sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10798: Notas de leitura (439): "Dona Berta de Bissau", de José Ceitil (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2012:

Queridos amigos,
Acaba de ser dado à estampa o livro que o José Ceitil tão generosamente preparou para homenagear a Avó Berta.
Há quem já proponha que se faça uma petição para que a Pensão Central seja cuidadosamente preservada como espaço de encontro de todos aqueles que foram, estão e continuarão a vir à Guiné guiados pelo ideário de ver a Guiné reconciliada e a progredir. A Pensão Central é o exemplo mais acabado da gestão comandada pelo coração: Dona Berta perdoou muito calote, por artes mágicas, nos tempos mais negros em que na Guiné tudo faltava, pôs sempre comida saborosa na mesa dos seus clientes, sempre uma sopa, um prato de peixe e de carne, depois doce ou fruta, preço mais abordável não havia na Guiné. A Pensão Central acolheu aquela juventude plena de generosidade, constituída maioritariamente por portugueses que vieram cooperar e que ainda hoje ganham saudades do tratamento da Avó.
Dona Berta é a figura mais eloquente para exemplificar que um porto de abrigo como a Pensão que ela criou e geriu com tanta intensidade marca os povos e mostra como a Guiné pode desenvolver-se pelos valores da paz e de hospitalidade.

Um abraço do
Mário


D. Berta de Oliveira Bento, a homenagem merecida

Beja Santos

A Pensão Central tem sido, há várias décadas, o porto de abrigo de todos aqueles, das mais desvairadas proveniências, arribam a Bissau seja para trabalhar seja em romagem de saudade. Uma afabilíssima mulher pôs em andamento, comandou e recebeu todos os seus hóspedes com um sorriso tão doce que ninguém jamais o esqueceu. Agora, no ocaso da vida, José Ceitil, que beneficiou do acolhimento da Pensão Central, escreveu o livro “Dona Berta de Bissau”, que acaba de ser publicado pela Âncora Editora. Ceitil traça a trajetória desta rapariga cabo-verdiana que aos 24 anos se deslocou a Bissau para acudir uma irmã mais velha, criou laços tão fortes com guineenses, famílias de militares e cooperantes, foi tão prodigiosa a tratá-los e a alimentá-los nas circunstâncias mais dramáticas que se percebe perfeitamente que nunca desejou sair da sua tão amada Guiné. O acervo de depoimentos polariza-se neste afeto e nesta doce recordação que tão estimável senhora, uma verdadeira sinhara do século XX, perdura no coração de milhares de pessoas.

Ceitil teve a gentileza de me pedir um depoimento sobre os laços que com ela estabeleci e é com muita alegria por haver tão sentidamente homenageada que aqui transcrevo o que por ela sinto, sentimento que jamais me abandonará, tal e tanta é a minha gratidão pelo que ela fez por mim:

“A D. Berta e a sua pensão são instituições internacionais, unem continentes, são pessoa acolhedora e espaço residencial único, há décadas, ali viveram participantes e figurantes de várias guerras, investigadores, cooperantes, gente abnegada que veio cheia de sonhos, à espera de ver a Guiné-Bissau florir.
A D. Berta entrou na minha vida quando casei, em Abril de 1970, em Bissau. Passámos, a Cristina e eu, uns dias em casa dos meus padrinho Elzira e Emílio Rosa, a seguir a alguns dias no Grande Hotel onde, a pretexto da chegada de personalidades distintíssimas, fui avisado quase em cima da hora que tínhamos de sair no dia seguinte. No meio da perplexidade, alguém me recomendou: “Olha, vamos daqui até à Pensão Central, é ali ao lado da Catedral, é certo e seguro que a D. Berta vai desenrascar a situação”. E desenrascou mesmo.

Para quem não sabe, a Pensão Central resistiu à guerra de 1963-1974, esteve sempre acima de todos os golpes de Estado, guerras civis e estados de sítio. Mesmo quando houve períodos de escassez de alimentos, o elementar não faltava na Pensão Central. Com a independência, a Pensão Central tornou-se um espaço de livre-trânsito para todos os cooperantes. Quando ali aterrei em 1991, tanto podia almoçar com holandeses ligados a projetos de saneamento de água em Canchungo como peritos do Banco de Investimentos de África, como jantar com os portugueses da Medicina Tropical ou italianos do Fundo Monetário Internacional. Naquele tempo ainda era possível atravessar meia Bissau a pé à noite, despedia-me da D. Berta e rumava para as instalações da CICER, era uma bela caminhada de quase dois quilómetros. Às vezes o Delfim Silva dava-me boleia, era encontros agradáveis sobretudo em noites sem lua. A D. Berta nunca me saiu do coração, estou em crer que nunca saiu da recordação de ninguém que comeu ou dormiu naquela pensão. Uma vez, já em Dezembro de 1991, estava eu desesperado com a inércia a que chegara o projeto que me levara à Guiné (criação de uma comissão interministerial de defesa do consumidor, havia decisão do presidente Nino Vieira, o ministro português Carlos Borrego criara uma linha de financiamento para as instalações, eu conseguira encontrar uma técnica para coordenar a comissão com o perfil adequado, mas nada mexia, as nomeações não se faziam, não era possível obter a concordância para o início das obras das instalações, sitas no antigo Quartel General), e a D. Berta vendo-me à varanda abatido, chegou ao pé de mim e com voz consoladora, disse-me: “Vá lá, pense na Guiné, que o trouxe cá de novo, pense no bem da nossa gente, o que não sair perfeito hoje dar-lhe-á saudades para voltar mais tarde...”. E o meu estado de espírito mudou. Infelizmente, nada avançou, fizeram-se ainda uns programas televisivos, creio que tudo caiu no olvido.

A D. Berta era tida como uma santa, alegrou a vida de muita gente, transformou o espaço anónimo de uma pensão numa casa de vínculos perduráveis. Um dia, escrevi o seguinte: “Só espero que alguém transmita à D. Berta que eu estou pronto para voltar, receber dela um beijinho, sentar-me à varanda, ouvir os sinos da Catedral, o bulício da Avenida Amílcar Cabral, sentir os cheiros do velho mercado, talvez a maresia que vem lá debaixo, do Pidjiquiti. Então, vou fechar os olhos e regressar a 1970, ali a dois passos vou ver entrar alguém que me irá falar num massacre que ocorreu nesse dia no chão manjaco, subo até ao cinema da UDIB, o passeio findará no Museu e no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, onde juntei tantos elementos para os meus livros. Depois abro os olhos, vou sorrir para a D. Berta e dizer-lhe como ela está sempre bonita, ninguém com aquele sorriso poderá envelhecer ou ser esquecido. E, claro está, iremos conversar, ela vai querer saber o que vim fazer à Guiné. Tenho quase a certeza que a vou emocionar com a Viagem do Tangomau. Nada poderá ser impossível para a D. Berta, mesmo ter um tangomau como hóspede...”.

Pois o sonho aconteceu, a roda da fortuna caiu para o meu lado. Estava a viver infernizado a escrita de A Viagem do Tangomau, descobri que tinha que voltar à Guiné. E voltei mesmo. A 18 de Novembro de 2010, rompia o dia, entrei pela Pensão Central e perguntei pela Avó Berta. Pouco depois ela surgiu atrás do seu andarilho. Há emoções que não se esgotam nas palavras. Soluçámos naquele abraço estreitado, houve até uma chuva de críticas, uma censura sentida, não lhe dera conhecimento da chegada, eu devia saber muito bem que era ali que devia ficar, nunca em pensões alheias ou hotéis. Quis saber tudo sobre o meu trabalho, o que me trazia à Guiné. Com aquela voz meiguinha de sempre, perguntou-me se eu tinha esquecido a canja de ostra, fui veemente: “Não se come melhor canja de ostra que na Pensão Central, a Avó sabe muito bem”. E determinou: “Pois amanhã vem cá comer sopa de ostra, é em sua honra”. Naquele dia acabei por almoçar lá, fui levado pelo embaixador António Ricoca Freire. Cumprida a minha missão em Bissau, parti para a região de Bambadinca, mas a Avó Berta assegurou-se dos seus direitos: “Quando vier, ficará aqui até partir, por favor não discuta mais”.

Assim aconteceu. Tivemos serões inolvidáveis, fiquei a saber toda a história da Pensão Central, do princípio até ao presente. O relato da Avó foi impressionante, não havia ali uma réstia de farronca ou sobrançaria, ela viveu o que tinha a viver, a pensão transformara-se na obra da sua vida. Sei muito bem que quando estiver a ultimar o final do romance irei sentar-me na varanda do segundo andar da Pensão Central, anoiteceu, chegou o lusco-fusco tropical, ouve-se lá em baixo o caminhar tonto das viaturas a fugirem aos buracos da Avenida Amílcar Cabral. Desço para agradecer tudo à Avó, as suas deferências e as suas repetidas provas de generosidade. Ela pede-me que lhe enviei uma imagem da Nossa Senhora de Fátima, o que irá acontecer, o portador será o embaixador António Ricoca Freire. Depois ainda telefonei à Avó para lhe pedir que recebesse a investigadora alemã Tina Kramer. E a Avó disse-me: “Venha depressa, estou doente, quantos mais amigos aqui tiver à minha volta, melhor”.

Tenho que escrever A Viagem do Tangomau depressa. E preciso que Deus me ajude dando-me ideias para um romance em que eu volte à Pensão Central, àquele universo de muitas reconciliações, aquela permanente casa de paz que aspiramos para toda a Guiné.”

Reencontro com a Avó Berta, na manhã do dia 18 de Novembro de 2010, ficámos assim depois de uma grande choradeira
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10781: Notas de leitura (438): "A Curva do Rio", de V. S. Naipaul (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Tony Borie disse...

Olá Mário.
Como descreves estas passagens, absorvi tudo, fiquei à espera de mais. Eu no meu tempo, de 1964 a 1966, não me lembro da pensão Dona Berta, pois as minhas fugidas a Bissau eram de longe a longe, e não necessitava de pernoitar, comia numa tasca, que chamavam, do Transmontano, e regressava a Mansôa, mas fiquei a conhecer agora pelas tuas descrições, obrigado.
Espero ler mais textos teus, com descrições das tuas viagens pelo território, nos últimos anos. Aprecio os pormenores como descreves os teus passos, nada te escapa!.
Um abraço, Tony Borie.

Unknown disse...

Suponho que a maioria dos leitores e camaradas do blogue sabem que a D. Berta Bento (avó Berta ou tia Berta) faleceu ontem. O corpo está, desde esta tarde na Basílica da Estrela. Amanhã, Sábado, pelas 10:30, terá lugar a missa de corpo presente e às 11:00 o corpo segue para o crematório da Póvoa de Santa Iria.
A minha mulher e eu próprio vivemos com a D. Berta alguns momentos dramáticos, que não podemos esquecer, no decurso da guerra civil de 98-99, sobretudo a sua obstinada recusa em ser evacuada para Portugal, aliás compreensível para quem viveu toda a vida em Bissau.
Com grande pena nossa, não podemos ir ao funeral, uma vez que nos encontramos em Espanha de visita a familiares próximos.
É, pois, com pesar que não podemos despedirmo-nos pela última vez dessa "mulher grande" ou Grande Mulher, a quem os militares, os cooperantes, os diplomatas, os viajantes de passagem,
portugueses e estrangeiros tanto devem, uma vez que a pensão Central era um local não só de boas e generosas refeições caseiras, mas de são convívio e onde se forjaram muitas amizades.

Francisco Henriques da Silva
ex-Alf. Mil. de Infantaria - C.Caç 2402 e ex-embaixador em Bissau (97-99)