Queridos amigos,
Confrontado pela situação deplorável de que as exposições patentes incluíam estranhíssimas instalações, pedregulhos, fiadas de metal, umas telas a lembrar Jackson Pollock, decidi-me pelos clássicos, e comecei pela minha Capela Sistina, René Magritte, uma profunda admiração que leva décadas, inextinguível. Quando hoje ouvimos tanta pregação sobre o direito à diferença, a igualdade de género, o respeito pela diversidade, encontro em Magritte um prato de substância que devia ser oferecido às novas gerações, está aqui o vigor da liberdade de pensamento, a possibilidade de torcer e distorcer formas e conteúdos até que tudo fique claro, como festa da cultura, a necessidade inevitável de procurar chegar ao Outro, porque nada é exatamente como vemos, temos direito à busca de sentido. Assim se passou uma belíssima tarde que antecedeu a viagem até Namur, como aqui se irá contar.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (64):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 2
Mário Beja Santos
A tarde é reservada a visitar cuidadosamente um santo do meu culto, René Magritte, o maior expoente do surrealismo belga, um dos nomes maiores de todo o movimento, à escala mundial. Quando passei a visitar Bruxelas, Magritte ocupava uma grande sala no Museu de Arte Moderna, na generalidade dos casos os quadros expostos eram uma doação da viúva, Georgette Berger, nome de solteira. O acervo aumentou e Magritte passou a ter direito ao seu próprio museu (2009), independente do Museu de Arte Moderna, é a maior coleção existente de obras do artista. Como era próprio da época, os Magritte iniciaram a sua vida com orçamento apertado, ele trabalhou em artes gráficas, fez publicidade, a sua arte foi evoluindo, nós temos essa perfeita perceção nas primeiras salas do museu. Georgette vendia materiais para artistas no centro da cidade, a dois passos da Grand Place, enquanto Magritte trabalhava na cabana ao fundo do jardim da casa nos seus cartazes. As obras desse período são pintadas na sala de jantar e armazenadas na mansarda. Os seus primeiros quadros são figurativos, aliás toda a sua arte surrealista é sempre figurativa. Expõe pela primeira vez em 1927, 4 anos depois no Palácio das Belas Artes, em 1933 é já um número sonante da arte belga. Existe um Museu Magritte numa rua em Bruxelas, para os aficionados deste génio não ficarão dececionados com a visita, a história dos Magritte conta-se à medida das divisões, vê-se a correspondência, fotografias, objetos e obras, toma-se conhecimento das afinidades eletivas deste homem de costumes sóbrios e chapéu de coco nascido em 1898 e falecido na comuna de Schaerbeek em 1967.
A viagem ao santo do meu culto decorre no interior de um edifício neoclássico assinado Alphonse Balat, é um espaço de 2500 m2 em 5 andares, cerca de 200 obras, as influências, as tertúlias, a singularidade do seu génio, tudo nos é acessível ao longo destas salas, tudo suficientemente bem organizado para ser Magritte quem nos interroga, pondo em causa ordem e ideias feitas, como se nos estivesse a convidar a entender o vigor do seu olhar através da pintura, de fotografias e filmes. E começa a viagem.
O primeiro Magritte, ainda condicionado pelo seu labor nas artes gráficas e pela corrente modernista
Chegámos à liberdade do olhar, o título da obra parece estar sempre em discordância com o que estamos a ver, tantas vezes uma leitura em antinomia, sente-se que Magritte nunca se condicionou a quaisquer regras da cor, tratou sempre livremente a ocupação do espaço, devia divertir-se imenso com a surpresa permanente que toda a sua obra motivou (e motiva), é um voo de pássaro liberto de peias, de exigências académicas e até mesmo de cedências ao grande público. Mal sabia ele que alguns dos seus quadros iriam ser objeto de reproduções que se podem encontrar em todos os continentes, é essa a força do diálogo das culturas.Não vale a pena estar a pontificar, não terei mais aprazimento do que o leitor ir até à biblioteca ou comprar livros sobre Magritte, este homem tinha pensamento, deixou um cem número de intervenções, algumas delas de elogio a artistas que estimou profundamente, como Georges Braque, James Ensor, Francis Picabia, ou Paul Delvaux. A sua inspiração para a sua pintura revolucionário terá sido acicatada quando lhe conheceu quadros de Giorgio de Chirico. Magritte era muito sensível a um verso de Paul Éluard, “Nos olhos mais sombrios fecham-se os mais claros. A consigna estava lançada, toda esta arte é destinada a refletir, a fazer-nos perder o fôlego, a exigir uma leitura do que se pode e deve ver para além das aparentes contradições.
Uma escultura, cujos elementos podemos igualmente encontrar na pintura
O impossível para o pensamento possível, é uma arte assente na liberdade do pensamento, são signos materiais dessa liberdade. O sentido é o impossível para o pensamento possível. Pensar no sentido significa, para o pensamento, libertar-se dos estados que o caracterizam habitualmente. O pensamento possível é um meio, que não pode aprisionar o pensamento livre. Magritte dixit.Conheceram-se num jardim, amaram-se toda a vida, ele representou-a profundamente, divertiram-se imenso e ela acreditava piamente na arte de Magritte.
Todos estes quadros seriam calorosamente recebidos nos principais museus de Arte Moderna. Esta última intitula-se “O Império das Luzes”, é um desafio ao olhar, ultrapassar a ideia do contraditório entre uma paisagem noturna e um céu que poderia ser do meio dia. Magritte escreveu que esta última interpretação tem a ver com o poder de nos surpreendermo-nos e de nos encantarmo-nos, é um poder que se chama a poesia, não se trata de um jogo de discordâncias ou dissidências, é um modo de sentirmos em nós a força dessa poesia, a leitura do nosso olhar que acompanha o propósito do pintor.
Também tenho direito a intervir, encontro esta fresta sobre o Monte das Artes, vejo lá ao fundo a altíssima flecha do edifício medieval que é a autarquia na Grand Place, lugar icónico dos turistas, embeveço-me com este céu de Magritte (salvo seja), sabe-se lá porquê depois de comungar nesta arte genial sinto-me mais livre, mais amante desta Europa, este artista legou-nos a força avassalador da liberdade, de pensar para ver o mundo de outra maneira, bem podem dizer que a Europa está decadente mas é aqui que temos mais democracia por m2, e este santo do meu culto é um perfeito acólito que transportou para a arte as imagens do livre pensamento. E é a matutar nestes resultados que vou fazer compras para o jantar, prevejo amanhã um dia excecional, vamos a Namur, começamos em Saint Marc e haverá passeio pelo Meuse. Irei contar.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 13 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23521: Os nossos seres, saberes e lazeres (518): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (63): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 1 (Mário Beja Santos)