sábado, 20 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23541: Os nossos seres, saberes e lazeres (519): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (64): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 2 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Confrontado pela situação deplorável de que as exposições patentes incluíam estranhíssimas instalações, pedregulhos, fiadas de metal, umas telas a lembrar Jackson Pollock, decidi-me pelos clássicos, e comecei pela minha Capela Sistina, René Magritte, uma profunda admiração que leva décadas, inextinguível. Quando hoje ouvimos tanta pregação sobre o direito à diferença, a igualdade de género, o respeito pela diversidade, encontro em Magritte um prato de substância que devia ser oferecido às novas gerações, está aqui o vigor da liberdade de pensamento, a possibilidade de torcer e distorcer formas e conteúdos até que tudo fique claro, como festa da cultura, a necessidade inevitável de procurar chegar ao Outro, porque nada é exatamente como vemos, temos direito à busca de sentido. Assim se passou uma belíssima tarde que antecedeu a viagem até Namur, como aqui se irá contar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (64):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 2


Mário Beja Santos

A tarde é reservada a visitar cuidadosamente um santo do meu culto, René Magritte, o maior expoente do surrealismo belga, um dos nomes maiores de todo o movimento, à escala mundial. Quando passei a visitar Bruxelas, Magritte ocupava uma grande sala no Museu de Arte Moderna, na generalidade dos casos os quadros expostos eram uma doação da viúva, Georgette Berger, nome de solteira. O acervo aumentou e Magritte passou a ter direito ao seu próprio museu (2009), independente do Museu de Arte Moderna, é a maior coleção existente de obras do artista. Como era próprio da época, os Magritte iniciaram a sua vida com orçamento apertado, ele trabalhou em artes gráficas, fez publicidade, a sua arte foi evoluindo, nós temos essa perfeita perceção nas primeiras salas do museu. Georgette vendia materiais para artistas no centro da cidade, a dois passos da Grand Place, enquanto Magritte trabalhava na cabana ao fundo do jardim da casa nos seus cartazes. As obras desse período são pintadas na sala de jantar e armazenadas na mansarda. Os seus primeiros quadros são figurativos, aliás toda a sua arte surrealista é sempre figurativa. Expõe pela primeira vez em 1927, 4 anos depois no Palácio das Belas Artes, em 1933 é já um número sonante da arte belga. Existe um Museu Magritte numa rua em Bruxelas, para os aficionados deste génio não ficarão dececionados com a visita, a história dos Magritte conta-se à medida das divisões, vê-se a correspondência, fotografias, objetos e obras, toma-se conhecimento das afinidades eletivas deste homem de costumes sóbrios e chapéu de coco nascido em 1898 e falecido na comuna de Schaerbeek em 1967.
A viagem ao santo do meu culto decorre no interior de um edifício neoclássico assinado Alphonse Balat, é um espaço de 2500 m2 em 5 andares, cerca de 200 obras, as influências, as tertúlias, a singularidade do seu génio, tudo nos é acessível ao longo destas salas, tudo suficientemente bem organizado para ser Magritte quem nos interroga, pondo em causa ordem e ideias feitas, como se nos estivesse a convidar a entender o vigor do seu olhar através da pintura, de fotografias e filmes. E começa a viagem.

O primeiro Magritte, ainda condicionado pelo seu labor nas artes gráficas e pela corrente modernista
Chegámos à liberdade do olhar, o título da obra parece estar sempre em discordância com o que estamos a ver, tantas vezes uma leitura em antinomia, sente-se que Magritte nunca se condicionou a quaisquer regras da cor, tratou sempre livremente a ocupação do espaço, devia divertir-se imenso com a surpresa permanente que toda a sua obra motivou (e motiva), é um voo de pássaro liberto de peias, de exigências académicas e até mesmo de cedências ao grande público. Mal sabia ele que alguns dos seus quadros iriam ser objeto de reproduções que se podem encontrar em todos os continentes, é essa a força do diálogo das culturas.
Não vale a pena estar a pontificar, não terei mais aprazimento do que o leitor ir até à biblioteca ou comprar livros sobre Magritte, este homem tinha pensamento, deixou um cem número de intervenções, algumas delas de elogio a artistas que estimou profundamente, como Georges Braque, James Ensor, Francis Picabia, ou Paul Delvaux. A sua inspiração para a sua pintura revolucionário terá sido acicatada quando lhe conheceu quadros de Giorgio de Chirico. Magritte era muito sensível a um verso de Paul Éluard, “Nos olhos mais sombrios fecham-se os mais claros. A consigna estava lançada, toda esta arte é destinada a refletir, a fazer-nos perder o fôlego, a exigir uma leitura do que se pode e deve ver para além das aparentes contradições.
Uma escultura, cujos elementos podemos igualmente encontrar na pintura
O impossível para o pensamento possível, é uma arte assente na liberdade do pensamento, são signos materiais dessa liberdade. O sentido é o impossível para o pensamento possível. Pensar no sentido significa, para o pensamento, libertar-se dos estados que o caracterizam habitualmente. O pensamento possível é um meio, que não pode aprisionar o pensamento livre. Magritte dixit.
Conheceram-se num jardim, amaram-se toda a vida, ele representou-a profundamente, divertiram-se imenso e ela acreditava piamente na arte de Magritte.
Todos estes quadros seriam calorosamente recebidos nos principais museus de Arte Moderna. Esta última intitula-se “O Império das Luzes”, é um desafio ao olhar, ultrapassar a ideia do contraditório entre uma paisagem noturna e um céu que poderia ser do meio dia. Magritte escreveu que esta última interpretação tem a ver com o poder de nos surpreendermo-nos e de nos encantarmo-nos, é um poder que se chama a poesia, não se trata de um jogo de discordâncias ou dissidências, é um modo de sentirmos em nós a força dessa poesia, a leitura do nosso olhar que acompanha o propósito do pintor.
Também tenho direito a intervir, encontro esta fresta sobre o Monte das Artes, vejo lá ao fundo a altíssima flecha do edifício medieval que é a autarquia na Grand Place, lugar icónico dos turistas, embeveço-me com este céu de Magritte (salvo seja), sabe-se lá porquê depois de comungar nesta arte genial sinto-me mais livre, mais amante desta Europa, este artista legou-nos a força avassalador da liberdade, de pensar para ver o mundo de outra maneira, bem podem dizer que a Europa está decadente mas é aqui que temos mais democracia por m2, e este santo do meu culto é um perfeito acólito que transportou para a arte as imagens do livre pensamento. E é a matutar nestes resultados que vou fazer compras para o jantar, prevejo amanhã um dia excecional, vamos a Namur, começamos em Saint Marc e haverá passeio pelo Meuse. Irei contar.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23521: Os nossos seres, saberes e lazeres (518): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (63): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 1 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23540: Memória dos lugares (442): Rio Cacine, Cafal, Cananima, ontem e hoje

 

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Praia fluvial e aldeia piscatória de Cananima, na margem direita do rio Cacine, em frente a a vila de Cacine. (*)


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Praia fluvial e aldeia piscatória de Cananima, na margem direita do rio Cacine,  Canoas.(*)


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Praia fluvial e aldeia piscatória de Cananima, na margem direita do rio Cacine, Construção de canoas. (*)

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (Bissau, 1-7 de Março de 2008) > Visita ao Cantanhez dos participantes do Simpósio > Rio Cacine, perto do cais de Cacine: Tarrafo...


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Era domingo, para nós, participantes (a maior parte estrangeiros...) do Simpósio Internacional de Guiledje, de visita ao sul do país... mas não para o pescador, que precisa de remendar as redes e ir à pesca..


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > A simpatiquíssima Cadidjatu Candé (infelizmemte já falecida, segundo informação do Zé Teixeira), da comissão organizadora do Simpósio Internacional de Guileje e colaborada da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, servindo um fabuloso arroz com filetes de peixe do Cacine e óleo de palma local, que tem fama de ser o mais saboroso do país, devido à qualidade da matéria-prima e às técnicas e condições de produção (artesanal). Na imagem, um diplomata português, o nº 2 da Embaixada Portuguesa, que integrou a nossa caravana (e cujo nome, por lapso, não registei, lapso de que peço desculpa).

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Um dos pratos que foi servido no almoço de domingo, aos participantes do Simpósio Internacional de Guileje, foi peixe de chabéu, do Rio Cacine, do melhor que comi em África... Durante a guerra colonial, na zona leste, em Bambadinca, só conheci conhecíamos o desgraçado peixe da bolanha..


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > Depois de um belíssimo almoço em praia fluvial e porto piscatório de Cananima, na margem direita do Rio Cacine, houve um grupo de cerca de 30 valentões (e valentonas) que se meteram numa canoa senegalesa, motorizada, de um pescador local, e aproveitaram a tarde para visitar a mítica Cacine.  Sem coletes salva-vidas!... A distância entre as as duas margens ainda é grande... A canoa a motor, carregada de pessoal, terá levado meia hora a fazer a travessia...


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > O nosso amigo, o saudoso  Leopoldo Amado (1960-2021) , historiador, um dos organizadores do Simpós
o e conferencista, veio encontrar aqui um antigo condiscípulo de liceu, hoje administrador de Cacine (sector de Quitafine).


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > Está na hora do regresso a Cananima... O pessoal deixa Cacine, já ao fim da tarde, de sapatos na mão, para tomar o seu lugar na canoa... Em primeiro plano, a Maria Alice Carneiro e o antigo embaixador cubano, na Guiné-Conacri, Oscar Oramas (estava lá, quando foi assassinado, em 1973, o fundador e dirigente histórico do PAIGC)..

Fotos  (e legendas): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima >  9 de Dezembro de 2009 > c. 18h >  Pescador e canoa da aldeia piscatória de Cananima, na margem direita do Rio Cacine, frente a Cacine. (**)

Foto  (e legenda): © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Tomvali > Rio Cacine > Praia de Cafal, na margem direita do rio > 2022 > De costas, em primeiro plano, o padre Carlos, dos missionários  Oblatos da Maria Imaculada, que chegaram aqui há 10 anos, acrescentando  Cacine às duas missões ja existentes, a de Antula, Bissau, e a de Farim. Em Cacine têm duas escolas, uma em Cafal e outra em Quitafine  (que tem 270 alunos). O padre Costa conversa com os mototaxistas, que são o único transporte motorizado que aqui existe (para além das canoas)...


Guiné-Bissau > Região de Tomvali > Rio Cacine > Praia de Cafal, na margem direita do rio > 2022 > Um dos mototaxistas com uma T-shirt "made in China"...


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cacine > 2022 > Uma loja de roupa

Fotos (e legendas) de Andre Cuminatto (2022), "Além-Mar" (revista dos Missionários Combonianos), abril 2022, pp. 44-45 (com a devida vénia)


1. Estivemos aqui há 12 anos, andámos por aqui (e comemos, ao almoço o belíssimo peixe do rio Cacine, um fabuloso chabéu de peixe), por altura  de uma visita ao Cantanhez, em 2 de março de 2008, no âmbito do Simpósium Internacional de Guileje (Bissau, 1-7 de março de 2008). E escrevemos (*):

(...) A região de Tombali, com pouco mais de 3700 km2 (o que representa cerca de 10,3% do território da Guiné) e pouco mais de 90 mil habitantes (7,1% do total) tem grandes potencialidades, devido ao seu património ambiental e cultural, ainda insuficientemente conhecido e valorizado pelos próprios guineenses. A jóia da coroa é o massiço florestal do Cantanhez e os dois rios principais que o atravessam, o Cumbijã e o Cacine. (...)

(...) Cananima é uma praia fluvial e um aldeia piscatória. Gente de vários pontos, desde os Bijagós até à Guiné-Conacri, vêm para aqui trabalhar na actividade piscatória. No entanto, é preciso saber gerir os recursos do rio e do mar com sabedoria... A sobre-exploração de certas espécies pode ser um desastre... Por outro lado, as infra-estrututuras de apoio à pesca são precárias ou inexistentes. (...)

(...) No estaleiro naval artesanal, de Cananima, também se constroem barcos, segundo os modelos tradicionais. A matéria-prima, a madeira, é abundante. Abate-se uma árvore centenária para fazer uma piroga. Felizmente, as pirogas não são feitas em série. E hoje há, também felizmente, restrições ao abate de árvores no Cantanhez. O problema são, muitas vezes, os projectos megalómanos e inconsistentes, que acabam por morrer na praia, como estas embarcações senegalesas que viemos aqui encontrar. (...)

(...) Em frente, do outro aldo do rio, fica Cacine, que tem muito que contar, aos nossos camaradas do exército e da marinha... Alguns deles ficaram por aqui, enterrados e abandonados... A guerra e as suas memórias estão por todo o lado, não nos largam. (...)

(...) A areia não é fina, as águas não são azuis, nem a paisagem é a mais bela do mundo, mas tudo depende dos olhos com que se olha, dos ouvidos com que se ouvem, das emoções com que se capta o instante, o efémero, o diferente (..).

(...) É preciso salvar o Cantanhez, dando uma chance às crianças de Tombali. Projectos como o ecoturismo, ou o turismo de natureza, podem vir a ser um factor dinamizador de mudanças, a nível local e regional. (...)

(..) A diversidade étnico-linguística e cultural da Guiné-Bissau, em geral, e do Tombai, em particular, não deve ser vista como uma obstáculo, mas sim como um factor potenciador da cidadania e do desenvolvimento... Os demónios étnicos não podem é dormir descansados na Caixinha de Pandora... Combatem-se com as armas da saúde, da educação, da democracia, da integração, do desenvolvimento económico, social e cultural... (...)


2. Há dias lemos na revista "Além-Mar" um interessante artigo, "Evangelho e promoção social na Guiné-Bissau: Cacine, Missão Escolar", edição de abril de 2022 (pp. 43-45)... Tomamos a liberdade de reproduzir aqui este excerto do viajante e jornalista italano, Andrea Cuminatto.

(...) Na orla, entre as vacas que lambem o sal deixado pela maré alta, há também, um grupo de pescadores. Um é da Serra Leoa, outro da Libéria e ainda outro do Gana. Vêm da vizinha Guiné: sairam de Conacri,  com dois barcos de pesca e foram vistos a pescar, surpreendidos sem autorização nas águas da Guiné-Bissau. Há doze dias que estão à espera no pequeno cais de cimento que o seu chefe envie o dinheiro para pagar a multa do resgaste e poder zarpar. 

Até para os pescadores locais não é fácil tirar algo destas águas. Desde que os Coreanos compraram os direitos de pesca, a maior parte da captura é congelada  e enviada para a Ásia. E assim as pirogas,  feitas de madeira muito leve de ' fromager', tão ágeis nestas águas plácidas, descansam na areia, carregando pouquíssimos peixes nas panelas de Cacine. Estamos satisfeitos com o arroz, pelo menos não falta" (...) 

A vila de Cacine tem hoje 2 mil habitantes. E já nada é como dantes... (***)
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sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23539: Notas de leitura (1476): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Prossegue a narrativa deste batalhão que congregava diferentes armas, companhias e pelotões. Estava sediado em Buba, a área de atuação era extensa, competia-lhe reocupar povoações abandonadas onde o PAIGC estava convencido de uma total segurança e incapacidade de reação das nossas forças armadas. As bases de apoio eram muitas, aqui residia a apetecível cultura do arroz e daí a intensidade da vigilância, como aliás iremos ver noutros pontos da Guiné, caso do Poidon, junto da Ponta do Inglês, ricos arrozais indispensáveis para a segurança alimentar de quem estava do lado da guerrilha. Reocupou-se o chão Fula e vamos ouvir falar constantemente em Aldeia Formosa, Guilege, Cacine, Gadamael, Mampatá, Cacoca, Sangonhá, Ganturé, Cameconde, Cantanhez. Pergunto-me se teria sido possível doutra maneira, e com menos sacrifício e com maior efetividade, obter-se o resultado de enfrentar as arremetidas do PAIGC. E vou reforçando a convicção de que está por reparar (e não sei se alguma vez se reparará) a tremenda injustiça de dizer que os dois oficiais generais que precederam Spínola não revelaram uma enorme capacidade para confrontar o adversário, com os meios disponíveis ao seu alcance. Foram pouco mediáticos estes dois oficiais generais e pagou-se-lhes com a fatura do esquecimento ou da ignorância (que muitas vezes é útil na historiografia de caráter manipulador).

Um abraço do
Mário



Um documento eloquente, peça de historiografia: A história do BC 513 (2)

Mário Beja Santos

Por que motivo atribuo tanto relevo a este documento? Publicado em 2000, numa verdadeira edição para amigos, a História do BC 513, da autoria de Artur Lagoela, abre luz sobre o primeiro ano da guerra, o estado do conflito na região Sul, os colonos já tinham desaparecido e as populações, espavoridas ou rapidamente afetas ou constrangidas, com maior ou menor brutalidade, pelo PAIGC, tinham-se disseminado pelas pequenas vilas à sombra das tropas portuguesas, ou nas matas ou na República da Guiné. Este batalhão cumpre as instruções do Comando-Chefe, vai procurar ocupar posições que permitam travar a penetração da guerrilha, derrotá-la no Interior, dar segurança a quem fica à sombra da soberania portuguesa. Os Fulas da região são colaborativos, vão mesmo combater com as tropas metropolitanas.

Em 17 de dezembro de 1963, ocupa-se Gadamael, veio primeiro um destacamento de fuzileiros, segue-se a CART 494, o PAIGC oferece pouca resistência; de 4 a 8 de fevereiro de 1964 ocupa-se Guilege e no dia 20 do mesmo mês abre-se o itinerário Guilege – Gadamael, dias depois ocupa-se Ganturé, patrulha-se os itinerários Aldeia Formosa – Gadamael, Guilege – Mejo e os acessos à fronteira. O PAIGC embosca e provoca vítimas mortais; em maio abre-se o itinerário Gadamael – Sangonhá e ocupa-se Sangonhá, os paraquedistas ajudam. Concluída a abertura do itinerário Aldeia Formosa – Cacoca, inicia-se um esforço no melhoramento das defesas, a pensar nas populações dos regulados de Guilege, Gadamael e Cacine; e faz-se o reconhecimento aonde a CART 496 irá instalar o futuro destacamento de Cameconde. Concluía-se assim a abertura do itinerário Cacine – Cacoca – Guilege – Mampatá – Aldeia Formosa – Buba.

Já se referiu que este documento agrega um conjunto de relatórios que abrem luz sobre o desencravamento na região Sul, como se procurava suster a presença do PAIGC ocupando posições e dando segurança às populações que a reclamavam. Ainda não chegaram as minas anticarro, os pelotões Fox e Daimler dão uma ajuda excecional, os documentos evidenciam essa realidade com a abertura do troço Cacoca – Cacine, Cacoca – Cameconde e Cacoca – Cameconde – Cacine.
E escreve-se:
“O IN levava a efeito inúmeras emboscadas ao longo de todos os itinerários controlados pelas NT em especial no de Buba – Aldeia Formosa e Rio Balana – Gadamael. Era sua preocupação dominar os itinerários que utilizavam para os seus reabastecimentos de material. Na estrada Buba – Aldeia Formosa, designadamente junto ao cruzamento de Buba e à bifurcação de Sinchã Cherno, implantou minas e montou emboscadas às nossas colunas, estas muitas vezes conjugadas com o rebentamento de fornilhos. Empenhou-se ainda na destruição de principais pontes e pontões no setor. Na totalidade, o IN implantou 66 minas anticarro, das quais foram detetadas e levantadas 46; o IN, acossado pelas NT ao longo da fronteira e no rio Cacine e afluente, decidiu-se usar a penetrante de Guilege para fazer passar a maioria dos seus reabastecimentos”.

Não menos interessante é um relatório assinado pelo Alferes Miliciano Ivo Januário Dias, de 11 de junho de 1964, referente a uma emboscada na estrada Aldeia Formosa – Fulacunda, no cruzamento de Buba, uma ação com dois pelotões.
E escreve o seguinte:
“O IN vinha escalonado: um explorador; cerca de dez metros atrás dois indivíduos (provavelmente); mais dez metros atrás um grupo inferior a dez homens e dois ou três metros depois o grosso da coluna bastante numeroso de cerca de cem homens. Naturalmente metidos no mato, caminhavam dos dois lados da estrada exploradores laterais que, no entanto, vinham atrasados em relação à vanguarda. Cerca das 20 horas, foram ouvidos os primeiros passos em marcha acelerada na estrada, distinguindo-se vagamente que era um homem que avançava no sentido Aldeia Formosa – Fulacunda. Logo a seguir foram ouvidos mais passos. Uns segundos depois voltaram-se a ouvir mais passos, desta vez de um grupo numeroso que caminhava mais lentamente. Nesta altura apercebi-me que este último grupo era o que devia transportar material, pelo que desencadeei emboscada. O fogo prolongou-se durante uns três minutos de parte a parte”.
Os guerrilheiros terão tentado o envolvimento, foi repelido, seja como for não deixou de abrir fogo do lado Norte do cruzamento de Buba e à retaguarda das forças emboscadas. Foi feita uma batida, recolheu-se material, que é inumerado.

Seguem-se outros relatórios referentes a patrulhamentos, emboscadas e operações. O relatório da Operação Marcela, em novembro de 1964, revela-se também uma peça de muito interesse. O PAIGC procurava manobras de diversão para percorrer o corredor de Guilege na mesma altura em que flagelava quartéis. O Alferes Miliciano João Pedro Mendes parte de Guilege e embosca na região de Balana, perto de Chinchim Dari. É tratada uma coluna, desencadeia-se o fogo das NT secundado com arremesso de granadas, o que provocou vários mortos ao IN. E o documento continuará a descrever patrulhamentos, reconstrução de pontões, operações, emboscadas, mas o PAIGC reage, o relatório fala de ataques IN aos aquartelamentos do setor, destaca-se Cameconde, vinte e quatro vezes flagelada entre 3 de novembro de 1963 e 27 de maio de 1965. O PAIGC ataca Cumbijã, a resistência é heroica, a seguir à letra tudo quanto se escreve no documento é uma façanha invulgar, tão poucos homens a suportar, valorosamente, uma arremetida de um enorme grupo.

Convém não esquecer que o BCAÇ 513 não atua sozinho, tem vários pelotões de reconhecimento, outras unidades militares e por vezes vêm forças especiais dar uma mãozinha. Lê-se que era dado como certo e seguro ter havido uma desarticulação da organização IN no setor, cuja superfície é assim descrita:
“O setor confiado à responsabilidade do BC 513 compreendia, além da extensa e pouco profunda zona fronteiriça, uma área interior correspondente ao antigo posto administrativo de Buba, abrangendo a Norte a região de Injassane – Incassol – Canconté, na margem esquerda do rio Corubal, e a Sudoeste a importante região de Bantael Silá – Unal, na margem direita do rio Cumbijã. Especialmente esta última é uma das mais ricas regiões de arroz da Guiné. A população Beafada da região de Antuane desde o início se ligou ao PAIGC e os Balantas que cultivavam arroz nas bolanhas do rio Cumbijã seguiram-lhes os passos após um fácil e rápido período de aliciamento. Assim se estabeleceu e foi consolidando um grande conjunto de acampamentos na região de Antuane, apoiado logisticamente nas ricas tabancas existentes ao longo do rio Cumbijã. Nestas procurou logo o IN estabelecer as suas estruturas político-administrativas, convencendo a população de que a tropa não iria ali mais e de que aquela região já estava libertada. De facto, tornou-se sempre muito difícil às NT atingir essas regiões, não só pelas grandes distâncias a percorrer como pela facilidade em impedir os movimentos, bloqueando o ponto de passagem obrigatória de Galo Bobola. Enquanto foi possível circular livremente as viaturas, confiou-se às unidades de reconhecimento da Cavalaria o patrulhamento destas áreas. Depois do aparecimento de minas em larga escala, as tropas passaram a andar a pé e então deixou de ser possível aparecer nessas tabancas com a regularidade necessária. De igual forma a região de Injassame – Incassol foi ficando fora do controlo das NT por os acessos serem muito limitados e facilmente controláveis e a distância a percorrer ser sempre para cima dos 40 km, ida e volta”.

Segue-se a descrição do modo como o BC 513 tentou desarticular as posições do PAIGC.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23526: Notas de leitura (1475): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23538: Tabanca da Diáspora Lusófona (20): Um saudoso e apertado abraço para a Alice, que fez ontem anos... E lá vamos, hoje, a caminho de Toronto, Canadá: oxalá possamos encontrar antigos camaradas da Guiné (João Crisóstomo, Nova Iorque)




Vilma Kracun e João Crisóstomo, ela, eslovena, enfermeira, reformada, ele nosso camarada da diáspora, ex-alf mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), luso-americano, mordomo reformado, ativista de causas sociais e humanitárias. Casaram em segundas núpcias em 2013: amigos já do tempo de  Londres, reencontraram.se ao fim de 40 anos... Uma linda história de amor.

O casal vive em Queens, Nova Iorque. O João nasceu em 22 de junho de 1944, em Paradas, Torres Vedras. Depois da Guiné, emigrou para o Brasil e, em 1975, para os EUA. Tem um curso superior em gestão hoteleira, Em Nova Iorque fez parte da a elite portuguesa dos mordomos que serviam a elite nova-iorquina. Principais causas humanitárias e sociais pelas quais ele se tem batido: defesa das gravuras de Foz Côa, autodeterminação de Timor Leste, e reabilitação da memória de Aristides Sousa Mendes... O casal vem com frequência a Portugal e, desde 2013, também à Eslovénia.

Foto (e legenda): © João Crisóstomo (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem de quinta feira, 18/08/2022, 22:42

Caríssimos Alice e Luís Graça. Não sei (talvez seja de propósito ) ambos os vossos telefones vão imediatamente para a "answering machine”… Imagino que hoje teve de ser assim mesmo.

Não esquecemos que hoje foi/é um dia muito especial…e nós ( um pouco tarde, que o dia passou quase sem darmos por isso) queremos ainda ser parte dele.

Se de outra maneira não podemos estar festejando com o Luís Graça e demais queridos da nossa querida Alice, aqui vai pelo menos com um saudoso e apertado abraço!

Vamos amanhã até Toronto, como há tempos disse ser intenção de fazer. Vamos de carro, com paragens em Morgentown (Virgínia) para ver uns amigos e Cleveland (Ohio) onde existe a maior comunidade eslovena nos USA. Não preciso de dar mais explicações, certo?

Na volta vamos parar em Ithaca, "home” da Cornell University onde fui em 1975, pois tirar aí um curso de hotelaria foi a razão que me trouxe aos USA. Não pôde ser, mas ficou-me a vontade de aí voltar pois toda aquela zona (Finger Lakes) é um sonho.

Era nossa intenção parar também em Strathroy onde mora o nosso camarada Picanço para um abraço; mas terá de ser noutra ocasião. Aliás, duma tarde de telefonemas para camaradas da diáspora, tentando encontrar alguém para cavaquear um pouco, foi este o único camarada com quem consegui falar. E foi nos Açores que o encontrei…

A continuação de um dia muito feliz para todos especialmente para a nossa (de todos!) muito querida Alice.

Com saudades,

João e Vilma

2. Comentário do editor LG:

João e Vilma: obrigado pela vossa solicitude, carinho e amizade. Agradeço os votos de paarbéns em nome da Alice, que ontem, como devem imaginar, não teve um minuto de sossego. E depois à noite fomos jantar todos, com os filhos e a neta, num sítio que recomenda a Tasca da Memória, Calçada do Galvão, 8, Ajuda, Lisboa (está na moda, é obrigatório reservar mesa). Ainda vimos o vosso telefonema e tentámos marcar, de regresso a casa, no carro. De qualquer modo, foi um dia feliz, estivemos todos juntos, a família mais próxima, que é o mais importante.

João, em relação à viagem a Toronto, de que já me tinhas falado, entendo a tua frustração por não poder encontrar mais amigos e camaradas da Guiné.  Mas fica aqui, mais uma vez, o apelo para que a malta dê a cara e apareça.   Como sabes, é uma geração que lida ainda muito mal com a Internet, pelo que muitos (com destaque para açorianos e madeirenses) só descobrem o nosso blogue através de filhos e netos.

Espero que tu e a Vilma se divirtam e façam boa viagem. E, à volta, manda-nos a tua reportagem, pelo menos algumas fotos (com boa resolução... e legendas). Se eu puder e for a tempo, ainda vejo quem, do blogue, vive por aí... Temos um ou outro camarada.  Pelo menos temos 30 referências com  o descritor Canadá

Um chicoração do Luís (e Alice)

PS - Alguns membros da Tabanca Grande, que vivem em Toronto (ou no Canadá, como é o caso do José Manuel Espínola Piçanço, de que já tens os contactos)  

O mais recente é o Manuel Antunes, ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 2484/BCAV 2867 (Jabadá, 1969/70); membro da Tabanca Grande nº 859: é mirandês, natural de Duas Igrejas, Miranda do Douro;

Mas temos outros (vivos e falecidos)... Vou procurar com tempo. Alguns visitam-nos mas não chegam a integrar a Tabanca Grande, perdendo-se o contacto. Casos, por exemplo, do:

  •  José (ou Joe) Ribeiro, que é de Leiria, ex- Sold Inf , 4º Gr Comb, CCAÇ 3307/BCAÇ 3833 (Pelundo, Jolmete, Ilha de Jete, 1970/72): vive em Toroto há de 45 anos);
  •  Luciano Vital, natural de Valpaços, Trás-os-Montes, ex-fur mil, de rendição individual, que andou pelas CCAV 3463 (Mareué), CCAÇ 3460 (Cacheu) e Adidos (Bissau), 1973/74

 Outros estão por cá e lá...É o caso do José Marcelino Gonçalves (ex-Al Mil Op Esp da CCAÇ 4152/73, que vive actualmente no Canadá; já foi aos nossos encomntros nacionais,em Monte Real).

Mas há mais... O  problema é que a América do Norte é um mundo, as distâncias são enormes... Em Toronto tenho gente conhecida, da nossa região Oeste. 

Guiné 61/74 - P23537: Parabéns a você (2092): Mário Fitas, ex-Fur Mil Op Especiais da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 18 de Agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23534: Parabéns a você (2091): Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira (Lisboa e Lourinhã), esposa do nosso Editor Luís Graça

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23536: In Memoriam (448): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (1): Um homem bom, um estudioso que ligou a China à Guiné, sua terra natal (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de hoje, 18 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
Confesso que não foi uma notícia totalmente inesperada, a partida do António Estácio. Há poucos anos, terá sofrido um AVC que o deixou bastante diminuído, nas nossas conversas espúrias num cantinho da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, queixava-se da perda de memória e do cansaço que sentia quando se embrenhava em novas leituras, retia cada vez menos. Depois desapareceu do convívio da biblioteca, ao telefone a filha explicou-me que o seu pensamento era cada vez mais volátil, que não contasse com o seu regresso aos papéis da biblioteca. O blogue perde alguém que amou profundamente a Guiné, a ela dedicou estudos, uns inovadores, outros de homenagens a figuras de mulheres empreendedoras, entusiasmou-se pelo estudo que fez de Bolama, sonhava em escrever as suas memórias do tempo guineense. Aqui me curvo respeitosamente em sua memória, recordando pedaços do seu legado.

Um abraço do
Mário


António Estácio, um homem bom, um estudioso que ligou a China à Guiné, sua terra natal


Gratas recordações do confrade António Estácio

Mário Beja Santos

Consternou-me muito a partida deste dedicadíssimo amigo da sua terra-berço. A nossa convivência era digna da vida de um clube, não fossem os nossos encontros realizados no ambiente em que ambos trabalhávamos, a Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Se havia outra gente às mesas de trabalho, refugiávamo-nos num cantinho, debaixo do quadro a óleo de Gago Coutinho e ali permutávamos informações sobre o que andávamos a fazer, ele era um leitor crónico do Boletim Oficial da Guiné, vasculhava tudo sobre Bolama e Bissau, não só do tempo em que lá andou, na juventude, mas com o firme propósito de estudar Bolama, dali saiu livro pertinente e útil, a que juntou outros estudos como as Nharas, a Carlota e a Bijagó, figuras que sempre o entusiasmaram. Tive a oportunidade de ler o seu artigo, bem original, sobre os chineses em Catió, chegados na alvorada do século XX, e depois o importante trabalho que fez com o Philip Harvik, publicado na revista Africana Studia, N.º 17, 2011. Permitam-me que volte a repertoriar a matéria deste trabalho, aqui o deixo com abraço saudoso deste homem bom. Os autores recordam a utilização de degredados para os trabalhos públicos e administrativos em territórios coloniais. No caso da Guiné, a maioria dos condenados vinha de Cabo Verde, mas a introdução de mão de obra, vinda de outras colónias, também se insere nas mudanças operadas no decurso do século XIX, e que aparecem associadas ao fim do tráfico de escravos e no início da plantação de culturas de renda (caso do algodão, o cacau, o café e o amendoim). Indo diretamente à Guiné, o sinal da transformação deu-se com a introdução do amendoim e a colheita de amêndoas de palmeira. Em simultâneo, a cultura do arroz sofreu alterações profundas através da comercialização na região da África Ocidental de variedades originárias da Ásia, novidade introduzida por comerciantes da Gâmbia inglesa.

Em suma, a criação de explorações agrícolas e comerciais, as chamadas pontas da Guiné, irão ser uma realidade a partir da terceira década do século XIX. A monocultura do amendoim fez com que a Guiné ficasse muito exposta à volatilidade dos mercados, pelo que se explica que a descida das cotações se saldo no fim das pontas, nos anos 1980 do século XIX. Passemos agora para os chineses.

O envio dos primeiros chineses insere-se numa tentativa de se trazer à força novos braços. Eles vieram provavelmente da zona de Cantão do estuário do Rio das Pérolas. Os primeiros cantonenses chegaram à Guiné em 1902, é uma presença diretamente associada à expansão de orizicultura no sul da Guiné a partir das primeiras décadas do século XX. Traziam conhecimentos do cultivo do arroz, estes chineses criaram as condições para um processo de migração em massa de comunidades africanas do interior para terras ainda não aproveitadas. Inevitavelmente, deu-se a mestiçagem, é bem provável que longe dos olhares metropolitanos e até da governação. Os autores recordam que após 1891 se intensificaram as campanhas militares, os Bijagós mostravam-se indomáveis, pouco ou nada recetivos a tratados de paz. Os Nalus afastaram-se das investidas dos Biafadas e dos Fulas, migraram para o Baixo Cacine, Cantanhez e para os Rivières du Sud (rios Componi e Nuno) na Guiné francesa. A presença destes chineses é marcante no Tombali, região onde havia um posto militar português e algumas feitorias. Os autores referem o estabelecimento de pontas, com a anuência dos chefes Nalus e recordam que o rio Tombali se tornou uma área de fixação de ponteiros de origem cabo-verdiana. Não sendo abundante a documentação sobre a presença chinesa, há indícios nos arquivos de pelo menos dois chineses que se diziam oriundos de Macau e eram à época residentes em Bolama, tinham feito um pedido de repatriação em 1909.

Os autores mostram fotografias de descendentes chineses em Catió, estes chineses abriram caminho para o desenvolvimento da orizicultura, ela será potenciada pelos Balantas, que fizeram um povoamento que correu de forma pacífica. Lembram igualmente os autores que aí pelos anos 1930, a Guiné era uma colónia em regime anárquico de concessão de terras. Em jeito de conclusão, dizem os autores que estes chineses se integraram na sociedade guineense, mas não pode ser escamoteado que tinham o estigma de degredados, e por isso eles apresentavam-se como refugiados. Quando chegou a hora da luta pela independência, estes descendentes de chineses dividiram-se entre o apoio ao PAIGC, trabalhar na administração colonial ou vieram para Portugal. E concluem enfatizando a necessidade de continuar os estudos sobre a presença das comunidades chinesas das antigas colónias portuguesas. Não quero terminar aqui a minha homenagem ao António Estácio, permitam-me oportunamente referenciar outros títulos que ele dedicou à sua tão extremosa Guiné.

Recriar a China na Guiné: os primeiros chineses, os seus descendentes e a sua herança na Guiné Colonial. Africana Studia. N.º 17 (2011) Publicado em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/AfricanaStudia/article/view/7379/6763

Publicado em: Guiné 63/74 – P14926: Notas de leitura (740): “Recriar a China na Guiné: os primeiros chineses, os seus descendentes e a sua herança na Guiné colonial”, artigo assinado por Philip J. Harvik e António Estácio (Mário Beja Santos).


Revista Africana Studia, 2.º semestre, 2011
Uma imagem de Catió na atualidade
© Reuters - Com a devida vénia
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Nota do editor

Vd. poste de 9 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23510: In Memoriam (445): António Júlio Emerenciano Estácio (Bissau, 1947 - Algueirão, Sintra, 2022): foi alf mil, RM de Angola (1970/72), viveu e trabalhou em Macau (1972/98) e era um apaixonado pela sua terra e as suas gentes

Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23523: In Memoriam (447): Gen João Almeida Bruno (1935-2022): cerimónias fúnebres na Academia Militar, capela do Palácio da Bemposta... E recordando também a sua memória da Op Ametista Real (Senegal, 1973), de que ele foi o comandante

Guiné 61/74 - P23535: (Ex)citações (413): o mito da invencibilidade do Batalhão de Comandos da Guiné, quebrado em Cumbamori, segundo a versão do meu irmão mais velho, o sold 'comando' Cissé Candé, da 3ª CCmds Africanos (Cherno Baldé, Bissau)

Guião do Batalhão de Comandos da Guiné (1972/74)


Ficha de unidade: Batalhão de Comandos da Guiné
Identificação: BCmds
Crndt: Maj Cav Cmd João de Almeida Bruno | Maj Inf Cmd Raul Miguel Socorro Folgues | Maj Inf Cmd Florindo Eugénio Batista Morais
2º Crndt: Cap Inf Cmd Raul Miguel Socorro Folques | Cap Inf Cmd João Batista Serra | Cap Cav Cmd Carlos Manuel Serpa de Matos Gomes | Cap Art Cmd José Castelo Glória Alves
Início: 2nov72 | Extinção: 7set74

Síntese da Actividade Operacional 

A unidade foi criada, a título provisório, em 2nov72, a fim de integrar as subunidades de Comandos da Metrópole em actuação na Guiné e também as CCmds Africanas, passando a superintender no seu emprego operacional e no seu apoio administrativo e logístico.

Em 1abr73, o BCmds foi criado a título definitivo, tendo a sua organização sido aprovada por despacho de 21fev73 do ministro do Exército.

Desenvolveu intensa actividade operacional, efectuando diversas operações independentes em áreas de intervenção do Comando-Chefe ou em coordenação com os batalhões dos diferentes sectores onde as suas forças foram utilizadas, nomeadamente nas regiões de:

  • Cantanhez (operação "Falcão Dourado", de 15 a 19jan73, e operação "Kangurú Indisposto", de 21 a 23 mar73); 
  • Morés (operação "Topázio Cantante", de 25 a 27jan73); 
  • Changalana-Sara (operação "Esmeralda Negra", de 13 a 16fev73); 
  • Morés e Cubonge (operação "Empresa Titânica'', de 27fev73 a 1mar73); 
  • Samoge-Guidage (operação "Ametista Real", em 20 e 21mai73); 
  • Caboiana (operação "Malaquite Utópica", de 21 a 22jul73 e operação "Gema Opalina", de 24 a 27set73); 
  • Choquernone (operação "Milho Verde/2", de 14 a 17fev74); 
  • Biambifoi (operação "Seara Encantada", de 22 a 26fev74):
  • Canquelifá (operação "Neve Gelada", de 21 a 23mar74), entre outras. 

As suas subunidades, em especial as metropolitanas, foram ainda atribuídas em reforço de outros batalhões, por períodos variáveis, para intervenção em operações específicas ou reforço continuado do  

Das operações efectuadas, refere-se especialmente a operação "Ametista Real", efectuada de 17 a 20mai73, em que, tendo sofrido 14 mortos e 25 feridos graves, provocou ao inimigo 67 mortos e muitos feridos, destruindo ainda:

  •  2 metralhadoras antiaéreas;
  • 22 depósitos de armamento e munições com:
  • 300 espingardas, 
  • 112 pistolas-metralhadoras, 
  • 100 metralhadores ligeiras, 
  • 11 morteiros,
  • 14 canhões sem recuo, 
  • 588 lança-granadas foguete, 
  • 21 rampas de foguetão 122, 
  • 1785 munições de armas pesadas, 
  • 53 foguetões de 122,
  • 905 minas 
  • e 50.000 munições de armas ligeiras.

Destacou-se também, pela oportunidade da intervenção e captura de 3 morteiros 120, 367 granadas de morteiro, 1 lança granadas foguete e 2 espingardas e 26 mortos causados ao inimigo, a acção sobre a base de fogos que atacava Canquelifá, em 21mar74.

Em 20ago74, as três subunidades de pessoal africano (1ª, 2ª e 3ª CCmds Africanos)  foram desarmadas, tendo passado os seus efectivos à disponibilidade. Em 7set74, o batalhão foi desactivado e exinto.

Observações - Não tem História da Unidade.

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: fichas das unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pp.646/647.


1. Comentário de  Cherno Baldé (nosso colaborador permanente, assessor para as questões etno-linguísticas, economista, Bissau) ao poste P23523 (*)

Caros amigos,

A batalha de Cumbamori (OP Ametista Real, Samoge-Guidage,20-21 mar 1973) mudou a  a minha/nossa percepção sobre a guerra da Guiné e, sobre os Comandos (Africanos) em particular, pois de regresso à nossa aldeia, depois de participar nesse ataque, o soldado comando Cissé Candé (3ª CCmds Africanos), na qualidade de irmão mais velho, disse-nos que, definitivamente, para se ser um bom Comando, também, devia-se saber correr e bem. 

Segundo Cissé, em Cumbamori os Comandos atacaram com a máxima força e coragem, mas receberam uma resposta ainda mais violenta da parte dos guerrilheiros, surpreendidos em sua prória casa, onde até as árvores disparavam contra os invasores. 

No fim, sem munições de reserva, tiveram que fugir, sim isso mesmo, fugir, perseguidos pelos donos da casa, incluindo carros blindados do exército senegalês chamados em apoio da guerrilha. 

Esta foi a versão que ouvimos na altura.  com  estas palavras do Cissé,  nessa noite nos perturbou o sono e mudou  a nossa forma de ver e sentir a guerra à nossa volta e de olhar para os Comandos Africanos da Guiné que afinal também eram mortais como todos os outros soldados.

Até aquele dia, estavamos inocente e firmemente convictos de que um Comando era um militar invencivel em quaisquer circunstâncias e que nunca virava a cara à luta fosse ela qual fosse, tal era a nossa crença na força e coragem dos mesmos, independentemente da propaganda de um e doutro lado.

No regulado de Sancorla (minha terra), quando uma criança (de sexo masculino) chorava no colo da mãe, esta consolava-a com a promessa de que a entregaria para fazer parte dos bravos Comandos quando crescesse e fosse homem, a fim de combater pela defesa da sua terra.


"Comando quer Comida ? NÃO !"

"Comando quer Bajuda ? NÃO !"

"Comando quer Bianda ? NÃo !"

"Comando quer Guerra ? SIM !"

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé (**)

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Guiné 61/74 - P23534: Parabéns a você (2091): Maria Alice Carneiro, Amiga Grã-Tabanqueira (Lisboa e Lourinhã), esposa do nosso Editor Luís Graça

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Nota do editor

Último poste da série de 17 de Agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23530: Parabéns a você (2090): José Manuel Cancela, ex-Soldado Apontador de Metralhadora da CCAÇ 2382 (Aldeia Formosa, Contabane, Mampatá e Buba, 1968/70)

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23533: Historiografia da presença portuguesa em África (330): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
É mais a riqueza do olhar, a sinceridade do proselitismo que nos atrai na prosa do Padre António Joaquim Dias que labutou na Guiné cerca de oito anos e meio e regressou a Portugal em 1942 publicando as suas impressões e a história do regresso dos Franciscanos à Guiné no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira. Recordo que estes apontamentos seguramente foram tidos em conta pelo Padre Henrique Pinto Rema responsável por aquele que é seguramente o mais completo estudo sobre a história das missões católicas da Guiné, infelizmente esgotado. A vivacíssima descrição do Padre Dias permite-nos igualmente tomar nota do estado de desenvolvimento da Guiné, a importância que se atribuía à navegação marítima na ausência de infraestruturas rodoviárias e também se pode verificar pela leitura que ele faz do mosaico étnico, o que então era tido como conhecimento etnográfico, etnológico e antropológico.

Um abraço do
Mário



Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (2)

Mário Beja Santos

Que grande surpresa, estas Impressões da Guiné escritas por um missionário que ali viveu mais de oito anos, são documentos que ele vai publicando ao longo dos anos no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira, ainda não sei o que nos reserva este conjunto de cartapácios, a verdade é que há imagens magníficas sobretudo no noticiário guineense. O padre António Joaquim Dias escreve como se estivesse a conversar com o leitor e agora prepara-se para viajar, falando-nos do território, cita um relatório datado de 1928 intitulado “Missão Botânica e de Reconhecimento Agrícola. Relatório sobre a flora da Guiné Portuguesa”, é seu autor o engenheiro agrónomo António de Figueiredo Gomes e Sousa: “O solo da parte plana é formado exclusivamente de aluviões argilosas, misturadas até certo ponto de sedimentos arenáceos, as quais derivam, ao que parece, de fortes arrastamentos das terras altas do Futa-Djalon, sob a ação de grandes cursos de água, hoje extintos, que tiveram no território um largo delta, como se depreende da existência dos longos estuários dos rios Cacheu, Geba, Grande de Buba e Cacine, e da constituição e localização das ilhas dos Bijagós”.

E o mesmo autor faz referências à geologia, distinguindo as terras altas e rochosas do Boé, bastante arenosas, de vegetação pobre e de pouca fauna, e em que predominam as laterites férricas e as terras baixas com os seus pântanos e os leitos dos rios, e depois dissera sobre bolanhas e lalas, que se acham desprovidas de sedimentos arenáceos, e tece o seguinte comentário: “Argila e húmus, roubados às terras pelas chuvas torrenciais, são carreados em quantidade para os rios e para o mar, pelas inundações e pelas marés ao retirarem”. E assim se compreende estes rios, canais e braços de mar que recortam o território em quase todas as direções. E pretende explicar ao leitor algo que lhe possa passar despercebido: “Os rios tomam os nomes das povoações indígenas principais que banham ou ainda os das regiões que servem. O mesmo rio recebe, às vezes, nomes diferentes, segundo a altura do seu percurso. Isto explica-se pelo isolamento em que viveram as tribos até aos nossos dias. Compreende-se como o rio Cacheu teve, pelo menos, os nomes de Cacheu, São Domingos e Farim; e o Corubal mantém ainda os de Cocoli, Gabú, etc.”.

E faz uma pequena descrição dos diferentes rios, só como curiosidade vejamos o que ele escreve sobre o Rio Grande de Bolola ou Buba:
“Teve importância, nos séculos passados, quando o negócio se movimentava nas povoações das suas margens: Biguba ou Buba, Guinala ou Quínara, Bisségue ou Cubisseque e Balola ou Bulola. Hoje serve a minúscula povoação de Buba, onde se bifurca para terminar quase logo, e ainda as propriedades agrícolas ou pontas, poucas e decadentes. Este esteiro de água salgada, cheio de braços enganosos para todos os lados, vai roendo a região de Quínara, da qual já desanexou as ilhas de Bolama e das Cobras, como também ajudara o Tombali a desanexar da zona do Cubisseque a Ilha dos Escravos. Como seus parceiros, o Cumbidjã, ajudado por braços de mar a quem chamaram rios, apressa-se a esfacelar o chão dos Nalus; mas Tombali, Cumbijã e Cacine, especialmente os dois primeiros, constituem estradas magníficas para a saída do não menos belo arroz daquela zona, de que é centro e metrópole comercial a povoação de Catió, recentemente elevada a sede de Administração Civil”.

E dá-nos seguidamente uma descrição da organização administrativa da Guiné, recorda o leitor que temos por vezes noticiário a que o estudioso não pode ficar indiferente, será o caso da descrição da missão dos Felupes em que se vê uma imagem da casa em construção que serve de igreja, escola e residência missionária, apraz registar um comentário sobre esta etnia: “Bastam-se a si mesmos. No seu chão encontram tudo o que lhes é indispensável para a vida. A palmeira dá-lhes o coconote, o azeite e o vinho, e o solo arroz em abundância. E não têm outras necessidades. Pelo que a vida lhes corre mansamente. Os portugueses cedo tentaram infiltrar-se entre eles, mas encontraram uma oposição pertinaz. Os mesmos cabo-verdianos que tão habilmente penetraram nas terras de outras tribos da Guiné, quando se aventuravam ao país dos Felupes levavam uma vida de receios”.

Encontrei igualmente neste fecundo Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira outros textos intercalados com as memórias do Padre António Joaquim Dias que darão leitura estimulante a quem investiga as coisas da Guiné. Logo um primeiro texto sobre o primeiro decénio da missão franciscana da Guiné, haverá um comentário da redação a dizer que saiu do punho do mesmo Padre António Joaquim Dias. Não nos esqueçamos que estamos nos primeiros anos da década de 1940, foi mais precisamente em 1942 que o Padre Dias voltou da Guiné e já tinha preparado um texto para publicação. Lembra-nos que cerca de vinte anos atrás o Governo Português, logo na pessoa do comandante João Belo, empenhara-se no ressurgimento missionário das colónias como complemento indispensável a “nossa colonização integral e classicamente portuguesa”.

O prelado diocesano não dispunha de clero para esta ressurreição na Guiné e no final do ano de 1929 foi tomada a decisão pela Direção das Missões de Cabo Verde em organizar o serviço missionário na Guiné, contava com o apoio da legislação promulgada pelo governador Leite de Magalhães. Foram os Franciscanos que aqui retornaram, foi nomeado Vigário-Geral o Cónego António Miranda de Magalhães que desconhecia a Guiné, elaborou um plano organizativo que o Padre Dias considerou enfermar de vários defeitos essenciais. Foi em 1932 que se constituiu a primeira Missão Franciscana da Guiné que aqui chegou em fevereiro desse ano, de Bolama foram a Bissau e depois a Cacheu. Não havia onde albergar os missionários em Cacheu, lá se arranjou um velho casarão, os autóctones cederam algum mobiliário e o Padre Dias comenta que era uma instalação verdadeiramente franciscana. Os recém-chegados dirigiram-se ao Vigário-Geral propondo uma missão católica central onde coubesse a formação de escolas para o ensino profissional e agrícola, propunha-se Bula para sede desta missão, para aproveitar os edifícios do Estado, o Vigário-Geral aceitou a transferência de Cacheu para Bula, vários missionários foram colocados em Cacheu e Farim.

O Padre Dias descreve os edifícios de Bula e o entusiasmo manifestado por muitos autóctones, as crianças iam à escola primária e tece o seguinte comentário:
“Os Manjacos do Churo tinham oferecido resistência tenaz ao pacificador da Guiné, Teixeira Pinto, mas acolheram bem a escola missionária, como ser um meio ainda absolutamente indígena e gentio. Foi situada a poucos metros da residência do régulo, foi feita de pau a pique, coberta a palha. Aberta por um professor indígena contratado, passou, depois, aos cuidados do auxiliar secular europeu António José de Sousa, que para ali fora de bom grado. Dormia, coitado, a um canto da escola, incomodamente, e cozinhava para si mesmo, ao fim da aula”.

No ano de 1933, aumentou o pessoal missionário com quatro Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas para educação de raparigas indígenas num internato de Bula. O Governo da Colónia concedeu verba para a criação de uma escola em Bula, em regime de internato, para professores e indígenas de ambos os sexos. Alargou-se o sistema educativo ao regulado de Có, construiu-se ali escola missionária. As irmãs tratavam dos doentes, ele fala no tratamento de úlceras por vezes horripilantes. Em 1934 chegou o novo Vigário-Geral, veio acompanhado de mais dois missionários. Um comerciante de Farim, Mário Lima Wahnon, cedera às missões gratuitamente 2000 metros quadrados de terreno para construção de uma igreja, só que faltou verba para as obras, os ofícios religiosos eram celebrados num edifício dispensado por uma casa comercial francesa. Entrou em funcionamento o internato masculino de Bula e a respetiva escola, só que este missionário adoeceu gravemente, foi uma operação delicada manter aberta a escola de Có.
Veremos seguidamente a evolução missionária entre 1935 e 1937 e vamos sentir o olhar perscrutante do Padre Dias a falar das diferentes etnias.

(continua)

Frei Henrique Pinto Rema, Palácio de Belém, 9 de outubro de 2018, condecorado com a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23513: Historiografia da presença portuguesa em África (329): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (1) (Mário Beja Santos)