnica, que consistia no recurso à lama que cose ao sol e fica como cimento, mas o grupo de combate, mais uma vez conseguiu dar a resposta adequada. Prosseguimos viajem e imaginava a decepção do artista que colocou o minão. Seguia a pé junto dos picadores, mas aquela era uma mina solitária.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10530: História da CCAÇ 2679 (54): Quatro tiros para o Pedro (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P10591: Blogpoesia (309): Francisco Santos, o poeta popular da CCAÇ 557 ( Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)


Benavente > Restaurante O Miradouro > 27/10/2012 > Foto do pessoal CCaç 557, reunidos com filhos e netos, a comemorar o seu vigésimo quinto almoço de convívio e o quadragésimo sétimo ano do seu regresso.  Este ano os bravos do Como que pertenceram à  valorosa CCAÇ 557 foi "reforçada" por dois elementos do nosso blogu: na primeira fila,  o Fernando Chapouto [cercadura a amarelo], de camisola branca com a mão esquerda no ombro direito do José Colaço (, cercadura a verde]; na fila de trás o Jorge Rosales [, cercadura a azul], com uma folha de palmeira a tapar-lhe o queixo. Quanto ao nosso poeta popular Francisco dos Santos,  ele é o que está na última fila,  ao centro,  de blusão escuro, camisa branca e pulôver azul [, cercadura a vermelho].


Foto da família CCaç 557 com filhos e netos reunida no dia 27/10/2012 em Benavente.



1. Mensagem do José Colaço, o nosso bravo da ilha do Como, ex-Soldado Trms da CCAÇ 557 (, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), e organizador do convívio deste ano:


Assunto: Poesia popular

Como o nosso administrador é um admirador da poesia popular (e não só, ou não fosse ele um poeta com todas as letras), envio em anexo os versos que o nosso camarada Francisco dos Santos, poeta popular dedicou à CCAÇ 557 no almoço de convívio em Benavente, em 27/10/2012.

Um abraço, Colaço.



Guiné > Região de Tombali > CCAÇ 557 (1963/65) > Cachil > Os trabalhos na construção da paliçada.

Fotos (e legendas): © José Colaço (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.













O Franisco Santos, de 70 anos, ex-1º Cabo Radiotelegrafista, da CCAÇ 557,Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65, poeta popular,  residente no Montijo. É membro da nossa Tabanca Grande desde 12 de maio de 2009.
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P10590: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (6): 7.º episódio: O quotidiano no K3

1. Em mensagem do dia 27 de Outubro de 2012, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), mandou-nos mais um episódio da sua passagem pela vida militar, correspondente aos melhores 40 meses da sua vida; diz ele e nós acreditamos piamente.


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

7.º episódio - Quotidiano no K3 (Saliquinhedim)

Localização de Saliquinhedim - K3 por se situar a 3Km de Farim. Vd. Carta de Farim.
Convém esclarecer que as referências, na carta, a Bafatá e Olossato não são a localização real daquelas importantes povoações da Guiné. Vd. cartas de Bafatá e Binta, respectivamente.

E era assim, o dia a dia no K3, mas também emboscando..., sendo emboscado..., patrulhando..., escoltando..., vigiando..., descansando... e lerpando.

No bar, tínhamos cervejolas de 6 dcl, semi arrefecidas naquele velho frigorífico a petróleo e até o whisky jorrava a rodos. O "barman" preparava um petit dejeuner daqueles de se lhe tirar o bivaque e que consistia em bocadinhos de pão, ainda não em pedra mas quase, a que juntava ovos inteiros, sem casca, claro, mais umas sagres e açucar... tudo misturado era um acepipe que deslizava suave e gulosamente pelos nossos sequiosos gorgomilos. Para alegrar o espírito beberrão, emborcávamos então, um Vat 69 e pronto até ao almoço, ficávamos "porreiros mesmo pá".

Este (o almoço) era óptimo e variado quanto baste: às 2.ªs, 4.ªs e 6.ªs: dobrada liofilizada com feijão branco; às 3.ªs, 5.ªs, Sab e Dom: feijão branco com dobrada liofilizada. De quando em vez, porém, comíamos uns bifitos de vaca tuberculosa, que comprávamos, sem falar com os donos, por ali nos matos próximos, mas raramente, pois que o perigo também lá morava e só arriscávamos quando gostávamos de parecer gente fina.

A maior carência tinha que ver com o ingerir "frescos", nome que davam aos produtos hortícolas. Raramente chegavam lá ao fim da linha, já que antes passavam por vários "esfomeados", distribuídos desde Bissau, até nós. Compensávamos tal falta, em Farim e aquando do aprovisionamento diário da água para uso da Companhia.

Aqueles chóriços assados na brasa e bem regados com um tinto especial da marca "Água de Lisboa", substituíam com vantagem evidente, a falta das vitaminas, proteínas, sais minerais e outros que tais. Por fim e com a barriguita quase aconchegada e já do lado de lá do rio, atirávamos (DE PÉ) uma granada (DE MÃO), a fim de afugentar algum empecilhoso crocodilo dundee, que por ali andasse e tomávamos uma banhoca, coisa recomendável e saudável, dado o volume da comida... bebida.

A tarde era destinada a algum descanso para que à noite pudéssemos aparecer, aos habituais encontros, com alguma compostura e pontaria afinadas, não sem que antes se houvessem limpo as maquinetas G3 e até nisso tive azar que a minha tinha mais um bocadinho para polir, pois era de bipé.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10579: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (5): 6.º episódio: Pela primeira vez o quartel foi atacado

Guiné 63/74 - P10589: Notas de leitura (423): O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
No exato momento em que me preparo para o estatuto de funcionário público reformado, vou limpando as gavetas da secretária e as toneladas de papel nas estantes.
Abri um envelope e encontrei todo o correio destinado à família, havia ali de tudo, desde notícias sobre o andamento do trabalho até mensagens às filhas. Trata-se de um testemunho insignificante de uma cooperação que não teve seguimento, vinha cheio de entusiasmo e não perdi a esperança até tudo se ter desmoronado. Antes de rasgar tudo, dou-vos em síntese conhecimento desta experiência profissional e pessoal.

Um abraço do
Mário


O meu serviço cívico na Guiné, em 1991 (1)

Beja Santos

O relato sumário destes acontecimentos aparece em “A Viagem do Tangomau”, o porquê e o como aterrei em Bissalanca nos inícios de Outubro de 1991, naquele tempo problemático da Guerra do Golfo, da assunção do multipartidarismo na sociedade guineense e dos preparativos da Cimeira da Terra. Tudo começou quando Portugal convocou os ministros do ambiente da CPLP para definir posições conjuntas quanto aos dossiês que iriam ser discutidos no Rio de Janeiro, em 1992. Nessas conversações o ministro dos Recursos Naturais e da Indústria da Guiné-Bissau, invocando um protocolo de cooperação em vigor entre os dois países, solicitou um apoio técnico para instituir as bases de uma política de consumidores no país. A escolha para tal missão recaiu em mim, andei lá uma semana em 1990 a apurar o que se pretendia e o que se pretendia era, surpreendentemente, montar um serviço que capacitasse a administração pública local a intervir a favor das melhores condições de vida dos guineenses. Ficou estipulado que eu viria passar o último trimestre de 1991, ao dispor do CITA – Centro de Investigação e Tecnologia Aplicada, unidade dependente do referido ministério, por acaso instalado num sítio conhecido de todos os que ali combateram: estava em pleno Quartel-General, no rés-do-chão à direita, onde recebíamos guia de marcha para os nossos aquartelamentos. Foi exatamente neste ponto que um sargento me informou, sem nenhuma preparação, que Missirá tinha ardido na véspera, na noite de 19 de Março de 1969.

O que ali se passou consta de uma informação pormenorizada que redigi já em Lisboa, em Janeiro seguinte, dos relatórios semanais que enviava à Vice-Presidente do Instituto do Consumidor e das cartas que enviava para casa, duas vezes por semana, não me esquecendo de ir aborrecendo quem me lia com uma floresta de trivialidades, algumas delas associadas a tempos idos. A caminho da reforma, a entregar no Centro de Documentação do meu local de trabalho toneladas de papéis, a embalar aquilo que é mesmo meu, vou enchendo sem desfalecimento o caixote do lixo com tudo aquilo que está definitivamente arquivado ou é inútil. E soube-me bem reler as cartas que seguiram para Lisboa e que vão orientar este relato que vale o que vale.

Cheguei a Bissalanca com resmas de documentação destinada a ser oferecida aos interlocutores da administração interessados em saber por onde se começa qualquer planeamento para a organização de uma política de consumidores. Fui recebido por dois técnicos no meio de uma tarde da época das chuvas (plúmbea e com sinais de tornado à vista) que logo me disseram à queima-roupa que não devia ter vindo, havia muita gente fora, vivia-se afanosamente a formação de partidos. Apeteceu-me brincar, declarei solenemente que não vinha apoiar a formação de nenhum partido, toda a documentação que trazia não era material para comícios. Os meus mal-humorados anfitriões conduziram-me aos aposentos, um quarto na empresa CICER, um espaço interessante, com condições de trabalho e vigilância permanente. Ficava a cerca de 2 km da cidade, só havia o inconveniente de nas noites sem lua vir aos tombos por aquela extensa bolanha, ficaram gratas recordações desses passeios à noite, vindo do jantar na Pensão Central, às vezes quem tinha por mim comiseração era o Dr. Delfim Silva, mais tarde ministro dos Negócios Estrangeiros.


Atirei-me aos contactos, identifiquei os organismos mais motivados (saúde pública, serviços de inspeção de alimentos e do comércio interno), ao fim de alguns dias já estávamos a preparar um esboço para um despacho presidencial de um Conselho Interministerial de Defesa do Consumidor, órgão de consulta do Governo, que possuiria o seu programa autónomo de atividades e a capacidade para emitir recomendações. Inevitavelmente, o seu funcionamento ficaria na órbita do projeto de cooperação com as autoridades portuguesas. E escrevo para casa: “A situação económica e financeira do país excedeu todos os limites críticos e nesta altura não há quadro nenhum que não volte as costas à situação caótica, andam todos eufóricos com a formação de partidos, só aparentados com os sociais-democratas já ouvi referências a três, informaram-me que tudo anda acompanhado de perseguições expurgos e demissões, os quadros mais competentes dizem em voz alta que querem ir ganhar a vida a quem os trate com dignidade”.

Pedi uma entrevista aos sociólogos e economistas do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa para ouvir a sua opinião quanto às perspetivas do consumo na Guiné. Durante a reunião, um deles perguntou-me se eu tinha consciência de que os padrões nutricionais não estavam tão degradados como noutros pontos de África devido ao modo como a FAO geria a distribuição de alimentos, uma parte significativa da população tinha acesso a produtos agrícolas e a peixe da bolanha. Outro questionou-me se eu já tinha entrado numa farmácia, valia a pena lá ir para perceber como de farmácia para farmácia os medicamentos se podiam vender 20 vezes mais caros. E quando a reunião acabou fiquei a saber que o país estava paupérrimo mas tinha 39 ministros e em quase todos os ministérios recebia-se o vencimento com fartos meses de atraso, como é que eu julgava ser possível criar equipas motivadas para os primeiros programas de sensibilização. Deu para pensar, havia que moderar a fé que me trouxera de Lisboa.

No meu espaço na CICER era bem agradável trabalhar à noite mesmo com as repetidas faltas de energia, levara trabalho do Instituto para acabar e tinha sobretudo que alimentar a minha colaboração no Jornal de Notícias e no Comércio de Víveres.


Havia pausas no trabalho, pois claro. Nas errâncias de contactos, conheci o nosso compatriota Paulo Salgado [, e hoje membro da nossa Tabanca Grande,] que me levou ao Cumeré, é uma história fácil de contar. Quando estava em Missirá, de vez em quando recebia uns bilhetes impertinentes de um tal Mamadu Jaquité que me tratava invariavelmente por “Alferes da Merda, se fores vivo para o teu país será um grande desgosto e vergonha para mim”. Logo em 1990, bati à porta na fortaleza da Amura, um oficial de boina vermelha (Ansumane Mané) informou-me que Mamadu Jaquité estava colocado no Cumeré. Pois o Paulo Salgado, nosso confrade, ofereceu-se para me levar lá, foi um passeio agradável, viajaram connosco igualmente a mulher e a filha [, a Conceição e a Paula, igualmente membros da nossa Tabanca Grande].

No Cumeré apresentei-me ao coronel, um homem de estatura meã e olhos intranquilos, disse-lhe que era o tal alferes da merda que vinha abraçá-lo, trazia ali uma caixa isotérmica com umas bebidas com e sem teor alcoólico. Estávamos no meio de uma atmosfera descontraída quando disse ao coronel que ele quase me tinha liquidado na mina anticarro de 16 de Outubro, foi por um triz que não cumpriu as suas promessas. Ele refutou, tinha de facto pensado em desfazer-se de mim mas naquele dia quem montara a mina e ficara emboscado fora o tenente Armando Correia, e lá o chamou, convinha esclarecer o assunto. O tenente entrou de sorriso aberto e desfazia-se em desculpas, minutos depois estávamos todos às gargalhadas. O pior de tudo foi quando ele me pediu, à despedida, meia dúzia de pesos para comprar arroz, óleo e sabão, fui-me mesmo abaixo, voltei a cara para ver Bissau iluminada, parecia querer esquecer que aquele homem, seguramente um bravo militar, pedinchava uma ajuda ao antigo inimigo, a que ultraje um ser humano se tem que sujeitar para estender as mãos à caridade. E escrevo para Lisboa: “Vivem na mais confrangedora das misérias e interrogo-me o que vai no íntimo destes homens que deram a sua juventude para ter um país independente e vivem no maior caos económico”. Mais tarde o Paulo Salgado levou-me a Olossato, que me lembrou Sintra, ressalvadas as distâncias, era uma povoação frondosa com um enorme mangal e muitos laranjais.

Voltando ao trabalho, foi-me apresentado um jornalista da televisão local que se mostrou disponível a fazer um pequeno programa de sensibilização. Garanti-lhe todo o apoio. Foi assim que nasceu o programa televisivo “1 Milhão de Consumidores”, que viveu várias semanas e que foi uma das minhas fontes de alegria enquanto lá estive.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 DE OUTUBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10574: Notas de leitura (422): "Guerra da Guiné: A Batalha de Cufar Nalu", de Manuel Luís Lomba (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 28 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10588: O Alenquer retoma o contacto (7): Texto sobre a vida de um soldado (Armando Fonseca)

1. Mensagem de Armando Fonseca (ex-Soldado Condutor do Pel Rec Fox 42, Guileje e Aldeia Formosa, 1962/64), com data de 17 de Outubro de 2012:

Caro camarada Vinhal e restantes participantes da tabanca grande, um bem haja a todos.
No ano letivo de 2011, frequentava a minha neta o 9.º ano, foi incumbida de fazer um trabalho em conjunto com três colegas sobre a guerra do ex-ultramar sobre regime de Portugal, e, então ela pediu-me para lhes falar sobre isso, visto eu ter estado envolvido nessa guerra.
Então elaborei um texto para depois recitar para gravação em vídeo, ao qual elas juntariam fotografias a ilustrar o texto.
Assim foi e, o trabalho embora um pouco adulterado saiu bom.

Vou enviar esse texto, e se os digníssimos editores acharem por bem publicá-lo muito bem, caso contrário tudo bem.
Não envio o próprio trabalho porque devido aos meus fracos conhecimentos de informática não me será possível fazê-lo.


O Alenquer retoma o contacto (7)

Texto sobre a vida de um soldado

"Chamo-me Armando Fonseca, tenho 70 anos, cumpri o serviço militar desde Abril 1961 até Julho 1964. Durante esse período 26 meses foram passados na Guiné, desde Maio de 1962 até Julho de 1964.

Quando em Janeiro de 1962 fui mobilizado para ir para essa província já havia guerra em Angola e os Guineenses pela mão do PAIGC davam os primeiros passos para o mesmo fim.

Durante o período que antecedeu o embarque, houve alguma preparação para o fim em vista e eu fazendo parte de uma secção de Auto-metralhadoras, como condutor, fui enviado juntamente com os restantes companheiros da secção para a Escola Prática de Cavalaria em Santarém a fim de aí recebermos instrução de operação e manutenção do carro e do respectivo armamento que o compunha.
Terminada esta instrução regressamos para Castelo Branco para nos juntarmos aos restantes camaradas do Pelotão para aí continuarmos com a preparação, nem sempre a adequada, para os fins que nos esperavam.

Assim chegou o dia 20 de Maio de 1962 dia em que o navio "António Carlos" nos esperava no cais de Alcântara para nos transportar até à Guiné. Nesse dia, lá estavam os meus entes mais queridos para se despedirem de mim, meus pais, irmão, namorada e mais alguns familiares e amigos. Depois das despedidas embarquei no navio e quando da largada do mesmo ele emitia alguns apitos que faziam cortar o coração, esses silvos despertaram em mim tal angústia que ainda hoje me causa arrepios recordar a partida.

O navio de carga ANTÓNIO CARLOS fotografado no Norte da Europa com as cores da Sociedade Geral (Imagem da Skyfotos – colecção de L. M. Correia) In: Dicionário de Navios Portugueses, com a devida vénia.

A viagem que durou sete dias decorreu de forma normal, mas quando cheguei o ambiente era totalmente diferente ao que estava habituado, um calor abrasador, um cheiro próprio daquele ambiente local, enfim tudo coisas a que me fui habituando.

O meu pelotão ficou instalado nos arredores de Bissau, no Quartel General numa caserna onde só existiam os ferros das camas e os colchões, a roupa de cama estava ainda embarcada no navio e só nos foi distribuída uma manta para ornamentar a cama e nos cobrirmos. Com o calor intenso que se fazia sentir era impossível suportar a manta, por outro lado destapados, os mosquitos atacavam em força, era insuportável aquela situação.
Passados três dias apareceram então as roupas de cama e cada um a seu belo prazer foi na cidade mandar fazer mosquiteiros que colocados sobre as camas evitavam assim sermos comidos pelos mosquitos durante a noite.
Havia pouca higiene, visto a agua ser muito pouca e de muito má qualidade. Havia um período do dia em que havia água nos balneários para se tomar banho mas fora desse período já não era possível tomar banho, por falta de água.
A água para se beber tinha que ser filtrada em equipamentos próprios e tratada quimicamente com comprimidos a fim de evitar a propagação de doenças, tais como a malária e o paludismo.

Nesta altura a guerra ainda estava muito no começo, havia aqui e ali algumas escaramuças e nós ficamos a fazer a segurança da cidade e do aeroporto. Então, fazia serviço durante 24 horas no aeroporto de Bissalanca, passando inspecções à pista e mantendo a segurança nas aterragens e nas descolagens dos aviões tanto civis como militares. Durante essas inspecções por vezes eram avistadas cobras que atravessavam a pista e nas cercanias junto do arame farpado viam-se também hienas e onças que procuravam o seu meio de subsistência.
Nos restantes dias estávamos às ordens para qualquer imprevisto a que tivéssemos que acorrer. Às vezes, muito raras, tinha um dia de folga que aproveitava para ir até à cidade, para ir ao cinema ou fazer algumas compras de certos artigos que não me eram fornecidos.

Assim decorreram os primeiros dezasseis meses, até que o Batalhão que se encontrava em Mansoa e tinha distribuídas companhias por Mansabá e Bissorã as quais tinha que abastecer de géneros alimentícios e outros já estava com dificuldade em se movimentar devido aos ataques inimigos e então pediu a Bissau um carro de Cavalaria para apoio às colunas que tinha que fazer deslocar para o abastecimento dos seus homens e, calhou à guarnição do meu carro essa missão.
Fui então deslocado para essa região para apoio a essas colunas que diariamente se tinham que deslocar a Mansabá ou a Bissorã. Aqui os perigos aumentaram porque a guerra já estava a tomar outras proporções, havia emboscadas, com as quais se tinha que lidar especialmente nas deslocações a Mansabá e começavam a aparecer minas anti-carro aqui e ali montadas nos caminhos.

Numa das minhas deslocações com destino a Mansabá, mais ao menos a meio do percurso, rebentou uma mina centésimos de segundo antes do carro estar sobre o local onde ela estava montada, abriu uma grande cratera sobre a qual o carro passou pelo ar mas nada de mal nos aconteceu. Para os restantes carros da coluna passarem teve que ser aberta uma picada ao lado da estrada porque a cratera era maior que a largura dos rodados dos carros.

Certa madrugada foi recebida informação de que uma pequena povoação, denominada Porto Gole, situada numa das margens do rio Geba estava a ser atacada, lá fomos de imediato em socorro do chefe de posto e dos cipaios que mantinham ali vigilância, visto o rio ser um meio importante de comunicação entre Bissau e o interior Norte. Ao chegarmos encontravam-se queimadas várias moranças, dois cipaios mortos e o chefe de posto e parte da população tinha sido raptada pelo inimigo. Permaneci aí alguns dias até ser montado com segurança um destacamento militar que passava agora a garantir a segurança dos barcos que circulavam no rio.
O percurso para essa povoação era muito sinuoso tinha que se atravessar bolanhas em que dificilmente se via a estrada por onde se podia passar, visto estar cercada de água e até submersa nalguns pontos. Numa dessas deslocações, devido ao acidentado do terreno, magoei um dedo da mão direita que me deixou inapto durante algum tempo, assim foi nomeado outro condutor para me substituir durante esse período, só que, na primeira deslocação que fez a Bissorã, rebentou uma mina debaixo do carro que o deixou totalmente inutilizado, uma das rodas da frente foi ficar em cima de uma árvore e por lá permaneceu muito tempo, visto ter ficado de modo que era muito difícil retirá-la. O condutor foi o único que sofreu algumas escoriações, a restante tripulação não sofreu nada devido à boa blindagem que compunha aquelas auto-metralhadoras.

Sem carro já nada fazia naquelas paragens e regressei a Bissau substituído por outra guarnição com outro carro. O período de permanência em Mansoa decorreu entre 28 de Agosto e 18 de Novembro de 1963. Chegado a Bissau continuei com os piquetes ao aeroporto e outras missões similares, só que, a 21 de Janeiro de 1964 é o pelotão destacado para o Sul para reforçar as tropas ali existentes, visto a situação ali já estar muito difícil e lá vamos nós a caminho de Aldeia Formosa, hoje chamada de Quebo.
Para fazermos esse percurso que em condições normais durava algumas horas, demoramos dois dias porque a estrada nalguns locais tinha que ser toda picada a fim de detectar se havia minas montadas. A certa altura do percurso fomos atacados por milhares de abelhas que deixaram toda a coluna em alvoroço, esses ataques eram tão ou mais perigosos que os provocados pelo inimigo e às vezes surgiam em simultâneo.

Ao chegarmos a Aldeia Formosa instalamo-nos aí, mas a nossa missão era fazer escolta a uma operação que ia ser desencadeada para desobstruir a estrada que se dirigia para Cacine, a qual tinha centenas de árvores derrubadas que não permitiam o movimento por terra a fim de comunicar com alguns destacamentos que assim permaneciam isolados. Então começamos a montar destacamentos ao longo dessa estrada após a sua desobstrução a fim de garantir que não voltaria a suceder o mesmo.

O primeiro destacamento a ser montado foi o de Guileje, que anos depois teve que ser abandonado devido à intensidade dos ataques inimigos. Seguiu-se Ganturé que ficava a três escassos quilómetros de Gadamael onde se encontrava uma companhia totalmente isolada por terra, a única comunicação que tinha era pelo rio e mesmo assim só quando das marés vivas, uma vez por mês os barcos lá conseguiam chegar.
Seguiram-se os destacamentos de Sangonhá e Cacoca e até aqui embora tenham havido várias emboscadas, e tenham sido descobertas várias minas anti-carro, do meu pelotão só eu tinha sido ferido na cara por duas vezes, sempre coisa de pouca gravidade, mas, no dia 2 de Julho foi montada pelo inimigo uma emboscada, onde rebentaram duas minas destruindo por completo uma auto-metralhadora e um granadeiro, matando dois camaradas e ferindo com muita gravidade mais três, os quais levaram algum tempo para reconstruir os órgãos afectados e ainda hoje sofrem dessas maleitas.

A partir desta data nós ficamos totalmente desanimados e já não fizemos mais nada, até porque já tínhamos ultrapassado o tempo previsto para a nossa comissão. Regressamos então para Bissau numa lancha da marinha a fim de aguardar o regresso que teve lugar no dia 21 no Paquete Índia, chegando a Lisboa a 30 de Julho.

Navio Índia. Foto Navios Mercantes Portugueses, com a devida vénia

À chegada esperavam-me os meus familiares que me receberam com toda a alegria e eu mais alegre estava porque em determinadas alturas pensava que já não regressava para os tornar a ver.
Nesse dia não pude seguir com eles visto que ainda tive que ir a Castelo Branco fazer o espólio dos fardamentos que trazia e receber as guias que permitiam passar à vida civil e só no dia 30 regressei.
Nesse dia tinha então todos os meus familiares e amigos à minha espera e começou aí uma nova vida".

Despeço-me com um grande abraço
Armando Fonseca (O Alenquer)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8331: O Alenquer retoma o contacto (6): Velhas recordações (Armando Fonseca)