segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10781: Notas de leitura (438): "A Curva do Rio", de V. S. Naipaul (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
Proponho, sem qualquer hesitação, que leiam esta obra-prima de V. S. Naipaul. Parece não haver dúvidas que se passa no ex-Congo Belga, a arquitetura do romance é uma perfeição, a linguagem do Prémio Nobel da Literatura de 2001 é contida, elegante, as caraterizações dos personagens são soberbas. Temos aqui a metáfora do homem novo africano e de um presidente déspota caprichoso, que todos temem. Estamos num país que procura arrasar os valores coloniais, a religião importada, mas que se transforma numa fábrica de corrupção em que as propriedades mudam de mão e toda a gente vive uma vida instável enquanto as execuções se multiplicam. Não será que ao lermos “A Curva do Rio” não nos vem à mente outros dramas africanos?

Um abraço do
Mário


A curva do rio

Beja Santos

É o retrato de uma África em pós-independência, um país algures. Há uma cidade junto a uma curva do rio e alguém, de origem indiana, de nome Salim, adquire um negócio, não tem medo da instabilidade. Ele descreve o que constitui o seu mister: “A minha loja parecia um campo de batalha. Tinha rolos de tecidos e de oleado nas prateleiras, mas a maior parte dos artigos estavam espalhados pelo chão de cimento. Eu sentava-me a uma secretária, a meio do barracão de cimento, de frente para a porta, com um pilar de cimento ao lado da secretária, pilar que me fazia sentir como que ancorado naquele mar de trastes – grandes bacias de esmalte, com os rebordos brancos e azuis, ou azuis com motivos florais; pilhas de pratos de esmalte branco, com papel de embrulho cor de lama entre os pratos, púcaros de esmalte e panelas de ferro e fogareiros a carvão e camas de ferro e baldes de zinco ou plástico e pneus de bicicleta e lanternas a pilhas e candeeiros a óleo com vidro verde, cor-de-rosa ou cor de âmbar”. Não foi fácil a Salim chegar à curva do rio, metade da cidade estava destruída, o antigo bairro europeu tinha sido queimado, naquela cidade proliferavam as ruínas.

V. S. Naipaul, Prémio Nobel da Literatura de 2001, tem uma escrita serena, extremamente elegante, descreve e contempla com cuidados desvelados, autênticas águas-fortes, todos os personagens, Zabeth, a estranhíssima vendedeira que percorre os confins da floresta ou o comerciante Nazruddin, que atraiu Salim àquela curva do rio numa altura em que os acontecimentos africanos começavam a suceder-se a um ritmo vertiginoso, com rebeliões e também massacres; Ferdinand, o filho de Zabeth, um africano que veste mal na sua pele as cargas genéticas; Metty, o criado de Salim, que procura inserir-se na sociedade africana a todo o custo, e que se irá revelar um traidor; o Padre Huismans que adora a escultura africana, e que irá ser massacrado. Mas há mais, muito mais participantes nesse país que sofrera uma revolução e depois uma guerra civil e que agora tem um novo presidente que manda construir, ali na curva do rio, a Cidade Nova. O presidente mandou executar os responsáveis do exército que vinham do período colonial, o Grande Chefe possui muito dinheiro e pode ter um exército de mercenários, o Exército de Libertação, ao seu serviço. Aquela cidade na curva do rio era um microcosmos mas também o espelho convexo de todas as aflições e turbamulta em que vivia África, nesse arranque das independências dos anos 1960. É neste ambiente que mergulhamos no assombroso romance “A Curva do Rio”, de V. S. Naipaul, em boa hora reeditado pela Quetzal Editores.

A Cidade Nova parecia um empreendimento faraónico, o presidente, que vivia na capital, deu luz verde para que na curva do rio se fizessem construções faustosas, o presidente queria mostrar uma nova África. “A Cidade Nova fora rapidamente construída; mas a sua decadência, sob o sol impiedoso e a chuva persistente, também foi rápida. Depois da primeira estação das chuvas, muitas das árvores que haviam sido plantadas na larguíssima avenida principal acabaram por definhar, com as raízes inundadas, apodrecidas por tanta água”. Havia pois que encontrar rapidamente uma utilidade para aqueles edifícios: “A Cidade Nova transformou-se numa cidade universitária e num centro de investigação. O edifício destinado às conferências passou a ser um instituto politécnico para o povo da região, e outros edifícios foram transformados em dormitórios e habitações dos professores e funcionários”. Surgem novas tensões, aqueles alunos parecem pugnar por um nacionalismo africano, desconfiam das teorias ocidentais, das religiões importadas. Chega um amigo de Salim, um professor da Cidade Nova, ele vai-lhe mostrar a cidade que se via em poucas horas: “Havia o rio, com um passeio marginal meio arruinado perto do porto. E havia o porto; os estaleiros com barracões de chapa de ferro ondulada, cheios de peças de máquinas enferrujadas, e a jusante, a catedral em ruínas, de uma grandiosidade maravilhosa e com um ar antigo, como se fosse uma catedral da Europa – mas só se podia admirá-la da estrada, porque o mato à volta estava muito cerrado e o local era famoso pelas suas cobras. Havia as praças esburacadas com os seus pedestais danificados e sem estátuas; os edifícios oficiais da época colonial em avenidas orladas de palmeiras…”. Surge um guru do presidente, mas que anda angustiado, cheio de dúvidas quanto à identidade africana e os sacrifícios ditados pelo progresso que era a marca de água das potências coloniais do passado.

Como numa tragédia grega, sente-se que caminhamos para uma inevitabilidade, guerra feroz decretada por aquele enérgico presidente transformado num ditador absoluto. O presidente discursa às massas: “Os temas não eram novos: os sacrifícios que era preciso fazer; um futuro radioso; a dignidade da mulher africana; a necessidade de fortalecer a revolução, por muito impopular que ela fosse entre os negros das cidades que ansiavam acordar um dia transformados em brancos; a necessidade que os Africanos tinham de ser Africanos, de retornar, sem vergonha, aos seus hábitos democráticos e socialistas, de redescobrir as virtudes do regime alimentar e dos remédios dos seus avós, de não correr atrás de coisas como conservas e vinhos importados como se fossem crianças; a necessidade de vigilância, de trabalho e, acima de tudo, de disciplina”. O presidente castigava os desobedientes, sobretudo os Jovens Guardas da região, foram banidos e mandados para o mato. Aquela cidade na curva do rio estava repleta de fotografias do presidente, cresciam as explosões de violência, sucediam-se os motins. Então, o Grande Chefe mandou punir os desobedientes. Salim vai provar humilhações quando regressa de Londres, a cidade na curva do rio está em crescente agitação, os haveres dos brancos foram nacionalizados, cresce a corrupção e o livre arbítrio. “Havia um sentimento generalizado de que o descalabro se aproximava a grande velocidade, de que o país cairia muito em breve num caos tremendo; e algumas pessoas comportavam-se, por isso, como se o dinheiro tivesse perdido já o seu valor”.

Salim mete-se nalguns negócios escuros, é denunciado por Metty, é levado preso e mais tarde liberto por Ferdinand, agora um servidor do Grande Chefe. Na prisão, professores com botas enormes e bastões, obrigam e recorrem à brutalidade para que os jovens repitam os versos dos hinos em louvor do Grande Chefe. Mas há um grande medo que assola os carrascos. “Aqueles pobres rapazes eram também vítimas das palavras escritas no muro branco da cadeia. Mas, pelas suas expressões, podíamos concluir que os seus corações, mentes e almas, não estavam presos. Os guardas, enfurecidos, também eles africanos, pareciam compreender isso mesmo, pareciam compreender que nunca conseguiriam dominar verdadeiramente as suas vítimas”. Aproxima-se a matança e Ferdinand prevê os próximos tempos, e di-lo a Salim: “Quando o presidente vier, vai ser horrível. Ao princípio, pensaram em matar só gente do Governo. Agora, o Exército de Libertação diz que isso não chega. Ao princípio, pensaram em fazer tribunais do povo e matar gente nas praças. Agora dizem que têm de matar muito mais gente, e que todos vamos ter de manchar as mãos de sangue”. Salim consegue partir, não se sabe para onde, viaja no rio num vapor a caminho da capital. Algumas canoas procuram seguir o vapor, os desesperados querem fugir à maré dos acontecimentos. Há tiroteio. Mas o vapor prosseguiu o seu rumo e sai da zona de batalha, já não está na curva do rio.

Dizem os especialistas que o país é o Congo, o Grande Chefe era Mobutu e a cidade Kisangani. Pode ser. Mas quem não reconhece outro país, outro grande chefe, outra cidade na curva do rio, algures em África?
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10771: Notas de leitura (437): "Amílcar Cabral, Essai de biographie politique", por Mário de Andrade (Mário Beja Santos)

7 comentários:

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Sem dúvida que, pela amostra, a analogia salta imediatamente à vista.
É preciso colocar os nomes sem qualquer espécie de rodeio: parece mesmo a Guiné!
E, em certa medida, trata-se de uma analogia que pode ser também aplicada a outras paragens, africanas e não só.
Será essa a (triste) condição humana? A de que é 'impossível' escapar à lógica predadora do 'poder'?
Quero pensar, fortemente, que não, que há esperança, que há outras soluções, que é possível encontrar outros caminhos.
Abraço.
Hélder S.

antonio graça de abreu disse...

Muito bem, Mário Beja Santos!
São estas recensões que enriquecem o blogue.

E sabes que não tenho admiração por ti (pagas-me da mesma moeda, jamais neste blogue uma recensão ao meu "Diário da Guiné"!...).
Mas és um homem inteligente.
Tenho aprendido muito com o Mário Beja Santos, por vias enviesadas, retorcidas como intestinos de carneiro, planas e limpas como o simples brilho de um olhar.

Alguma admiração do

António Graça de Abreu

Antº Rosinha disse...

Penso que mais uma vez, MBS faz o retrato fielmente.

Se assim é, este escritor vê África e os Africanos como "uma gente que está para aí" uns coitados, desgraçados.

Nem têm nome, são todos iguais, vivem à volta do Salim, que não é Africano.

Também era assim que os Suecos das Nações Unidas viam o ex-Congo Belga quando foram para lá mandados pelo Hammaskjoeld.

Assim como os jornalistas e os capacetes azuis indianos e marroquinos, enviados pelo presidente da ONU, tiravam muitas fotografias.

Estavam a ajudar "aqueles coitados"
que os Belgas tão mal trataram.

A ajuda era igual à ajuda deste escritor, que é "derrubar" gente que está na pior situação.

Tanto faz que fosse no ex-Congo Belga, como em qualquer país africano, menos na terra de Mandela e Quénia e pouco mais.

JD disse...

Parece a Guiné, parece Angola e parece Moçambique; só que a Guiné compacta mais os acontecimentos, e a ferocidade, o delírio, a desvalorização do valor da vida, parecem atingir proporções mais gravosas. Essas ditaduras que resultam da capacidade de dar mais tiros e causar mais mortes nos outros lados, são manifestações frequentes das ditaduras extravagantes do continente africano, enquanto na Europa, as ditaduras assentam em bases mais científicas da organização social e do desenvolvimento do conformismo. Começam em casa onde se ensinam as boas maneiras; desenvolvem-se na escola com a assimilação de regras de veneração e obediência ao estado, como Salazar tão bem exemplificou; prosseguem na catequização religiosa com a "inseminação" da ideia de pecado, do arrependimento, da confissão, e da reabilitação; que prepara os jovens para a aceitação natural das diferenças perante as dificuldades da vida, da aparente organização social, no que respeita a oportunidades de educação, de acesso à saúde e aos tribunais, das relações laborais, enfim, de uma sistematização organizacional dominada pelo medo da impotência, da exclusão, da incapacidade para cada um bastar-se a si próprio, e do necessário acesso a oportunidades, entre um vasto leque de situações que conduzem à aceitação passiva dos diferentes elementos opressores, que se apresentam como generosidade do sistema que, quando contrariado, pode reagir com arrogância e brutalidade, e dão cobertura a inúmeros crimes contra a humanidade, num conceito de mafiocracia, sancionado por processos eleitorais.
"Porque é que se pensa em conquistar mais terras, se os homens ainda não se conhecem a si próprios?" Esta questão que não corresponde 'ipsis verbis' ao que ouvi, foi atribuída a Jesus. E Ghandi referiu algo como isto: 'se queres mudar o mundo, conhece-te e muda-te a ti mesmo'.
Eis um tema que pode constituir um bom desafio às nossas capacidades de ponderação e organização, isto é, de passar da teoria à prática. Isto é relativo, não é?
Abraços fraternos
JD

Bispo1419 disse...

Comprei este livro, penso que logo na altura da sua edição pelo Círculo de Leitores (1990).Fiquei marcado pela sua leitura e, muito mais ainda pela sua frase inicial, frase esta que nunca mais esqueci:
"O mundo é o que é; os homens que não são nada, que se permitem tornar-se nada, não têm lugar nele."
Espero que esta recensão do camarada Beja Santos leve à leitura de "A Curva do Rio". A mim acordou-me para tal, vinte anos depois da primeira leitura. De vez em quando dava por ele na estante e pensava no seu conteúdo mas não mais o abri. Irei fazê-lo, agora com imensa curiosidade quanto ao impacto que irei sofrer, hoje, comparando-o com o que tive aquando da primeira leitura.

Bispo1419 disse...

Desculpem a semi-identificação acima: o "Bispo1419" sou eu.
Um abraço
Manuel Joaquim

Anónimo disse...

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