Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Foto nº 6 > Comemoração do dia do exército, 14 de Agosto de 1942. Foto: Melo. [Vê-se ao fundo o Ilhéu dos Pássaros e, à direita, a Ponta João Ribeirro; foto do álbum do pai do nosso camarada Hélder Sousa, 1º cabo Ângelo Ferreira de Sousa, expedicionário: nasceu em 1921 e morreu em 2001; esteve em São Vicente, em 1943/44, foi portanto contemporâneo do cap cirurgião-médico José Baptista que esteve no Mindelo, de fevereiro de 1942 a setembro de 1944].
Foto: © Hélder Sousa (2009). Todos os direitos reservados.
1. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro Adriano Lima, com data de 2 do corrente:
Meus caros familiares, amigos, conhecidos, e correspondentes.
Em anexo, envio-vos um texto sobre o Dr. Baptista de Sousa e explico o porquê deste meu gesto. Todo o meu tempo de menino e moço em S. Vicente, sempre ouvi falar do Dr. Baptista de Sousa mas sem chegar a saber ao certo de quem se tratava. Nem mesmo o vir a saber o seu nome atribuído mais tarde, no pós-independência, ao novo Hospital Civil de S. Vicente espicaçou a minha curiosidade, mas neste caso talvez justificável por eu não viver em Cabo Verde.
Em anexo, envio-vos um texto sobre o Dr. Baptista de Sousa e explico o porquê deste meu gesto. Todo o meu tempo de menino e moço em S. Vicente, sempre ouvi falar do Dr. Baptista de Sousa mas sem chegar a saber ao certo de quem se tratava. Nem mesmo o vir a saber o seu nome atribuído mais tarde, no pós-independência, ao novo Hospital Civil de S. Vicente espicaçou a minha curiosidade, mas neste caso talvez justificável por eu não viver em Cabo Verde.
Só há meia dúzia de anos, por intermédio da blogosfera e por iniciativa pessoal do meu amigo Valdemar Pereira, fiquei finalmente a conhecer a identidade do médico e o amor imenso que o povo do Mindelo tinha por ele. E como fiquei a saber que afinal ele era ao tempo um oficial médico (capitão) integrado nas Forças Expedicionárias a Cabo Verde durante a II Guerra Guerra Mundial (1941-1945), a curiosidade levou-me a efectuar uma pesquisa no Arquivo Histórico-Militar para obter o máximo possível de dados sobre o seu percurso profissional. E assim aconteceu, tendo elaborado um texto de cerca de 30 páginas, do qual colhi material para, a convite, fazer uma palestra sobre esta figura da medicina e do exército na "Associação de Antigos Alunos do Liceu Gil Eanes", em Lisboa, há para aí uns 6 anos.
Actualmente, tenho vindo a publicar num blogue designado Praia de Bote um conjunto de textos sequenciais e temáticos sobre o historial das Forças Expedicionárias a Cabo Verde. Chegou a altura, mais que propositada e oportuna, de, nesse âmbito, publicar naquele blogue um texto contendo uma síntese biográfica sobre o Dr. Baptista de Sousa (também ele um militar expedicionário), que em particular foca a sua acção em Cabo Verde (S. Vicente). É este mesmo texto que vos estou a enviar (em versão pdf e em versão word, para quem tiver dificuldade em abrir o primeiro). [Já publicado no dia 3 do corrente, no blogue Praia de Bote].
Devo dizer-vos que o que eu escrevi talvez venha a surpreender o leitor, tal como me surpreendi, porque não o esperava, face à constatação de que o Dr. Baptista de Sousa, além de distinto oficial médico, de cirurgião de alta craveira e grande humanista, era dotado de vincada consciência política, e implicitamente de verticalidade ético-moral, o que lhe causou transtornos na sua carreira militar. De notar que em Cabo Verde (S. Vicente) mostrou desassombradamente essa faceta, estribada no seu elevado sentido de deontologia profissional, ao recusar escrever nas certidões de óbito que a causa de muitas mortes não era outra senão a fome que grassava nas ilhas. Foi a partir daí que o antigo Regime político encontrou razões para começar a urdir um estratagema para lhe criar entraves na carreira militar, com inevitáveis consequências na sua actividade como médico cirurgião.
Contudo, o que mais impressiona no texto é a expressividade do carinho que o povo do Mindelo lhe dedicava, que atinge o auge na incontida emoção vivida na cidade no dia da sua partida para Lisboa. Procuro dar uma ideia disso no meu texto, por vários testemunhos recolhidos.
Leiam porque vale a pena. E, já agora, vão ao blogue Praia de Bote , quando sair o post referente a este texto, e deixem lá o testemunho da vossa própria emoção e o sentido da vossa gratidão a um Homem que tanto bem fez à nossa gente.
Faleceu em 1967, aos 63 anos de idade, em Lisboa [, com o posto de coronel]. Os crentes do Racionalismo Cristão em S. Vicente dizem que ele pertence ao Astral Superior e aí preside, mas isso já é assunto de um domínio que me ultrapassa. Mas seguramente que ele foi, sim, uma Grande Alma, de uma dimensão incomensurável, quase sobrenatural.
Um abraço
Adriano Miranda Lima
Nota do editor - No nosso blogue, Luís Graça & Camaradas, este texto será publicado em duas partes. Ele é também uma homenagem à geração dos nossos pais que, em Cabo Verde e noutros do império, estiveram em missão de soberania durante a II Guerra Mundial. (LG).-
_______________________
Dr. José Baptista de Sousa, um “anjo di céu” que pousou em S. Vicente
Texto: Adriano Miranda Lima [, foto à esquerda]
Fotos: Valdemar Ferreira [, foto à direita, a seguir]
Nos meus tempos de menino e moço, o nome do Dr. Baptista de Sousa era volta e meia aflorado em conversas dos mais velhos, tido como um “anjo di céu” que um dia pousara em S. Vicente. Mas nunca cheguei a saber ao certo de quem se tratava, nem sequer cuidando-me de indagar algo de concreto sobre a sua identidade. Dezenas de anos decorridos, e já no pós-independência, viria a saber que o novo hospital de S. Vicente recebeu o nome médico, mas nem isso espicaçou a minha curiosidade sobre os pormenores da sua identidade, ficando no entanto sensibilizado por ver assim consagrada a memória de alguém verdadeiramente querido na nossa terra.
Dr. Baptista de Sousa, com a bata branca de serviço. Foto colhida na net. Só há meia dúzia de anos, com a fruição da blogosfera, eu viria a saber quem era afinal esse personagem do mundo da medicina. Tudo se proporcionou através do blogue “Mindel na Coraçon”, editado por Jorge Martins e em que eu e outros conterrâneos participávamos desenterrando memórias e cruzando informações e opiniões. Chegou o dia em que veio a propósito o nome do médico. E então o conterrâneo Valdemar Pereira ], foto à direita], portador de uma fabulosa memória, não deixou os seus créditos por mãos alheias quando resolveu rebobinar a fita do tempo para recuperar factos relacionados com a passagem do Dr. Baptista de Sousa por S. Vicente, designadamente com a sua despedida em 1944. Tinha o Valdemar nesse tempo apenas 11 anos de idade, mas o que entretanto também ouviu dos mais velhos e guardou a sete chaves na memória consubstanciou uma importante informação, ainda por cima ilustrada com expressivas fotografias. E no-la trouxe, incólume e preciosa, para gáudio das gerações mais velhas, que revisitaram o acontecimento, e para grata surpresa das que lhe são posteriores.
Surpreendido, porque não o esperava, fiquei então a saber que Baptista de Sousa era médico militar, ao tempo capitão. Esta é que foi a minha maior surpresa, porque sempre o supus civil. Mas não, afinal Baptista de Sousa foi também um Militar Expedicionário, como outros já mencionados em episódios anteriores da minha narrativa sobre esta temática.
Justo é dizer que todos ficámos siderados com o relato feito por Valdemar sobre a homenagem que a população de S. Vicente prestou a essa figura da medicina à data do seu regresso à Metrópole, terminada a sua comissão de serviço integrado nas forças expedicionárias. A palavra do Valdemar foi de grande eloquência mas as imagens das fotografias do acontecimento por ele publicadas foram igualmente uma peça importante para se perceber o quanto era o médico idolatrado pelo povo de Mindelo. A ponto de se poder dizer que a emoção da despedida de Baptista de Sousa transborda-se das fotografias e tem o condão de tocar quem as observa.
Esclareço que, na sequência das revelações daquele blogue, decidi realizar uma pesquisa sobre a vida militar do Dr. Baptista de Sousa, recolhendo e trabalhando algum material que me permitiu, por sugestão do Valdemar e outros amigos, efectuar uma palestra sobre a sua biografia na Associação de Antigos Alunos de Liceu de Cabo Verde. Seria ocioso derramar aqui o conteúdo do que foram cerca de 30 páginas, mas aproveitarei algumas das suas passagens mais significativas para deixar aqui algo sobre o Homem que os cabo-verdianos nunca esqueceram, tanto que o seu nome está para sempre imortalizado na designação do novo hospital civil de S. Vicente.
José Baptista de Sousa ], foto à esquerda, retirada da Net pelo autor do texto]:
(i) nasceu em 2 de Março de 1904 na freguesia de Camões, em Lisboa, filho de José Augusto de Sousa e de Victoria Alves Baptista de Sousa.
(ii) De 1922 a 1927, fez o curso de Medicina na Faculdade de Medicina de Lisboa;
(iii) De 1928 a 1929, frequentou com aproveitamento, no Hospital Militar Principal, o Curso Técnico de Oficiais Milicianos Médicos e a seguir concorreu ao Quadro Permanente de Oficiais Médicos, tendo sido promovido a alferes em 1929;
(iv) Foi em seguida colocado em unidades do Exército e, depois, na Guarda Nacional Republicana, onde serviu de 1936 a 1942, tendo entretanto sido promovido a tenente em 1930;
(v) De realçar que numa das unidades militares, ainda oficial subalterno, foi louvado “pelo zelo, competência e dedicação manifestados nos diferentes serviços para que foi nomeado”; entretanto, concorreu ao internato de Cirurgia dos Hospitais Civis de Lisboa e fez o concurso para cirurgião dos mesmos hospitais;
(vi) Foi igualmente assistente na Faculdade de Medicina de Lisboa, ao mesmo tempo que frequentava o internato de cirurgia nos Hospitais Civis de Lisboa, tudo isso em acumulação com as suas funções militares, o que demonstra uma firme disposição de alargar e diversificar as experiências e desafios da sua actividade médico-científica;
(vii) É quando prestava serviço na Guarda Nacional Republicana que, em 17 de Janeiro de 1942, é nomeado para integrar as Forças Expedicionárias a Cabo Verde;
(viii) Deste modo, embarca em Lisboa a 16 de Fevereiro de 1942, no vapor Guiné, com destino a S. Vicente de Cabo Verde, onde desembarca a 22 do mesmo mês;
(ix) É já em S. Vicente que é promovido ao posto de capitão médico.
Baptista de Sousa vai viver em S. Vicente talvez uma das fases mais marcantes da sua vida pessoal e profissional, durante a qual deve ter encontrado o verdadeiro significado da carreira que abraçou e a sublimação dos altos valores humanos que eram parte integrante do seu ser. Ele é o médico-cirurgião dos militares mas é-o também dos civis, movido pelo seu impulso natural de pôr a sua ciência médica indiscriminadamente ao serviço de quem dela precisava.
Seria por demais exaustivo enumerar as vidas que o Dr. Baptista de Sousa salvou e as malformações físicas (casos de pé boto) de civis que reabilitou com a sua técnica cirúrgica. Fez uso de intervenções terapêuticas até aí pouco utilizadas em Cabo Verde por falta de meios adequados ou mesmo por insuficiência de pessoal médico qualificado. Mas tudo fazia sem olhar a quem, fosse rico ou pobre, militar ou civil, demonstrando uma total disponibilidade e uma dedicação e humanidade sem limites. Era director do Hospital Militar Principal de Cabo Verde e tinha como adjunto o capitão médico Lisboa, outro que deixou boas recordações em S. Vicente.
A acção do Dr. Baptista de Sousa durante quase 3 anos de permanência em Cabo Verde granjeou-lhe o mais alto prestígio e consideração quer entre o contingente militar quer, sobretudo, entre a população civil. Para se ter uma ideia do que alguém significa para o seu próximo, nada como a expressividade de um coração agradecido. E para se perceber isso, veremos como se soltaram as rédeas, não de um coração agradecido, mas de milhares de corações no dia em que o Dr. Baptista de Sousa deixou a ilha de S. Vicente, regressando à Metrópole, finda a sua missão militar. Isso aconteceu em 10 de Setembro de 1944.
Rezam as crónicas que naquele dia a cidade de Mindelo parou em peso para acompanhar o médico ao cais de embarque. O povo concentrou-se em massa formando alas entre a sua residência, na Praça Nova, e o cais de embarque, afluindo de todas as partes da cidade e seus arredores. As janelas se escancararam e os passeios estavam pejados de gente, algumas pessoas alcandoradas em pontos dominantes para lograrem uma observação mais vantajosa.
Valdemar Pereira refere o seguinte testemunho coevo que ouviu ao senhor Antoninho Santiago, funcionário dos CTT: ao sair da sua casa na Praça Nova para entrar no automóvel militar que o levaria ao cais, o médico foi imediatamente levantado e levado em ombros por figuras gradas da sociedade mindelense, ao que ele, modestamente, se procurou opor, mas sem êxito. Assim, em ombros parece ter sido conduzido até às imediações do cais, com o povo a soltar ensurdecedores e emotivos vivas ao doutor Baptista de Sousa e vivas ao “Engenheiro Humano” (1). As mulheres do povo derramavam lágrimas enquanto gritavam vibrantes palavras de saudação e apreço àquele que elas já tinham como um querido filho adoptivo da terra.
Cabo Verde > São Vicente > Midelo > 10 de setembro de 1944 >Baptista de Sousa acompanhado, na hora da despedida, pelas forças vivas do Mindelo e o povo da cidade. À sua direita, o Comandante das Forças Expedicionárias, Brigadeiro Nogueira Soares, e à sua esquerda, o Presidente da Câmara de S. Vicente. Foto cedida por Valdemar Pereira.
Cabo Verde > São Vicente > Midelo > 10 de setembro de 1944 > Baptista de Sousa levado em ombros no cais da despedida. [Ao fundo, o Hospital de São Vicente, fundado em 1890]. Foto cedida por Valdemar Pereira.
Nunca se vira coisa igual em Mindelo, nunca a cidade inteira se tinha comovido tanto na hora “di bai” (2). Depois da despedida, calcule-se a nostalgia que deve ter ficado a pairar na cidade. Ora, para um homem ser assim alvo de tanta unanimidade no reconhecimento e no aplauso à grandeza do seu mérito e da sua acção, unindo autoridades e povo anónimo, ricos e pobres, gente de todos os estratos e condições, é porque verdadeiramente invulgar foi o modo como exerceu o seu múnus profissional em prol da comunidade local, é porque excepcional foi ele na esfera da sua humanidade e civismo. E foi assim que uma onda de emoção se formou no alto mar da “morabeza” do povo de Mindelo, atingiu altura indescritível, galgou as ruas da cidade e foi inundar de saudade o cais da despedida.
A minha mãe contou-me que as sirenes de todos os navios fundeados no Porto Grande tocaram continuamente durante o embarque de Baptista de Sousa, só se calando quando o navio se perdeu da vista da imensa mole humana que o acenava incessantemente no cais e na orla do porto. O mar seria uma vez mais motor do destino luso e cabo-verdiano, esse mar que é lugar mitológico de encontro e separação; levou para longe aquele que se tornara um querido filho do povo do Mindelo. Ao tumulto da apoteose daquele dia 14 de Setembro de 1944 iria seguir-se, calcule-se, um vazio no coração da ilha, um sentimento de desamparo difícil de mitigar. O povo do Mindelo jamais esqueceria a atenção, a disponibilidade, a simpatia, a bondade e a proficiência com que Baptista de Sousa operou e recuperou tanta gente em estado clínico desesperado, salvando muitas vidas que, antes da sua chegada a Cabo Verde, estavam praticamente condenadas.
Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > 10 de setembro de 1944 > Eflúvios da emoção popular no cais da despedida de Baptista de Sousa. Foto cedida por Valdemar Pereira.
Cabo Verde > São Vicente > Mimdelo > 1944 > Baptista de Sousa na sua última despedida ao povo do Mindelo. Foto cedida por Valdemar Pereira
(Continua)
Tomar, 30 de Novembro de 2012
Adriano Miranda Lima
_________
Notas de AML:
(1) Nome que foi dado a uma morna em homenagem a Baptista de Sousa, da autoria de Jorge Monteiro.
(2) Hora de despedida.
________________
Nota do editor:
ÚItimo poste da série > 23 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10712: Meu pai, meu velho, meu camarada (34): Tropas expedicionárias portuguesas, em São Vicente, Cabo Verde, 1941/45, mostram solidariedade com o povo sofrido da ilha (Adriano Miranda Lima, cor inf ref, Tomar; cortesia de Praia de Bote)
Actualmente, tenho vindo a publicar num blogue designado Praia de Bote um conjunto de textos sequenciais e temáticos sobre o historial das Forças Expedicionárias a Cabo Verde. Chegou a altura, mais que propositada e oportuna, de, nesse âmbito, publicar naquele blogue um texto contendo uma síntese biográfica sobre o Dr. Baptista de Sousa (também ele um militar expedicionário), que em particular foca a sua acção em Cabo Verde (S. Vicente). É este mesmo texto que vos estou a enviar (em versão pdf e em versão word, para quem tiver dificuldade em abrir o primeiro). [Já publicado no dia 3 do corrente, no blogue Praia de Bote].
Devo dizer-vos que o que eu escrevi talvez venha a surpreender o leitor, tal como me surpreendi, porque não o esperava, face à constatação de que o Dr. Baptista de Sousa, além de distinto oficial médico, de cirurgião de alta craveira e grande humanista, era dotado de vincada consciência política, e implicitamente de verticalidade ético-moral, o que lhe causou transtornos na sua carreira militar. De notar que em Cabo Verde (S. Vicente) mostrou desassombradamente essa faceta, estribada no seu elevado sentido de deontologia profissional, ao recusar escrever nas certidões de óbito que a causa de muitas mortes não era outra senão a fome que grassava nas ilhas. Foi a partir daí que o antigo Regime político encontrou razões para começar a urdir um estratagema para lhe criar entraves na carreira militar, com inevitáveis consequências na sua actividade como médico cirurgião.
Contudo, o que mais impressiona no texto é a expressividade do carinho que o povo do Mindelo lhe dedicava, que atinge o auge na incontida emoção vivida na cidade no dia da sua partida para Lisboa. Procuro dar uma ideia disso no meu texto, por vários testemunhos recolhidos.
Leiam porque vale a pena. E, já agora, vão ao blogue Praia de Bote , quando sair o post referente a este texto, e deixem lá o testemunho da vossa própria emoção e o sentido da vossa gratidão a um Homem que tanto bem fez à nossa gente.
Faleceu em 1967, aos 63 anos de idade, em Lisboa [, com o posto de coronel]. Os crentes do Racionalismo Cristão em S. Vicente dizem que ele pertence ao Astral Superior e aí preside, mas isso já é assunto de um domínio que me ultrapassa. Mas seguramente que ele foi, sim, uma Grande Alma, de uma dimensão incomensurável, quase sobrenatural.
Um abraço
Adriano Miranda Lima
Nota do editor - No nosso blogue, Luís Graça & Camaradas, este texto será publicado em duas partes. Ele é também uma homenagem à geração dos nossos pais que, em Cabo Verde e noutros do império, estiveram em missão de soberania durante a II Guerra Mundial. (LG).-
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Dr. José Baptista de Sousa, um “anjo di céu” que pousou em S. Vicente
Texto: Adriano Miranda Lima [, foto à esquerda]
Fotos: Valdemar Ferreira [, foto à direita, a seguir]
Nos meus tempos de menino e moço, o nome do Dr. Baptista de Sousa era volta e meia aflorado em conversas dos mais velhos, tido como um “anjo di céu” que um dia pousara em S. Vicente. Mas nunca cheguei a saber ao certo de quem se tratava, nem sequer cuidando-me de indagar algo de concreto sobre a sua identidade. Dezenas de anos decorridos, e já no pós-independência, viria a saber que o novo hospital de S. Vicente recebeu o nome médico, mas nem isso espicaçou a minha curiosidade sobre os pormenores da sua identidade, ficando no entanto sensibilizado por ver assim consagrada a memória de alguém verdadeiramente querido na nossa terra.
Dr. Baptista de Sousa, com a bata branca de serviço. Foto colhida na net. Só há meia dúzia de anos, com a fruição da blogosfera, eu viria a saber quem era afinal esse personagem do mundo da medicina. Tudo se proporcionou através do blogue “Mindel na Coraçon”, editado por Jorge Martins e em que eu e outros conterrâneos participávamos desenterrando memórias e cruzando informações e opiniões. Chegou o dia em que veio a propósito o nome do médico. E então o conterrâneo Valdemar Pereira ], foto à direita], portador de uma fabulosa memória, não deixou os seus créditos por mãos alheias quando resolveu rebobinar a fita do tempo para recuperar factos relacionados com a passagem do Dr. Baptista de Sousa por S. Vicente, designadamente com a sua despedida em 1944. Tinha o Valdemar nesse tempo apenas 11 anos de idade, mas o que entretanto também ouviu dos mais velhos e guardou a sete chaves na memória consubstanciou uma importante informação, ainda por cima ilustrada com expressivas fotografias. E no-la trouxe, incólume e preciosa, para gáudio das gerações mais velhas, que revisitaram o acontecimento, e para grata surpresa das que lhe são posteriores.
Surpreendido, porque não o esperava, fiquei então a saber que Baptista de Sousa era médico militar, ao tempo capitão. Esta é que foi a minha maior surpresa, porque sempre o supus civil. Mas não, afinal Baptista de Sousa foi também um Militar Expedicionário, como outros já mencionados em episódios anteriores da minha narrativa sobre esta temática.
Justo é dizer que todos ficámos siderados com o relato feito por Valdemar sobre a homenagem que a população de S. Vicente prestou a essa figura da medicina à data do seu regresso à Metrópole, terminada a sua comissão de serviço integrado nas forças expedicionárias. A palavra do Valdemar foi de grande eloquência mas as imagens das fotografias do acontecimento por ele publicadas foram igualmente uma peça importante para se perceber o quanto era o médico idolatrado pelo povo de Mindelo. A ponto de se poder dizer que a emoção da despedida de Baptista de Sousa transborda-se das fotografias e tem o condão de tocar quem as observa.
Esclareço que, na sequência das revelações daquele blogue, decidi realizar uma pesquisa sobre a vida militar do Dr. Baptista de Sousa, recolhendo e trabalhando algum material que me permitiu, por sugestão do Valdemar e outros amigos, efectuar uma palestra sobre a sua biografia na Associação de Antigos Alunos de Liceu de Cabo Verde. Seria ocioso derramar aqui o conteúdo do que foram cerca de 30 páginas, mas aproveitarei algumas das suas passagens mais significativas para deixar aqui algo sobre o Homem que os cabo-verdianos nunca esqueceram, tanto que o seu nome está para sempre imortalizado na designação do novo hospital civil de S. Vicente.
José Baptista de Sousa ], foto à esquerda, retirada da Net pelo autor do texto]:
(i) nasceu em 2 de Março de 1904 na freguesia de Camões, em Lisboa, filho de José Augusto de Sousa e de Victoria Alves Baptista de Sousa.
(ii) De 1922 a 1927, fez o curso de Medicina na Faculdade de Medicina de Lisboa;
(iii) De 1928 a 1929, frequentou com aproveitamento, no Hospital Militar Principal, o Curso Técnico de Oficiais Milicianos Médicos e a seguir concorreu ao Quadro Permanente de Oficiais Médicos, tendo sido promovido a alferes em 1929;
(iv) Foi em seguida colocado em unidades do Exército e, depois, na Guarda Nacional Republicana, onde serviu de 1936 a 1942, tendo entretanto sido promovido a tenente em 1930;
(v) De realçar que numa das unidades militares, ainda oficial subalterno, foi louvado “pelo zelo, competência e dedicação manifestados nos diferentes serviços para que foi nomeado”; entretanto, concorreu ao internato de Cirurgia dos Hospitais Civis de Lisboa e fez o concurso para cirurgião dos mesmos hospitais;
(vi) Foi igualmente assistente na Faculdade de Medicina de Lisboa, ao mesmo tempo que frequentava o internato de cirurgia nos Hospitais Civis de Lisboa, tudo isso em acumulação com as suas funções militares, o que demonstra uma firme disposição de alargar e diversificar as experiências e desafios da sua actividade médico-científica;
(vii) É quando prestava serviço na Guarda Nacional Republicana que, em 17 de Janeiro de 1942, é nomeado para integrar as Forças Expedicionárias a Cabo Verde;
(viii) Deste modo, embarca em Lisboa a 16 de Fevereiro de 1942, no vapor Guiné, com destino a S. Vicente de Cabo Verde, onde desembarca a 22 do mesmo mês;
(ix) É já em S. Vicente que é promovido ao posto de capitão médico.
Baptista de Sousa vai viver em S. Vicente talvez uma das fases mais marcantes da sua vida pessoal e profissional, durante a qual deve ter encontrado o verdadeiro significado da carreira que abraçou e a sublimação dos altos valores humanos que eram parte integrante do seu ser. Ele é o médico-cirurgião dos militares mas é-o também dos civis, movido pelo seu impulso natural de pôr a sua ciência médica indiscriminadamente ao serviço de quem dela precisava.
Seria por demais exaustivo enumerar as vidas que o Dr. Baptista de Sousa salvou e as malformações físicas (casos de pé boto) de civis que reabilitou com a sua técnica cirúrgica. Fez uso de intervenções terapêuticas até aí pouco utilizadas em Cabo Verde por falta de meios adequados ou mesmo por insuficiência de pessoal médico qualificado. Mas tudo fazia sem olhar a quem, fosse rico ou pobre, militar ou civil, demonstrando uma total disponibilidade e uma dedicação e humanidade sem limites. Era director do Hospital Militar Principal de Cabo Verde e tinha como adjunto o capitão médico Lisboa, outro que deixou boas recordações em S. Vicente.
A acção do Dr. Baptista de Sousa durante quase 3 anos de permanência em Cabo Verde granjeou-lhe o mais alto prestígio e consideração quer entre o contingente militar quer, sobretudo, entre a população civil. Para se ter uma ideia do que alguém significa para o seu próximo, nada como a expressividade de um coração agradecido. E para se perceber isso, veremos como se soltaram as rédeas, não de um coração agradecido, mas de milhares de corações no dia em que o Dr. Baptista de Sousa deixou a ilha de S. Vicente, regressando à Metrópole, finda a sua missão militar. Isso aconteceu em 10 de Setembro de 1944.
Rezam as crónicas que naquele dia a cidade de Mindelo parou em peso para acompanhar o médico ao cais de embarque. O povo concentrou-se em massa formando alas entre a sua residência, na Praça Nova, e o cais de embarque, afluindo de todas as partes da cidade e seus arredores. As janelas se escancararam e os passeios estavam pejados de gente, algumas pessoas alcandoradas em pontos dominantes para lograrem uma observação mais vantajosa.
Valdemar Pereira refere o seguinte testemunho coevo que ouviu ao senhor Antoninho Santiago, funcionário dos CTT: ao sair da sua casa na Praça Nova para entrar no automóvel militar que o levaria ao cais, o médico foi imediatamente levantado e levado em ombros por figuras gradas da sociedade mindelense, ao que ele, modestamente, se procurou opor, mas sem êxito. Assim, em ombros parece ter sido conduzido até às imediações do cais, com o povo a soltar ensurdecedores e emotivos vivas ao doutor Baptista de Sousa e vivas ao “Engenheiro Humano” (1). As mulheres do povo derramavam lágrimas enquanto gritavam vibrantes palavras de saudação e apreço àquele que elas já tinham como um querido filho adoptivo da terra.
Cabo Verde > São Vicente > Midelo > 10 de setembro de 1944 >Baptista de Sousa acompanhado, na hora da despedida, pelas forças vivas do Mindelo e o povo da cidade. À sua direita, o Comandante das Forças Expedicionárias, Brigadeiro Nogueira Soares, e à sua esquerda, o Presidente da Câmara de S. Vicente. Foto cedida por Valdemar Pereira.
Cabo Verde > São Vicente > Midelo > 10 de setembro de 1944 > Baptista de Sousa levado em ombros no cais da despedida. [Ao fundo, o Hospital de São Vicente, fundado em 1890]. Foto cedida por Valdemar Pereira.
Nunca se vira coisa igual em Mindelo, nunca a cidade inteira se tinha comovido tanto na hora “di bai” (2). Depois da despedida, calcule-se a nostalgia que deve ter ficado a pairar na cidade. Ora, para um homem ser assim alvo de tanta unanimidade no reconhecimento e no aplauso à grandeza do seu mérito e da sua acção, unindo autoridades e povo anónimo, ricos e pobres, gente de todos os estratos e condições, é porque verdadeiramente invulgar foi o modo como exerceu o seu múnus profissional em prol da comunidade local, é porque excepcional foi ele na esfera da sua humanidade e civismo. E foi assim que uma onda de emoção se formou no alto mar da “morabeza” do povo de Mindelo, atingiu altura indescritível, galgou as ruas da cidade e foi inundar de saudade o cais da despedida.
A minha mãe contou-me que as sirenes de todos os navios fundeados no Porto Grande tocaram continuamente durante o embarque de Baptista de Sousa, só se calando quando o navio se perdeu da vista da imensa mole humana que o acenava incessantemente no cais e na orla do porto. O mar seria uma vez mais motor do destino luso e cabo-verdiano, esse mar que é lugar mitológico de encontro e separação; levou para longe aquele que se tornara um querido filho do povo do Mindelo. Ao tumulto da apoteose daquele dia 14 de Setembro de 1944 iria seguir-se, calcule-se, um vazio no coração da ilha, um sentimento de desamparo difícil de mitigar. O povo do Mindelo jamais esqueceria a atenção, a disponibilidade, a simpatia, a bondade e a proficiência com que Baptista de Sousa operou e recuperou tanta gente em estado clínico desesperado, salvando muitas vidas que, antes da sua chegada a Cabo Verde, estavam praticamente condenadas.
Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > 10 de setembro de 1944 > Eflúvios da emoção popular no cais da despedida de Baptista de Sousa. Foto cedida por Valdemar Pereira.
Cabo Verde > São Vicente > Mimdelo > 1944 > Baptista de Sousa na sua última despedida ao povo do Mindelo. Foto cedida por Valdemar Pereira
(Continua)
Tomar, 30 de Novembro de 2012
Adriano Miranda Lima
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Notas de AML:
(1) Nome que foi dado a uma morna em homenagem a Baptista de Sousa, da autoria de Jorge Monteiro.
(2) Hora de despedida.
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Nota do editor:
ÚItimo poste da série > 23 de novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10712: Meu pai, meu velho, meu camarada (34): Tropas expedicionárias portuguesas, em São Vicente, Cabo Verde, 1941/45, mostram solidariedade com o povo sofrido da ilha (Adriano Miranda Lima, cor inf ref, Tomar; cortesia de Praia de Bote)