Do Ninho D'Águia até África (34)
Aquela garotada
Quase sempre ao domingo, e quando estava de folga e livre das suas tarefas, o Cifra dava o seu passeio habitual pela tal aldeia, com casas cobertas de colmo que existia próximo do aquartelamento. Parava aqui e ali, já conhecia alguns habitantes, e as crianças andavam sempre em seu redor, pois sempre trazia no bolso rebuçados que comprava na loja do Libanês.
Mas adiante, pois já nos estamos a desviar do principal, que era aquela garotada.
As crianças tocavam em tudo o que reluzisse da farda do Cifra, como por exemplo a fivela do cinto, os emblemas da boina, os ilhós das botas, os botões, o relógio de pulso, que algumas vezes usava, e faziam mesmo guerra, entre elas para andarem em redor do Cifra. Numa dessas vezes, estando elas em pleno convívio, e com alguma algazarra própria de crianças, de repente, desaparecem, começando a correr, cada uma para junto da sua “morança”.
O Cifra admirado com esta situação, abre os braços e pergunta a uma das “bajudas” que estavam presentes, qual o motivo desta atitude, e uma logo lhe respondeu, numa linguagem que se compreendia perfeitamente:
- O lobo do mato que come criança, anda por aí!
Fazendo um gesto em círculo com o braço, e o lobo do mato, a que se referia a “bajuda”, era uma hiena que há algum tempo andava a rondar a aldeia, e diziam que já tinha levado um bebé a uma mãe menos cautelosa.
O Cifra, como não tinha ouvido nenhum ruído, nem nenhuma movimentação em seu redor, ficou admirado como era possível as crianças, foto com o Cifra em cima, terem dado pela presença da referida hiena. Ainda hoje não sabe, só tem uma explicação, talvez o olfacto ou o instinto natural de protecção que um ser humano tem, mas só sensível em alguns. Era mesmo uma hiena, pois passados uns minutos ela passou um pouco ao longe, com o rabo curto, caído e quase entre as patas traseiras.
O Mamadú, um caçador que costumava passar as madrugadas esperando que os animais viessem beber a uma pequena bolanha que havia para os lados de Porto Gole, onde caçava as suas prezas, um dia apresenta-se no aquartelamento, dizendo:
- Pessoal vai buscar lobo do mato que está morto e não come mais criança!
E lá foi a caminho da casa do Libanês, levando outra preza que era uma gazela morta, pendurada à tiracolo, pela levou uma nota de cinquenta pesos, embrulhadinha e metida na sacola do seu farnel, onde não faltava coca que mascava quase vinte e quatro horas por dia.
(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10773: Do Ninho D'Águia até África (33): O Grupo do Cifra (Tony Borié)
2 comentários:
Ói Tony,
Se te parecer uma troca de galhardetes, arreda a avaliação, porque já antes o referi, os teus quadros sobre a Guiné são de grande vivacidade e humanidade, valorizados desde quando introduziste as imagens. Hoje, a propósito da criançada, e com um desvio pelas bajudas, quem vai avaliar-te com rigor, vai ser o Chico, um puto atento às manobras militares.
Gostei do flagrante da hiena, o que muito me surpreende, pois é um animal gregário, que costuma deslocar-se em família, ou em pequenas alcateias, pelo que essa seria a resistente de algum grupo dizimado, ou andaria perdida. A aproximação à aldeia será compreensível, pois andaria em busca de alimento (cão, galinha, cabrito). A guerra terá provocado a debandada dos animais autóctones para zonas mais pacíficas e além fronteiras.
Um abraço
JD
Caros amigos JDinis e TBorié,
O Cifra, que era bom soldado mas mau guerrilheiro, pela sua aparência fisica, é muito parecido com o meu amigo Almeida comando, a quem já dediquei aqui algumas palavras de estima e de apreço com muita saudade.
Mas o Almeida, no ímpeto brutal da sua bravura desmedida e louca, em parte forzada nas oficinas do regime colonial, não namorava com guerrilheiras, se calhar, matava-as, a bem da nação.
Por culpa dos criptos como o Cifra, durante muito tempo, na minha aldeia, deixaram de existir pessoas que respondiam pelo nome de Alfa, os vivos fugiam, os mortos ficavam inquietos e os recém-nascidos recebiam outros nomes, tudo porque nas suas rádios de recados secretos, passavam horas a fio a chamar: Alfa..., Alfa bravo... alfa assado, alfa cozido que, a dada altura, os indigenas, não sabendo do que se tratava e desconfiados que o Alfa X estivesse metido numa grande alhada com o regime e seguindo o bom principio de que mais vale prevenir do que remediar, simplesmente mandaram todos os Alfas para o Senegal e baniram este nome da sua lista de baptizados, não fosse o diabo tecê-las.
Um grande abraço aos dois,
Cherno Baldé
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