Capa e excertos do "Diário de Lisboa", do dia 16 de junho de 1941... Fonte: Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivos >
Diário de Lisboa / Ruella Ramos (Com a devida vénia...)
Citação:
(1941), "Diário de Lisboa", nº 6668, Ano 21, Segunda, 16 de Junho de 1941, CasaComum.org, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_24964 (2017-2-15)
1. Era uma segunda feira e o verão parece que estava a chegar... Os homens do RI 11, os expedicionários do 1º Batalhão, partiam para a Cabo Verde, no vapor "João Belo" (*)...
Nem uma única notícia nos jornais!... Ou pelo menos no vespertino "Diário de Lisboa", não alinhado com o regime... Presume-se que este "black out" noticioso sobre movimento de tropas portuguesas fosse justificado por razões de segurança, mais do que óbvias... No entanto, o embarque era público, realizado à luz do dia, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, e acompanhado por centenas de familiares e amigos dos expedicionários...
O mar, e em especial o Atlântico Norte, estava infestado de "tubarões"... Os submarinos alemães eram o terror dos mares... Portugal, país neutral, acautela a defesa dos Açores e de Cabo Verde, arquipélagos potencialmente cobiçados tanto pelos Aliados como pelas potências do Eixo, Alemanha e Itália (que tinha construído uma aeródromo justamente na ilha do Salvo, tendo estado operacional até à entrada na guerra, já em 1940, em 10 de junho)...
A edição deste vespertino tem então 8 páginas, o que se deve entender como um sinal do racionamento de matérias-primas, alimentos e outros produtos... Toda a primeira página desta edição é dedicada ao conflito que devasta a Europa e já se estendia ao norte de África, ao Mediterrâneo e ao Atlântico...
A guerra estava longe e, ao mesmo tempo, perto de nós.. Nas imediações de Moura, no Alentejo, na véspera, 15/6/1941, um bombardeiro alemão, quadrimotor [, um Focke-Wulf 200 Condor, o "carrasco do Atlântico"!...] despenha-se e morre a sua tripulação, depois de se ter liberto da sua carga mortífera, perto da Amareleja...
O funeral das vítimas realizava-se em Moura, no dia seguinte, ao fim da tarde, com a presença de representantes políticos, diplomáticos e militares da Alemanha. [Sobre
este caso ver aqui um dossiê organizado pelo Hotel de Moura]
2. Nesse mesmo dia (**) partia, do cais do Ginjal, em Almada, para a Terra Nova e Groenlândia, com escala nos Açores, o transporte-hospital Gil Eanes (, era assim que se chamava), com regresso marcado para outubro de 1941.
Na altura ainda pertencia à marinha de guerra e era comandado pelo comandante Zolá da Silva, capitão de fragata. Por sue turno, Henrique Tenreiro, delegado do Governo, o "patrão das pescas", era uma figura sempre presente nestas cerimónias de despedida.
A missão do "Gil Eanes" era fundamentalmente a da assistência sanitária à rota bacalhoeiro e aos seus bravos marinheiros e pescadores que trabalhava a bordo em condições duríssimas. Levava também algumas centenas de toneladas de isco, bem como centenas de bidões de gasóleo para os lugres da frota branca, peças sobresselentes e outros materiais de apoio....
Não se trata do último navio-hospital, com o mesmo nome, construído nos Estaleiros de Viana do Castelo em 1955... Estamos a falar do "velho Gil Eanes", um dos navios alemãos apresados no Tejo em 1916:
Originalmente tinha, pois, nome alemão: "Lahneck", sendo propriedade da companhia alemã "Deutsche Dampfschiffarts GeselIschaft Hansa". Tinha a capacidade para 2000 toneladas de carga e para navegar a 10 a 11 nós, media 84.79 m de comprimento e dispunha de um potente motor de 2000 hp.
(...) " Foi um dos navios alemães requisitados pelo Governo em 23 de fevereiro [de 1916], em consequência do que a Alemanha nos declarou guerra a 9 de março. Dias depois, era rebaptizado. Foi-lhe posto o nome dum daqueles homens que revolucionaram a história e que só sabemos que era algarvio e se chamava Gil Eannes. Mas foi ele que, numa simples barca, ousou desafiar os medos medievais e passar além do Bojador.
"E, do lugar aonde 'passou além da dor´, como diz o Poeta, apareceu ao Infante, não com uma espada sangrando nem com um grupo de cativos, mas com um ramo de flores, que os portugueses dedicaram à Padroeira de África e se ficaram chamando 'rosas de Santa Maria'. Foi 'Gil Eannes' que este alemão aportuguesado se passou agora a chamar". (...)
Andou inicialmente no transporte de tropas durante o resto da I Grande Guerra, sendo depois fretado para os Transportes Marítimos, e servido na carreira dos Açores. Até que surge a ideia de o adaptar a navio de assistência à frota da pesca do bacalhau nos bancos da Terra Nova.
(...) "Na Holanda recebeu as modificações necessárias, e a 16 de maio de 1927 partia, enfim, para a Terra Nova, donde regressava a Lisboa em 14 de novembro.
"Estávamos, porém, já sob novo regime: o da Revolução do 28 de Maio, donde sairia o Estado Novo. Ora, não obstante a situação de infra-humanidade em que viviam e trabalhavam os nossos pescadores nos bancos da Terra Nova, as prioridades eram outras. E o Gil Eannee foi empregue no transporte de presos [políticos, e nomeadamente em 1928, para Angola e Guiné).
Em 1929 e 1930 faz a sua 2ª e 3ª viagem à Terra Nova. Só voltará lá em 1937...
(...) "A situação dos nossos pescadores era aflitiva. As doenças e mortes pairavam como mal permanente. Os portugueses eram até, por isso, alvo das maiores atenções por parte da população de St John's e dos pescadores esquimós que nutriam pelos nossos compatriotas uma grande solidariedade, em grande parte por compaixão.
"Ao mesmo tempo, o regime apoiava os armadores no sentido de incrementar a pesca do bacalhau nos bancos da Terra Nova e já também da Gronelândia, a fim de nos tomar pelo menos auto-suficientes num produto de intensa procura no espectro do consumo nacional. Foi então que o Gil Eannes, integrado na Marinha de Guerra, passou a dar apoio regular aos nossos pescadores do bacalhau, até 1941.
"Foi, depois disso, desarmado, em 1942, data em que foi entregue à Sociedade Nacional de Armadores do Bacalhau, a cujo serviço efectuou 27 viagens, 14 das quais de comércio e assistência. Quando a prestava, fornecia à nossa frota bacalhoeira água, óleo, carvão, isco, sal e alimentos. Possuía a bordo um serviço médico, transportava correio e expedia e recebia telegramas.
"Entretanto, com a viragem do meio século, Portugal beneficiava da crise das economias europeias do após-guerra e, muito embora não tenha entrado na II Guerra Mundial, também beneficiava dos subsídios para reconstrução nacional e entrava na OCDE. Ora, o regime, pela via corporativa, desenvolvia uma política social de assistência voltada para os problemas dos trabalhadores e orientando-se pela doutrina social da Igreja que dizia professar..
"Foi por isso que, por esforços conjugados do Ministério da Marinha e do Grémio dos Armadores dos Navios da Pesca do Bacalhau, se decidiu substituir o velho Gil Eannes, ronceiro, esclerosado e sempre vestido de empréstimo nas roupas de navio de assistência, por um navio hospital dotado de outros meios, inclusivamente médicos, de assistência, com enfermarias, sala de tratamentos, gabinete de radiologia, bloco operatório, capela, e até salas de lazer, para prestar uma assistência médica compatível com a dignidade humana dos nossos pescadores do bacalhau." (...)
O velho transporte-hospital "Gil Eannes" (ou "Gilç Eannes")
3. Esssa história, desconhecida da maior parte dos nossos leitores, merece ser contada aqui, com a devida vénia ao Licínio Ferreira Amador, escritor ilhavense, nascido em 1940...
Afinal, no Portugal de Salazar também havia muitos amigos da Alemanha nazi, e alguns eram mesmo espiões, capazes de pôr em perigo a segurança de toda a tripulação de um navio e, mais, mudar o curso da história....
Foi o caso do
espião Gastão Crawford de Freitas Ferraz, nascido no Funchal. que, por 15 contos por més (!), passava informações aos alemães sobre o movimento dos navios no Atlântico Norte. Felizmente o operador de rádio do "Gil Eanes" foi capturado, em alto mar, por um comando inglês, antes de conseguir avisar a Alemanha de que uma frota aliada se preparava para invadir o Norte de África, o que aconteceu a 8 de novembro de 1942.
Sobre a espionagem detectada em barcos de pesca do bacalhau no Atlântico Norte, durante a 2ª Guerra Mundial consultar a obra do jornalista Rui Araújo, "O Diário Secreto que Salazar não leu", Lisboa, Oficina do Livro, 2008, em especial as pp. 86-138.
(...) "A partir de 1937, a missão do Lahneck / Gil Eannes começou então a ser mais frequente, tornando-se ainda mais forte o elo de ligação entre os marinheiros e as famílias em Portugal; levava-lhes as cartas e lembranças que mitigavam as saudades, distribuídas no final da escala e salga e todos os mantimentos que eram necessários à campanha.
Entretanto a partir de setembro de 1939, a Europa e o mundo foram assolados pela 2ª Guerra Mundial com os veleiros a pescar nos Grandes Bancos da Terra Nova e agora também na Groenlândia. Estes pesqueiros situavam-se nas rotas de navegação entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos tão apetecíveis para os nazis com os seus submarinos escondidos no seio daquelas frias e perigosas águas.
Em fevereiro de 1942, o Lahneck / Gil Eanes deixou de pertencer à Marinha de Guerra e passou para as mãos da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau.
Em novembro do referido ano, os aliados preparavam-se para invadir o norte de África numa operação com o nome de código Torche. Os serviços secretos do Reino Unido começaram então a verificar procedimentos fora do normal de navios portugueses a pescar no Atlântico Norte, equipados com aparelhos de transmissão de rádio. Aqueles serviços desconfiaram especialmente do arrastão Álvaro Martins Homem, que tinha como radiotelegrafista Carlos Maria Tomás Teixeira, e do navio-hospital, que, nos dias 4 e 5 de Agosto do referido ano, teria comunicado aos alemães alguns movimentos de navios aliados naquelas paragens. Estas transmissões foram recebidas por uma estação clandestina alemã na Linha do Estoril, mais propriamente em Cascais.
Numa estadia do Lahneck / Gil Eanes em St. John´s [, na Terra Nova,] , os ingleses fizeram-lhe uma busca,decidindo que o seu operador de rádio, Gastão Crawford de Freitas Ferraz, fosse detido. Porém, alguns erros de estratégia impediram que a sua prisão se realizasse de imediato e o navio iniciou a viagem de regresso a Portugal.
Os ingleses resolveram pôr a embarcação portuguesa ao fundo sem deixar quaisquer vestígios, incluindo sobreviventes, porque era preferível que morressem algumas dezenas de pessoas, facto que seria um mal menor, comparado com os milhares de vítimas na operação Torche.
Os aliados escolheram aquela última decisão devido à proporcionalidade da ameaça, ou seja, de o operador do navio-hospital conseguir informar os nazis do itinerário dos barcos aliados para a referida operação no norte de África.
Posteriormente, os serviços secretos ingleses mudaram de ideias, pensando que não seria desejável atacar os portugueses, porque forneciam combustível nos Açores e Cabo Verde à Royal Navy. Decidiram então interceptar o barco já a caminho de Portugal; prenderam o espião Gastão Ferraz, evitando que este informasse atempadamente os alemães dos planos de invasão dos Aliados na operação Torche, caso os conhecesse. A prisão em alto mar deu-se no dia 3 de Novembro de 1942, tendo sido escolhido para esta missão o destroyer HMS Oribi (G66) que acompanhava o comboio de navios W24.
Os agentes secretos que detiveram o espião português permaneceram a bordo do Lahneck/ Gil Eanes até chegarem a águas portuguesas, onde o radiotelegrafista foi transferido para uma fragata da Royal Navy que o conduziu para Gibraltar.
A detenção do operador de rádio apanhou de surpresa as tropas alemãs e francesas do governo pró-nazi de Vichy, que estavam no norte de África, porque acreditavam que os aliados iriam desembarcar em França ou Noruega e não em Marrocos e na Argélia como veio a acontecer.
O eventual relatório redigido pelo capitão-de-fragata António José Martins, delegado do governo junto do Grémio dos Armadores de Navios da Pesca do Bacalhau, na referida viagem a bordo do navio-hospital, desapareceu dos arquivos da Marinha. (...)
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 13 de fevereiro de 2017 >
Guiné 61/74 - P17047: "Expedicionários do Onze a Cabo Verde (1941/1943)", da autoria do capitão SGE José Rebelo (Setúbal, Assembleia Distrital de Setúbal, 1983, 76 pp) - Parte II: Mobilização do batalhão e composição das companhias (2)
(**) Último poste da série > 7 de fevereiro de 2017 >
Guiné 61/74 - P17028: Efemérides (244): Zeca Afonso (Aveiro, 1929 - Lisboa, 1987)... 30 anos depois... Lembro-me do ex-fur mil Aurélio Duarte, que era de Coimbra, ouvir músicas dele, proibidas, num gravador a pilhas, em cima da caserna dos soldados, em Paunca... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)