1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Janeiro de 2017:
Queridos amigos,
Prossegue a anotação dos textos indispensáveis para cartografar a Guiné desde a chegada dos portugueses, em meados do século XV.
Zurara é a primeira trave-mestra, impõem-se outros a seguir como André Álvares de Almada, André Donelha, Valentim Fernandes, Luís de Cadamosto, Duarte Pacheco Pereira... a literatura de viagens é vasta e exuberante, nenhum investigador da região se pode furtar à sua leitura.
Lemos Coelho é considerado por muitos como a última grande figura desta narrativa de viagens até ao século XVII, as grandes páginas virão depois do século XIX, basta pensar na monumental memória de Honório Pereira Barreto. Nesta súmula, só se pretende que o leitor se sinta atraído pela curiosidade e o elevado pendor descritivo deste aventureiro e comerciante que terá percorrido a costa da Guiné por cerca de 23 anos.
Um abraço do
Mário
Francisco Lemos Coelho, aventureiro seiscentista na Guiné (1)
Beja Santos
“Duas descrições seiscentistas da Guiné”, de Francisco Lemos Coelho, introdução a anotações históricas por Damião Peres, Academia Portuguesa de História, 1953, é considerado por diferentes investigadores como a última grande peça da literatura de viagens em redor da costa da Guiné. Esta edição integra manuscritos inéditos dos fins do século XVII, uma descrição da costa da Guiné desde Cabo Verde à Serra Leoa com todas as ilhas e rios que os brancos navegam, datada de 1669, e uma descrição da costa da Guiné, e situação de todos os portos e rios dela, e roteiro para se poderem navegar todos os seus rios, feita pelo Capitão Francisco de Lemos em São Tiago, 1684. Segundo Damião Peres, os textos têm afinidades clamorosas, serão seguramente deste Francisco Lemos Coelho que terá andado 23 anos por estes portos e paragens. Fala de Gonçalo Gamboa, que foi Capitão-Mor de Cacheu até 1650 e mostra conhecimento pessoal de eventos ocorridos no tempo dos Capitães-Mores Manuel Dias Quatrim e António Barros Bezerra, que foi Capitão-Mor interino. Morou em Cacheu e Bissau, passou a meninice em Guinala, viajou pelo Casamansa, atravessou por terra deste rio para o rio Gâmbia, navegou pelo Geba, percorreu as ilhas dos Bijagós e explorou a costa da Serra Leoa. Estacionou quatro anos na região da Gâmbia.
Vejamos a descrição de 1669. Di-lo claramente: “É terra da Guiné de que pretendo dar notícia, toda aquela terra que se estende do Cabo Verde, o qual ficaria em altura de 14º até ao focinho da Serra Leoa que fica em 7º, que esta é a terra que é navegação dos portugueses, assim moradores que vivem por todos os rios que estão neste distrito, como os que passam a estas partes a negociar, em o qual distrito há os reinos, portos, gentes e comércio que aqui se verá”.
Inicia o seu relato nos reinos Jalofos, todos com portos no mar, dizendo que o primeiro é o de Encalhor, em o qual o primeiro desta costa junto do mesmo Cabo Verde, depois é o porto de Gaspar, para o qual se há de passar numa ilhota a que os nossos chamam Buziguiche e os Flamengos dão-lhe o nome de Guré (Goreia). Ficamos a saber que os Flamengos dispunham de duas fortalezas e de uma feitoria, com uma guarnição até 100 soldados, aqui se vêm abastecer de couros os navios de Amesterdão. Vêm também de Cacheu aqui negociar os portugueses, trazem muito marfim e cera e trocam por ferro e por fazendas da Holanda. Faz referência a Porto Dale e Joalla e depois lança-se numa saborosa descrição do rio de Gâmbia: “É o rio de Gâmbia o mais navegável que há em toda a costa da Guiné e de onde os Ingleses, Flamengos, Franceses, Curlandeses (hoje território polaco), e Castelhanos têm tirado e tiram maiores interesses do que de toda a costa da Guiné sendo o instrumento deles o Português que vive nela”. Mais adiante diz passar a dar notícia da costa observada ao longo de 23 anos em que navegou nestes rios e comerciou nos portos, e propõem-se fazer a descrição até à Serra Leoa. É minucioso na descrição do rio Gâmbia até à Serra Leoa, fala no rio de S. João, povoado por Felupes que estão presentes até Cacheu, menciona o rio Casamansa. Escreve mais adiante: “Passando o rio de Jáume, o que segue é o de Cacheu, toda a costa são Felupes, como tenho dito, entrando a barra está da banda do Norte pouco distante da água as aldeias de Bosól, Osól e Safunco, as aldeias mais grandiosas que têm estas paragens, e de onde é tanto o gentio como bichos, os homens são mui guerreiros, e muitas vezes têm guerras com os brancos de Cacheu com quem logo fazem pazes por amor do trato, e vão a ele todos os dias com as canoas carregadas de mantimentos e peixe seco e negros".
Estamos efetivamente em território guineense e adianta: “Diante de todos estes rios e portos fica a povoação de Tubabodaga, que na língua do Mandinga quer dizer aldeia de branco a qual por outro nome chamam Farim, e é porque é na terra de Farim de Braço e este cognome de Farim só quatro reinos o têm, e é como dizer imperador, que são Farim Cabo, Farim Braço, Farim Cocolim e Farim Landima”. Diz que Farim é segunda povoação onde estão os portugueses, nela está um Cabo posto pelo Capitão-Mor de Cacheu “para decidir as diferenças que houver na povoação”.
Inegavelmente, é detentor num grande conhecimento da geografia local: “Indo de Cacheu pela Costa abaixo há dois caminhos, um que chegam por fora que é ir logo às Ilhetas, e das Ilhetas a Bocis e de Bocis ao Bissau, e outro que vai correndo a terra, que chamam por dentro”. E fala nos reinos dos Papéis e dos Felupes.
Temos seguidamente a descrição de Bissau: “Esta ilha de Bissau é a maior de que há nestas paragens, tem de comprido de ponta a ponta 12 léguas e no mais largo 6, há nela os Reinos de Bium, Tor, Cachete, Bujamata, Safim e Antula, é o de Bissau que é o maior deles, é como imperador, pois todos o reconhecem por maior e lhe rendem vassalagem. Antes de passar daqui para diante me parece dar notícias das Ilhas dos Bijagós que ficam já de trás e começam de frente das Ilhetas ao mar, e vão correndo para a banda do Sul, farei sua narração, e direi primeiro o costume e natural dos negros, e o que foram, e o que são hoje do presente".
Não é por acaso que os investigadores se rendem à sua minúcia, dá-nos informações preciosas sobre a presença portuguesa na Guiné no século XVII. Vejamos o que ele escreve sobre Cacheu: “Consta a povoação de Cacheu de duas ruas, uma posta ao longo do rio que chamam a Direita, e a outra por detrás que chamam de Santo António; no princípio está a modo de um bairrozinho, que chama Vila Fria, em a qual a primeira casa é a de Sua Majestade em que assiste o Capitão-Mor, que não tem mais de forte, que o nome, está a dita casa com um cerco de mangues que é a muralha, a que chamam tabanca, a casa é de adobes, coberta de palha com um grande terraço em que está a fazendo por amor do fogo, que se chama combete, e semelhante a esta são todas as da povoação, tem pela banda do mar uma plataforma com camisa de pedra e cal em que está a artilharia que lhe põem os Capitães-Mores, segundo sua curiosidade (que apeada há muita, mal eu a conheci já, e não digo em que tempo por não envergonhar que ao Capitão-Mor que então servia) sem ter uma peça que poder disparar, e assim sem temor de haver jurado o manejo daquela praça, recebia navios de toda a nação, e tão bem a conheci em tempo do Capitão-Mor António de Barros Bezerra, com muita artilharia cavalgada, e toda a povoação mui bem atabancada e mui defensável, em a mesma Vila Fria está a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Vencimento, hoje de pedra e cal…”.
(Continua)
Mapa da Senegâmbia em 1707, retirado do Wikipédia, com a devida vénia
____________Nota do editor
Último poste da série de 18 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20153: Historiografia da presença portuguesa em África (176): O jornal Bolamense, fonte de informação e cultura (1956-1963) (2) (Mário Beja Santos)