terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23874: História de vida (50): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra) - Parte III: Relembrando o enorme prazer de saltar de paraquedas (e os meus instrutores, srgt Nogueira e cap Cordeiro)... O último salto que fiz, foi em dezembro de 1973, quatro meses antes de passar à disponibilidade


Cópia do documento atestando a atribuição do grau de Cavaleiro da Ordem de Benemerência 
à alferes enfermeira paraquedista Maria Ivone Quintino dos Reis, em 28 de fevereiro de 1962.  O original foi doado ao museu do RCP (Regimento de Caçadores Paraquedistas), em Tancos.


Foto (e legenda): © Rosa Serra (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Rosa Serra, em Ponte de Lima,
24 de agosto de 2020.
Foto: António Mário Leitão (2020)


 1. A Rosa Serra, natural de Vila Nova de Famalicão,   fez o curso de enfermagem no Porto, tendo aí conhecido a veterana Maria Ivone Reis (1929-2022), em 1967,  quando esta andava a recrutar jovens enfermeiras para a FAP (*). Fez o 45.º curso de paraquedismo, sendo "brevetada" em 13 de março 1968. Foi graduada em alferes enfermeira paraquedista.  

Conheceu os três teatros de operações da "guerra do ultramar": Guiné 1969-70, Angola 1970-71, e Moçambique 1973. Passou  à disponibilidade em 1 de março de 1974. Tem sido, juntamente ccom a Maria Arminda Santos e a Giselda Pessoa,  uma das mais mais ativas e profícuas autoras de textos sobre a história das enfermeiras paraquedistas e as suas protogonistas. 

Vive em Paço de Arcos, Oeiras. É membro da nossa Tabanca Grande desde 25/5/2010. É coordenadora literária e coautora do livro "Nós, Enfermeiras Paraquedistas", 2.ª edição, Porto, Fronteira do Caos, 2014, 439 pp. 

Está a ultimar um livro com a sua história de vida como enfermeira e enfermeira-paraquedista. Como "aperitivo", estamos a reproduzir aqui, por cortesia sua, um texto inédito seu, de 21 páginas, que nos chegou às mãos através de um amigo e camarada comum, o Jaime Silva, ex-alf mil paraquedista, BCP 21 (Angola, 1970-72) (**), membro da Tabanca do Atira-te ao Mar (... e Não Tenhas Medo), Lourinhã.



Rosa Serra, ex-alf enf paraquedista
(Guiné, 1969/79; Angola, 1970/71;
Moçambique, 1973)


História de vida (excertos): sinto-me muito realizada e feliz por ter sido uma simples enfermeira e, durante a guerra, enfermeira paraquedista (Rosa Serra)

Parte III:  Relembrando o enorme prazer de saltar de paraquedas (e os meus instrutores, srgt Nogueira e cap Cordeiro)  ... O último salto que fiz,  foi em dezembro de 1973,  quatro meses antes de passar à disponibilidade

E continuei seguindo a ordem das perguntas, agora sobre as desilusões (**) que expliquei não ser no plano pessoal, mas que foi nesta passagem pela Força Aérea, que despertei para os interesses de algumas pessoas, uma delas que serviu mal a Força Aérea, mas aproveitou-se bem dela, com incapacidades falsas, dadas por médicos sem escrúpulos, e que todos nós pagámos com os nossos impostos, para essa pessoa estar isenta de IRS com uma alta incapacidade há mais de quarenta anos.

É a única mulher “combatente” na lista dos deficientes das Forças Armadas, dos antigos combatentes da guerra do Ultramar Português. Desculpem a expressão, é uma “ovelha tresmalhada”, para nossa tristeza e desilusão, que não pode servir de exemplo para ninguém.

É triste ver uma nossa enfermeira, sempre saudável, que ignora os princípios éticos, inerentes à sua profissão, a Enfermagem.

Foi ainda como enfermeira paraquedista que despertei para muitos outros interesses que me escandalizaram:  caso dos Açores.

Sempre achei estranho situar-se na Ilha Terceira, um minúsculo hospital, rotulado como Hospital da Força Aérea, existindo apenas nessa ilha uma única Unidade Militar (BA 4) que, se algo acontecesse aos jovens militares, poderiam recorrer ao hospital civil, de Angra do Heroísmo, enquanto que no Continente existiam várias Bases Aéreas espalhadas pelo País, e sem qualquer hospital desse Ramo.

Os militares da Força Aérea só poderiam ser tratados ou socorridos no Hospital Militar da Estrela.

Nesta ilha açoriana existia um médico, salvo erro graduado em tenente coronel, que,  ao saber da existência de enfermeiras paraquedistas e sendo amigo do Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea em Lisboa, pediu a este se poderia enviar duas delas aos Açores, pois gostaria de as conhecer.

O Senhor Diretor assim fez, enviou duas enfermeiras que, ao chegarem lá, arregaçaram as mangas e com o seu profissionalismo, deram uma volta tal à orgânica, dos fracos serviços de enfermagem lá prestados, que o sr. Diretor gostou tanto que avançou logo com novos pedidos, ao seu amigo de Lisboa. Como os argumentos que iria usar, acreditava ele, que o Diretor de Lisboa não iria recusar.

A primeira proposta foi para que as enfermeiras paraquedistas, após o curso de paraquedismo e como forma de adaptação aos Serviços de Saúde Militar, passassem a fazer um estágio no Hospital da Terra Chã e só depois seguiriam para o Ultramar.

(Note-se: nessa altura havia uma enfermeira que quando se candidatou a paraquedista, desempenhava as suas funções no Serviço de Urgência do Hospital Central da Cidade onde trabalhava e, pasmem-se, também essa foi fazer estágio aos Açores no pequeno hospital da Ilha Terceira. Enquanto que o primeiro curso de Enfermeiras Paraquedistas, após concluído o curso de paraquedismo, foi fazer um estágio no Serviço de Urgência do Hospital de S. José. Espantados…? Eu também.)

Voltando ao nosso Diretor da Terra Chã:  pouco tempo depois, deparou-se com um obstáculo, houve anos em que nenhuma enfermeira se candidatou a Enfermeiras Paraquedista.

Esperto como era, o Senhor Diretor dos Açores apresentou nova ideia ao seu amigo de Lisboa:  

–  Senhor Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea Portuguesa  argumentou ele –, coitadas das nossas enfermeiras, com um trabalho tão desgastante no Ultramar, bem merecem descansar nesta pequena, pacata e linda Ilha Açoriana durante uns tempos.

E para lá foram descansar algumas. Mas,  como em tudo, há sempre alguém que não está na Força Aérea para fazer favores a este tipo de pessoas, até que chegou o dia em que o sr. Diretor de Lisboa informou essa enfermeira que teria de ir para os Açores.

Essa senhora enfermeira foi, mas apenas para arranjar argumentos suficientes para nunca mais lá pôr os pés. Passado pouco tempo da sua estadia na bela Ilha Açoriana, a mesma enfermeira foi à BA 4,  pediu uma viagem para Lisboa e apresentou-se na Direção do Serviço de Saúde da Força Aérea em Lisboa, colocando os seus motivos para não voltar aos Açores.

Perante os argumentos apresentados,  o sr. Diretor do Serviço de Saúde da Força Aérea de Lisboa ligou logo para a  ilha, informando o seu amigo e lamentando que a dita enfermeira tinha argumentos demasiado fortes para não ir para os Açores. E acrescentava que, de facto, as enfermeiras paraquedistas, não tinham sido  criadas para essas funções.

O diretor Açoriano, com a sua prepotência, barafustou até se cansar e rematou que não era a sra. enfermeira que se recusava, era ele que não a queria lá, pelo seu mau feitio.


A então ten enf pqdt Ivone Reis,
em Cacine, 12/12/1968. Nasceu
em 1929, faleceu em 2022.
Foto: António J. Pereira
da Costa
 (2013)



Como curiosidade, que eu saiba, do primeiro curso de enfermeiras paraquedistas foi esta a única enfermeira paraquedista que,  no ano seguinte após concluído o curso de enfermeiras paraquedistas, lhe foi atribuído o grau de Cavaleiro da Ordem de Benemerência,  dada pelo sr. Presidente da República Américo Tomás, visto e registado a fl. 109 L.2 Decreto de 28 de fevereiro 1962, publicado no Diário do Governo nº 73, 2ª série de 27/3/1962, Expedido pelo Chancelaria das Ordens Portuguesas aos 3 de abril, de 1962, nº 1588. Por tanto cerca 6 meses depois, do primeiro curso de Enfermeiras Paraquedistas terminar a meio de agosto de 1961.

Em cima  a foto do respetivo diploma cujo original foi oferecido para o museu do 
Regimento de Caçadores Paraquedistas (RCP), em Tancos, no dia 15 de outubro de 2022.

Entretanto o  RCP, em Tancos, que tinha uma elevada noção de guerra, sabia que os primeiros socorros em terra, mesmo antes do Helicóptero de Socorro chegar, são importantes e, como tropa organizada e inteligente que é, teria de ter sempre alguém capaz para analisar qualquer situação, como: proteção à clareira onde o Helicóptero pudesse aterrar em segurança, assim como alguém devidamente preparado, que prestasse os primeiros socorros aos seus camaradas feridos, até esta aeronave chegar e os levar para o hospital.

A Direção do Serviço de Saúde da Força Aérea apenas se preocupava com os ditos “enfermeiros” da Força Aérea, que nos Açores aprendiam a dar comprimidos, injeções e a desinfetar pequenas escoriações e com fracas noções de assepsia.

Os paraquedistas resolveram a sua questão, não deixando que a Direção de Saúde da Força Aérea de Lisboa resolvesse o seu problema. Assim, nomearam enfermeiras paraquedistas, em anos diferentes para,  no próprio Regimento,  darem um Curso Avançado de Primeiros Socorros aos seus camaradas paraquedistas, acompanhando-os no respetivo estágio feito no Hospital Militar Principal em Lisboa.  

E os socorristas Paraquedistas ficaram mais bem preparados, e de forma mais adequada e mais eficaz, para poderem cuidar dos seus camaradas quando feridos ou doentes, até o Helicóptero chegar e os levar para o hospital.

Deixaram assim os “enfermeiros” da Força Aérea, sossegados nas suas Bases Aéreas,  a fazerem precárias tarefa tal como lhes ensinaram.

Foram três enfermeiras paraquedistas que, em anos diferentes, foram nomeadas para darem formação adequada aos seus camaradas socorristas paraquedistas e os acompanharam no seu estágio no Hospital Militar da Estrela em Lisboa.

Quando chegou a minha vez, após dar à formação aos nossos socorristas paraquedistas, com respetivo acompanhamento do estágio feito no Hospital Militar da Estrela, aproveitei e formulei um pedido ao nosso comandante, sr. coronel Fausto Marques, autorização para fazer o curso de instrutores e monitores, tal como a enfermeira Manuel França o tinha feito 2 ou 3 anos antes. 

Fui autorizada e concluí-o com muito gosto. Fiz este curso apenas pelo prazer de saltar e considero ter sido mais um contributo para o meu próprio equilíbrio. Devo este prazer de saltar ao meu instrutor do curso de paraquedismo, na altura o senhor sargento pqdt Nogueira, meu querido instrutor, que me estimulou o prazer de saltar.

Sempre me disse que eu saltava muito bem da torre e por isso podia perfeitamente tirar partido desses momentos mágicos que os saltos nos proporcionam. Dizia-me ele; 

–   Primeiro logo que larga a porta,  mantem o corpo recolhido e conta 232, 233, 234, que é o tempo para a calote se soltar do arnês e abrir. Depois é necessário verificar se todos os cordões não estão enrolados, e saber de que lado vem o vento. Com os pequenos minutos que lhe restam,  aproveita para olhar mais longe, ver o horizonte, ver a terra de cima. Depois certifica-se de que lado vem o vento e,  se necessário,  fazer trações, para que este não a leve para zonas não aconselhadas, evitando assim acidente.

Sempre fiz isso, tudo como ele me ensinou. Apenas me surpreendeu o silêncio, que o “escutei“ com surpresa e foi maravilhoso. Razão por que anos mais tarde pedi ao nosso primeiro comandante Fausto Marques, para fazer o curso de instrutores e monitores só pelo prazer de saltar. Foi meu instrutor neste curso o sr. capitão pqdt João Costa Cordeiro que, quando acabei o curso me convidou para um jantar em Abrantes com ele e com a sua esposa.

Fiquei tristíssima quando,  poucos anos depois,  ele foi para a Guiné e morreu num salto de queda livre.

Fiz vários saltos, sendo o último feito na Beira,  em Moçambique. quando de passagem para Lisboa, vinda de Mueda no fim da minha comissão, aguardando no BCP 32 pelos feridos, que vinham de Lourenço Marques. 

O primeiro foi um salto automático e,  acabada de chegar a terra e logo de seguida,  vi a filha do engenheiro Jardim, a Carmo, junto a um Helicópetro da Força Aérea,  equipada para fazer um salto manual, eu que estava junto de um paraquedista perguntei-lhe se havia um paraquedas para eu fazer um salto manual. Como foi buscar de imediato um, eu informei o piloto, que estava já dentro da aeronave,  que também eu ia saltar. 

Assim foi,  entrámos as duas, e a Carmo nem “tugiu nem mugiu", simpática pensei eu, mas ignorei a presença da dita filha do engenheiro Jardim, entrámos. Ela ficou mais perto da porta quando já estávamos numa altura suficiente,  já não sei a quantos metros de altitude, ela saltou e, de seguida, saltei eu. Foram os dois últimos saltos que dei e a última comissão que fiz. Fins de dezembro de 1973.

É de notar que nunca viemos como passageiras, mesmo em fim da comissão, sempre viemos prestando cuidados e assistência aos feridos durante toda a viagem até Lisboa.

(...) 

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Links / Titulo e subtítulo / Parênteses retos com notas: LG]

____________

Notas do editor:

(...) Muito recentemente, ao sair do Serviço de Urgência para o internamento do Hospital de Cascais, uma enfermeira jovem fez-me as seguintes perguntas: (i) quando resolveu ser enfermeira?;  (ii) nunca se arrependeu por ter escolhido enfermagem?;  (iii) onde trabalhou? (iv) quantos anos exerceu essa profissão?;  e (v) teve alguma desilusão ou desilusões?

Após a minha narrativa dos vários locais onde exerci a minha profissão, logicamente também referi que fui enfermeira paraquedista. A jovem, de olhos abertos de espanto, informou-me:

– O meu marido é militar paraquedista.

Sorri… (...)



(...) Perguntaram-me, no Hospital de Cascais onde estive recentemente internada, onde trabalhei, e ficaram admiradas, as enfermeiras, quando desfiei os vários locais e as experiências que tive durante quarenta anos.

Há um que deixou todas ainda com mais espanto. Foi o período em que estive na Força Aérea, como enfermeira paraquedista. (...)

Guiné 61/74 - P23873: Agenda cultural (822): A entrevista do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado dada ao programa Mar de Letras, da RTP/África, vai para o ar amanhã, dia 14 de Dezembro, às 21,30 horas

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 12 de Dezembro de 2022:

Caros Camaradas,
Vivam, Todos.
Com uma saudação de camaradagem, envio para atempada e eventual publicação.
Paulo Salgado


Por certo, já reparastes: as raízes da minha Terra Transmontana e África – eis a essência, a base, da minha escrita.

Venho, de novo, abusando, informar que na entrevista no programa Mar de Letras, da RTP/África falo dos outros. Do Outro. Porém, todos sabemos que na ficção, seja pura, seja histórica, transparece muito das vivências dos autores. Que o digam Mia Couto ou António Lobo Antunes, Pepetela ou Aquilino, Jorge Amado ou João Tordo…

Por isso, peço desculpa. Faço-o pelas “minhas” personagens, reinventadas, que só terão vida, se delas nos lembrarmos. Uma revivida…
Assim, informo: a entrevista passará na RTP/África, programa Mar de Letras, no dia 14 de Dezembro, às 21,30.
Posição do canal RTP África em Portugal: MEO – 196; NOS – 190; Vodafone – 177.

Para quem desejar, poderá aceder através dos links - https://www.rtp.pt/programa/tv/p41701/e44

Quando o programa for emitido ficará disponível neste link: https://www.rtp.pt/play/p9785/mar-de-letras

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23851: Agenda cultural (821): Diogo Picão, na Lourinhã, sua terra natal, sábado, 10 de dezembro de 2022, às 21h30, para o lançamento do seu segundo álbum, "Palavras Caras"

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23872: Boas festas 2022/2023 (2): Desde os 34 graus negativos da noite de hoje (brrr!!!!....) no extremo norte da Suécia, os votos de um Feliz Natal e Bom Novo Ano (J. Belo)



O tempo passa mas as" infantilidades" ficam... (felizmente!)

Imagem e legenda: Cortesia de J. Belo (2022)


1. Mensagem de Joseph Belo

Data -12 dez 2022 21:05
Assunto - 

Desde os 34 graus negativos da noite de hoje no extremo norte da Suécia, os votos de um Feliz Natal e Bom Nova Ano.



José (Joseph, para os suecos, os lapões ou "suomi", os americanos, etc.) Belo, o só J(ota) Belo, para os amigos e camaradas,  o mais "estrangeirado" dos membros da "diáspora lusófona" da Tabanca Grande (que vai de Toronto a Sidney, passando por Macau), reparte a sua vida, o seu tempo, entre a Suécia, a Lapónia e o EUA (nomeadamente Key West, Florida).  Em boa verdade, nunca sabemos onde ele  está em cada momento, mas tem um provérbio lusitano de grande profundidade filosófica, e que já foi adotada pelos cinco milhões de "tugas" que não cabem cá dentro do rectângulo ibérico: "A felicidade está onde a gente a põe... E eu, desde que saí de Portugal, há um ror de tempo,  ponho-a sempre onde estou"...

Na outra encarnação,  foi alf mil inf, CCAÇ 2391, "Os Maiorais", Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70)... E a prova disso é que ainda é (!) cap inf ref do exército português... Foi o autor da saudosa a série "Da Suécia com Saudade"...Tem 232 referências no nosso blogue.

Obrigado, Zé, pelos teus votos natalícios e,  se vires o teu vizinho, o pai Natal, diz-lhe para ele dar um jeitinho ao desarranjo do mundo, do clima e do calendário... (Eu sei que tu, como bom cidadão "assuecado", não metes cunhas a ninguém, e muito menos ao teu vizinho... Mas v~e se o imoressionas: olha, a gente há tempos veio aqui para a rua, aflitos, a clamar aos deuses, em procissão, e a gritar "tomara que chova, três dias sem parar!"... O São Pedro ouviu-nos, abriu a torneira, mas esqueceu-se de fechá-la ao terceiro dia... Tem chovido tanto, mas tanto, que, depois do 2º desastre de Alcácer Quibir, já estamos a bombar água para o deserto do Saara... 

Zé, fica feita a tua "prova de vida", tens as quotas em dia... LG
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P23871: Notas de leitura (1531): Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
O guevarismo e o seu foco insurrecional veio a revelar-se uma aplicação desastrosa da guerrilha na Américas do Sul e Central, era uma conceção desinserida de um processo histórico de alianças de classe e de forças ditas contestatárias que agiam taticamente, incapazes de pegar em armas - daí os falhanços na Colômbia, na Venezuela, no Uruguai, na Bolívia. Amílcar Cabral declarou um dia que encetara o processo revolucionário na Guiné só conhecendo uns rudimentos da maoismo, contudo, como está historicamente comprovado, instituiu uma teoria e uma prática revolucionárias ajustadas às aspirações de população que não se identificava com a potência colonial, cuja presença, aliás, era muito frágil. Cabral teve suficiente astúcia para nunca se confrontar com as teorias cubanas, Guevara e Fidel Castro admiravam-no e Cuba, como é de todos sabido, apoiou a luta armada na Guiné. Cabral também não se impressionou muito com o foco insurrecional, apostou na longa duração e numa possível boa simbiose entre a população e os guerrilheiros. Revelou-se um marxista flexível, embora intransigente na ditadura da direção política; jamais se pronunciou a favor de um futuro desenvolvimentista para a Guiné assente na ajuda humanitária, aspirava a uma agricultura próspera como matriz do desenvolvimento, queria que a Guiné não sobrevivesse à custa de dádivas, sem contestar que recebera apoio da cooperação. Foi um teórico que conduziu até às últimas consequências o processo de independência e estabeleceu balizas, sobretudo na fase inicial, desde o segundo semestre de 1962 até ao processo de consolidação de 1964, para os atos de terror e de intimidação, conhecia as etnias e as suas cumplicidades e nunca ignorou que o PAIGC não podia contar com os Fulas, conhecia muito bem as razões históricas da aliança entre os Fulas e os portugueses.

Um abraço do
Mário



Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (2)

Mário Beja Santos

É do senso comum que a luta armada desencadeada pelo PAIGC obedecia a uma estratégia de guerrilha. É um dado curioso como se aborda amiúde este fenómeno nacionalista sempre no enquadramento de descolonização, passando-se, de um modo geral, ao lado dos pontos concordantes e discordantes do pensamento de Cabral com outras estratégias de guerrilha.

Gérard Chaliand, porventura o principal historiador francófono dos movimentos revolucionários à escala mundial, e que acompanhou Cabral no interior da Guiné em 1966, escrevendo depois uma obra no ano seguinte, para além de artigos, releva os fatores históricos das guerras populares na época contemporânea: a crescente intervenção dos camponeses na luta armada (como força combatente ou infraestrutura política clandestina ou local de abastecimento); o facto de a luta passar a dispor de uma vanguarda ideológica mobilizadora orientada pela coesão, disciplina e espírito de sacrifício. Não se pode contestar a importância do pós-II Guerra Mundial, que operou ruturas de equilíbrio entre as grandes potências e que fez despertar nacionalismos, muitos deles em estado latente. Há que ter em conta o gradual desaparecimento dos impérios europeus, as elites nacionalistas iam amadurecendo as vias mais adequadas para chegar ao poder e gerar novas pátrias. Havia populações amadurecidas para a insurreição e houve diferentes modos de encarar a guerrilha. Como se observou no texto anterior, Che Guevara, após a tomada do poder em Havana, não escondia a sua inquietação quanto à necessidade de fazer a disseminação revolucionária do continente. Outro pensador revolucionário, Frantz Fanon, talvez dominado pela guerrilha de cariz sanguinário que se desenvolveu na Argélia, era apologista do ferro e fogo, a qualquer preço.

Em 1974, portanto numa fase já muito amadurecida do quadro das independências em África e na Ásia, Régis Debray passou a escrito a sua análise sobre as lutas armadas da América Latina, fixou-se em grandes atores como Fidel Castro, Che Guevara e Salvador Allende, procedeu a um balanço crítico desses fenómenos revolucionários ou subversivos que ocorreram na Venezuela, em Cuba, na Bolívia ou no Chile. Nunca escondendo a sua admiração pelo guevarismo, preocupou-se em refletir sobre as razões que conduziam a uma revolução nacional vitoriosa, nunca esquecendo a China, o Vietname e Cuba. Dissecando as classes médias da América do Sul e Central, foi-lhes encontrando mais intenção do que determinação pela luta armada, com a agravante que os partidos comunistas, no período estalinista, eram única e exclusivamente incentivados a trabalhar para que se formassem governos de unidade nacional. É nesse contexto que Debray enuncia metodicamente as razões para o triunfo cubano, não desvaloriza a vanguarda constituída por elementos da classe média, mas que souberam doutrinar os agrupamentos da guerrilha e a boa comunicação que estabeleceram com os grupos camponeses.

Medindo cuidadosamente a estratégia desencadeada em Cuba, recorda que num quadro de desigualdade inicial nas relações de forças entre o exército regular e a guerrilha, havendo que incorporar progressivamente a população na luta, é fundamental preparar os militantes para um combate longo, para o tempo que for preciso, saber definir a retaguarda, atender rigorosamente à natureza do terreno, e no caso de Cuba perceber que era uma ilha, de onde não se punha qualquer eventualidade de atravessar fronteiras. Daí a importância do estabelecimento de bases, sem o caráter de fixação, de programar ações num contexto de descontinuidade operacional, nunca descurar a questões ideológica, adotando uma teoria de organização e estabelecer as regras de uma democracia revolucionária.

Não é para aqui chamada a narrativa do processo histórico que levou este movimento revolucionário cubano até à definição do Partido Comunista. O pano de fundo é tentar perceber o que distinguiu Amílcar Cabral dos outros teóricos. E não será pura casualidade que Gérard Chaliand na sua obra monumental Estratégias da Guerrilha, Payot, 1994, distinguir a intervenção de Cabral na Conferência Intercontinental de Havana, em 1966, como o contributo mais original, senão o único contributo original daquelas décadas sobre a estratégia revolucionária dos movimentos de libertação, e sobretudo o papel da pequena burguesia. Perante uma assembleia que aos poucos ficou boquiaberta, Cabral começou por dizer que a maneira mais eficaz de criticar o imperialismo é pelas armas, desde que a motivação ideológica se insira perfeitamente num povo que aceita fazer a causa libertadora de ter que pegar em armas para expulsar a potência colonial. Numa linguagem frontal, Cabral referiu nessa intervenção que passou à história com o título da arma da teoria de que um revolucionário deve saber lutar contra as suas próprias fraquezas, e uma delas poderá ser a falta total de ideologia de um movimento de libertação nacional. E por isso propõe-se contribuir para o debate sobre os fundamentos que os objetivos da libertação nacional em relação à estrutura social. Questiona o conceito de luta de classes e não esconde os equívocos que ele comporta, esquecendo povos que por razões históricas não evoluíram para quadros de industrialização. Não se pode iludir o papel da pequena burguesia, ela é fulcral tanto na situação colonial como pós-colonial. Há segmentos da pequena burguesia que aderem ao chamamento revolucionário enquanto outros se mantêm aliados, talvez com a ilusão de que estão a defender a sua situação social, ao colonialismo. E faz comentários proféticos, observando que a situação neocolonial, que exige a liquidação da pseudoburguesia autóctone para que se realize a libertação nacional, dá também à pequena burguesia a oportunidade de um desempenho decisivo na luta pela liquidação do domínio estrangeiro. Enfatiza o papel desta pequena burguesia na situação neocolonial, ou ela possui consciência revolucionária e a capacidade de interpretar fielmente as aspirações das massas nas sucessivas fases da luta, identificando-se cada vez mais com elas, ou aceita o aburguesamento. E diz abertamente que a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de se suicidar como classe ou então trair a revolução, tornando-se cúmplice de um qualquer processo neocolonialista, cada vez mais distante das profundas aspirações populares.

Cabral, como veremos no próximo e último texto, deliberou, a partir de 1959, que o PAIGC entrava num processo de clandestinidade, com subversão interna conducente à preparação de quadros militares, com uma direção no exterior apta a dar formação, a acolher os novos quadros militares e a consciencializá-los para a natureza da luta armada que se avizinhava, a obter apoios internacionais, e gradualmente instalar a subversão em zonas do território extremamente ásperas para a mobilidade das tropas regulares. O que veio a acontecer, como Gérard Chaliand comprovou no terreno, em 1966.

(continua)

Amílcar Cabral, Maria Helena Rodrigues e a sua filha Ana Luísa Cabral, 1964
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Nota do editor

Poste anterior de 5 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23848: Notas de leitura (1528): Guevara versus Amílcar Cabral: Divergências estratégicas na guerrilha (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23859: Notas de leitura (1530): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (7) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23870: Manuscrito(s) (Luís Graça) (215): Verão de 68


O célebre cartaz  do Tio Sam, a recrutar a rapaziada para a guerra, c. 1917, 
da autoria de James Montgomery Flagg (1877–1960). 
Imagem do domínio público. 
Cortesia de Wikipedia

Verão de 68


Não havia moscas em agosto,
Apenas a angústia difusa da folha de papel 
Em branco,
A barra azul 
Rente ao muro branco dos moinhos 
De vento,
O frágil cordão dunar a separar-te 
Do Novo Mundo,
Quando há 150 milhões de anos se  ia a Nova Iorque,
A pé,
Ou montado num pachorrento dinossauro do Jurássico Superior...
E não conhecias o terror
Do T-Rex nem do instrutor do quartel.

E mais à frente a esplanada da praia,
A mesa, a chávena de café, o copo de água,
A bandeira verde ao rubro
Sob o sol de bronze.

O dia perfeito de verão,
Num qualquer fim de semana de agosto de 68,
Se não fora a inútil viagem
Pelo labirinto dos dias
Que faltavam para o juramento de bandeira.

Para quê escrever, enfim!,
Se tudo já estava inscrito
Na ordem natural das coisas ?!

Passava um veleiro 
Branco 
Em direção ao sul, ao sol, ao sal,
Indiferente à tua angústia
Que era branca, sem ser mortal,
Indiferente ao batom
Vermelho
Que manchava a chávena de café.
Ou era vermelho de sangue ?!...

Um homem acabava de ser fuzilado
Contra o muro branco, ou à queima-roupa,
Pormenor de somenos importância, dizia o repórter,
Na televisão a preto e branco.
Tinhas pedido um café
Expressamente expresso, escaldado, por favor.

O vermelho estava fora da tua paleta de cores,
Mesmo a distante bandiera rossa
De todas as utopias.
A liberdade, sim, mas por favor
Sem os canhões, nem as barricadas.
La libertà... ma senza guerra,
Sem o parto distócico da História.

Só o café escaldado se pedia, nesse tempo, por favor,
O maio de 68 já estava distante,
Paris era uma miragem, 
Para lá dos Pirinéus da tua prisão,
O preto era a tua cor pré-definida,
De existencialista diletante,
A camisola de lã preta,
As luvas pretas,
A boina basca preta,
A esferográfica de tinta preta,
Mas no fim da viagem
A angústia era branca como a cal 
Da parede,
Como a folha de papel em branco.

Et le néant était noire,
Por uma simples razão estética,
Que nada tinha haver com o lado errado ou certo
Do absurdo.

O cabelo rapado como mandava o regulamento,
A tropa chamava os mancebos de 47:
I wanto you to the U.S. Army,
Que a Pátria precisava de ti, meu rapaz.
Como precisou do teu pai e do teu avô.
O Vietname, ali tão longe e tão perto.

Ao menos, hoje, que bom!,  
Já há o soldado-robô.

Praia da Areia Branca, Lourinhã, agosto de 2022
__________

Nota do editor;

Último poste da série > 7 de novembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23768: Manuscrito(s) (Luís Graça) (214): a (ha)ver navios

Guiné 61/74 - P23869: Parabéns a você (2124): Francisco Palma, ex-Soldado CAR da CCAV 2748/BCAV 2922 (Canquelifá, 1970/72) e Luís Dias, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23861: Parabéns a você (2123): Fernando Barata, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2700/BCAÇ 2912 (Dulombi, 1970/72) e Mário Santos, ex-1.º Cabo Especialista MMA (Bissalanca, 1967/69)

domingo, 11 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23868: Boas Festas 2022/2023 (1): Bom Natal e... Novo Ano logo se vê (A. Marques Lopes, que aproveita para fazer "prova de vida")

 


Lourinhã > 4 de dezembro de 2022 > Festejos natalícios do município > Tenda do Pai Natal > Elemento decorativo, "kitsch", muito provavelmente "made in China"... Com a devida vénia... Foto (e legenda): LG (2022)


1. Amigos/as e camaradas: há quem não vá à bola, e muito menos à bola com o Natal, o Pai Natal, e toda a quinquilharia natalícia da época... O nosso blogue respeita as minorias (desde que não infrinjam as nossas regras de inclusão, respeito e tolerância), incluindo os/as que não vão à bola, e muito menos à bola com o Natal, o Pai Natal, e toda a quinquilharia natalícia da época... Para outros/as,  o Natal é "sagrado", mas não sabemos se são, sociologicamente falando, a maioria...

Continuando a não falar de "política, religião e futebol" (três coisas que nos podem dividir), salvemos ao menos o "nosso" Natal, o "Natal" de cada um, qualquer que seja o significado que a palavra possa ter no dicionário de cada um dos nossos leitores... 

Haja, ao menos, a vontade, a saúde e a alegria (e o "patacão" q.b.)  de festejar esta quadra, incontornável no mundo ocidental onde, dizem, ainda vivemos, em frágeis democracias liberais, e com padrões de vida minimamente decentes... 

Rezemos, os crentes e os não-crentes (juntos sempre fazemos mais força), a Deus, a Alá, a Jeová, a todos os deuses e deusas (desde a Antiguidade Clássica), mais os nossos bons irãs, acocorados no alto do poilão da nossa Tabanca Grande, para que o ano novo de 2023 seja melhor do que o de 2022... Para todos os homens e mulheres de boa vontade, em todo o mundo..., independentemente de gostarem ou não de comer bacalhau lascudo com batatas e pencas ou "tronchudas" alagadas em bom azeite e acompanhadas com um bom tintol...

E, por favor, escrevam-nos um "cartanito", a fazer prova de vida e a dar força  aos editores do blogue, colaboradores, autores, comentadores e leitores que têm dado vida e ânimo a este projeto que vai fazer 19 anos (!) em 23 de abril de 2023... e que quer chegar aos 900 membros (registados)  no final desse ano... Faltam só 33, mas está difícil, a "periquitagem" ainda arredia das nossas lides bloguísticas e os "velhinhos" parece que já arrumarem as botas e as cartucheiras... 

O primeiro "cartanito" que nos apareceu, este ano, é do histórico A. Marques Lopes que em 2022 passou um mau bocado com problemas de saúde mas não perdeu a vontade de continuar a viver e sobretudo não perdeu o sentido de humor... Aproveita para fazer "prova de vida", e a gente congratula-se com as suas melhoras.... E a propósito, tem 261 referências do nosso blogue, mas há muito que não nos liga(va)... (E acabamos, hoje, de ultrapassar os mil postes publicados neste ano da graça de 2022.)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Geba > CART 1690 > Destacamento de Cantacunda > 1968 > As precárias condições em que se vivia no destacamento ou melhor nos "bu...rakos" que a gente construía para "desenrascar",  que os engenheiros de Bissau, o  BENG 447,  não chegavam a todo o lado... Digam-me lá se o A. Marques Lopes se parece mais com um oficial do exército português ou com um mineiro ? (Olhem-me só para a cor daqueles joelhinhos !).

Para além de valente soldado, na verdade, o tuga, o portuga, o Zé , o Zé Povo em armas também foi engenhocas, carpinteiro, marceneiro, trolha, caboqueiro, picheleiro, funileiro, canalisador, construtor de pontes, caçador, pescador, ama-seca, parteiro, professor, missionário, enfermeiro, carteiro, cronista, descascador de batatas, auxiliar de cozinheiro, hortelão, arrebenta-minas, picador, cangalheiro, animador cultural, mediador cultural, psicólogo, conselheiro, juiz de paz, casamenteiro, e sei lá que mais... E o nosso saudoso "alfero Cabral" que Deus já lá tem,  até foi, imaginem!, "consertador de catotas"...

O Zé Povo no TO da Guiné foi mais do que o três  em um... Foi o homem dos sete oficios... O "desenrascanço" fazia parte do seu ADN e a verdade é que conseguiu transmitir esse gene aos seus filhos e netos espalhados por esse mundo de Deus e do Diabo (que ninguém, se ofenda, que isto é apenas uma metáfora, uma figura de estilo literário!)...


Foto: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



A legenda é do A. Marques Lopes: "Bom Natal e... Novo Ano logo se vê". O "boneco", o "Rodolfo", é cópia de um "original pintado com a boca por Adam Spenner" (com a devida vénia...).

Guiné 61/74 - P23867: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (31): Av Amílcar Cabral, a antiga Av da República... E o tudo o camartelo camarário levou...







Guiné-Bissau > Bissau > Novembro de 2022 > A Av Amílcar Cabral, a antiga Av da República, a avenida principal da cidade, entre a rotunda da antiga praça do Império e o rio Geba... E tudo as "obras" levaram,  incluindo árvores e... vestígios arqueológicos!... Trata-se de um projeto de requalificação urbana, iniciado há 8 meses.

Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Guiné > Bissau > s/d (c. 1960) > Av da República. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 138". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal). Colecção de postais ilustrados do Agostinho Gaspar (ex-1.º cabo mec auto todas, 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4612/72, Mansoa, 1972/74), natural do concelho de Leiria. Digitalização, edição de imagem, legenda: L.G.


1. Mensagem do Patrício Ribeiro (nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau, onde vive desde 1984, e onde é empresário, fundador e diretor técnico da Impar Lda; tem 130 referências no blogue: autor da série, entre outras, "Bom dia desde Bssau"


Data - domingo, 20/11, 16:33
Assunto - Fotos da Avenida Principal de Bissau


Luís.
Bom dia desde Bissau.

Luís, envio algumas fotos desde Bissau, tiradas este fim de semana.

A avenida principal, entre a rotunda da antiga praça do Império e o rio, está em obras. [Av Amílcar Cabral, ex-Av da República, no tempo colonial.]

Foi tudo deitado abaixo,  as máquinas ainda continuam nas limpezas.

Tudo o que conheceram nesta avenida há 50 anos já foi abaixo, só ficaram as casas nas laterais.

 Abraço

Patricio Ribeiro

IMPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau, Guine Bissau
Tel,00245 966623168 / 955290250
URL; www.imparbissau.com
Email: impar_bissau@hotmail.com


2. Comentário do editor:

 A propósito, leia-se ou releia-se a notícia da Lusa e Porto Canal de 16 de março último, aqui reproduzida com a devida vénia:

Governo guineense lança projeto de reabilitação
de vias urbanas de Bissau

16-03-2022 16:48


Bissau, 16 mar 2022 (Lusa) -- O primeiro-ministro guineense, Nuno Nabiam, lançou hoje a primeira pedra para um projeto de reabilitação de vias urbanas de Bissau que será executado pela empresa General World, com início previsto dentro de um mês.

No total, serão reabilitados o correspondente a cerca de 11 quilómetros de estradas, melhorados os passeios, aumentando a mobilidade e segurança rodoviária, segundo o secretário-geral do Ministério das Obras Públicas, Luís Miguel.

De acordo com o primeiro-ministro, Nuno Nabiam, o projeto será executado com fundos próprios do Governo.

"Vamos reabilitar toda a cidade de Bissau. É uma promessa que assumo aqui", disse o primeiro-ministro, num ato realizado na praça dos Heróis Nacionais, diante do palácio da Presidência da Guiné-Bissau.

O secretário-geral do ministério das Obras Públicas, Luís Miguel, explicou que o projeto está dividido em quatro lotes, a primeira contempla a reabilitação de vias de acesso à zona de Bissau Velho (no centro), a segunda e terceira lotes englobam as vias da Avenida Amílcar Cabral e zonas do Alto Bandim e a quarta lote permitirá a reabilitação de toda a marginal do Cais de Pindjiguti.

Não foi revelado o valor do projeto, mas Luís Miguel informou que será pré-financiado pela empresa General World e posteriormente será pago pelo Governo.

O projeto será concluído em dois anos, sendo que cada lote deverá ser executado e concluído em seis meses.

O ministro das Obras Públicas, Fidelis Forbes, afirmou que a reabilitação de vias de acesso às zonas urbanas de Bissau permitirá dignificar a capital do país à imagem de outros países da sub-região africana.

"Não dignifica a nenhum guineense dizer que esta é a Avenida Amílcar Cabral tal como está", observou Forbes referindo-se a estrada que liga o centro de Bissau ao aeroporto internacional Osvaldo Vieira.

MB // PJA

Lusa/Fim

Guiné 61/74 - P23866: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VIII - De novo, Guiné e, Finalmente, o prémio

1. VIII parte da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


VIII - De novo, Guiné…

E os trinta e cinco dias de férias esgotaram-se, num ápice!

Preparei tudo para o regresso à Guiné, mas sem vontade nenhuma, claro, pois bem sabia para onde ia e o que me esperava, mas os homens mereciam toda a minha consideração e apoio…

"Imagino, Adolfo!
Depois de um ano naquela situação, deve ter sido difícil encarar novo período, com privações e riscos constantes…"


O meu irmão fez questão de me acompanhar e despedir-se de mim, assim como um colega e amigo dele da Força Aérea, o Zé Durães, de quem fiquei amigo.
Noite numa discoteca, melhor, boate, e eu enfrascado e bem enfrascado, a não querer ir para o aeroporto.
Lá me levaram e conseguiram meter-me na zona do check-in, onde fiquei, sentado no chão, de saquito da TAP na mão, enquanto eles batiam nas vidraças para que alguém tratasse de mim, ao mesmo tempo que riam e riam…

Passados uns minutos, aparecem um comissário e uma hospedeira, perguntam-me o nome e pedem-me o bilhete, ao mesmo tempo que vasculham o meu saquito da TAP, onde encontram a minha carteira e identificação.
Confirmaram que o passageiro que faltava era eu, um militar.
Não tinha o bilhete comigo, mas fizeram eles próprios o check-in e levaram-me para o avião.
Sentaram-me e fiquei sossegado, embora triste e contrariado.

Descolagem efectuada, avião no ar, quando alguém chama e diz que tem um bilhete daquele voo, que encontrou numa rua de lisboa - era o meu bilhete!

Chegada a Bissau, seguindo para o Depósito de Adidos, obrigatório, para registo de entrada e rotinas da praxe.
Mas pirei-me, logo a seguir, pois não tinha paciência para os serviços a que era obrigado.

Na cidade, em andanças pela avenida principal, conheci um mercenário francês, o capitão Charles André, capturado na operação Mar Verde, de que já lhe falei, pois estava ao serviço do PAIGC, na altura, em Conacry.
O Charles André, naturalmente, como prisioneiro de guerra, tinha a assistência própria de um prisioneiro de guerra, mas sob vigilância da polícia militar e da PIDE, vinte e quatro horas, prática corrente.
Com trinta e sete anos, mercenário de guerra desde os dezassete anos, em missões já dos tempos das guerras da Indochina, a designada Indochina francesa, território que incluía os actuais estados do Vietname, Laos e Camboja, também tendo passado pela guerra da Coreia.

Na Indochina, casou com uma indochinesa, a única mulher que o levou ao casamento, não só pela beleza, mas pela cultura, pela educação - dizia.
Durante uma flagelação ao aquartelamento, a mulher morreu, mas salvou-se a filha, ainda bebé, que ela tinha escondido debaixo de um caixote.
A filha, entretanto, já com doze anos, se bem me lembro, estava num colégio interno, em Lyon.

Fazia questão de me falar da cultura indochinesa, que considerava exemplar e digna de referência, em qualquer parte do mundo.
Por exemplo, quando um casal se passeava pela rua e aparecia um homem a olhar e apreciar a mulher, o marido parava, apresentava-se e agradecia o olhar do outro para a sua mulher, sem qualquer gesto de desagrado, sinal de que o marido tinha bom gosto.

Alguém que passasse na rua e olhasse para uma casa onde havia festa, se o dono da casa visse, saía e vinha convidar essa pessoa para entrar e participar na festa, no fundo, em sinal de solidariedade para com essa pessoa. Uma curiosidade: sempre que eu me referia à mulher e, por exemplo, dizia ‘a tua mulher era…’, logo reagia, com firmeza, e dizia ‘era, não, é…!’
Para ele, a mulher existia, apesar de morta…

Como o Governo da Guiné o hospedou no Hotel Portugal (uma espelunca) e, claro, lhe dava algum dinheiro, tudo controlado, logo me disponibilizou uma parte do quarto e pediu uma cama extra, para que eu não fosse obrigado a gastar os meus poucos pesos, uma vez que eu me recusava a dormir no Depósito de Adidos.
Repartia as refeições e cigarros comigo, o que evidenciava um autêntico espírito de partilha, solidariedade, digno de admiração, embora isso tivesse a ver com o que se aprende em cenário de guerra.
As provas de amizade e espírito de protecção foram evidentes e achava que a nossa guerra era estúpida e eu corria perigo de vida, pelo local em que estava - fronteira do sul, com a República da Guiné-Conakry, sede do PAIGC.

Quando saíamos para os subúrbios de Bissau, designados por ‘tabanca’, ‘poilão’ ou ‘pilão’, o Charles André logo se colocava em posição de segurança, embora desarmado, como que a proteger-me de uma qualquer eventual agressão.
Pudera, andava em guerras há vinte anos!

Falou-me em fugir e que eu deveria pensar nisso, também, pois era novo e tinha direito a viver, saudavelmente e em ambiente civilizado.
A saída seria pelo norte da Guiné, pelo Senegal e, depois, aventuras até chegarmos a França.
Frisou que tencionava passar o Natal com a filha, o que seria no mês seguinte, logo, dificuldade agravada.

Pediu-me que, caso lhe acontecesse alguma coisa, durante a fuga de Bissau, e eu pudesse passar por Lion, tentasse ver se a filha estava bem.
Claro que eu concordava com o que me dizia, mas só podia dizer-lhe que tinha homens à minha espera, em situação delicada, que não podia abandonar, além do enorme risco que correríamos na tentativa de fuga.

Como disse, eu deveria estar no Depósito de Adidos, enquanto em Bissau, em trânsito, sendo obrigado a fazer serviços de dia, mas continuava ‘desenfiado’.
Deveria fazer um trânsito curto, em Bissau, e regressar a Gadamael, o mais depressa possível, alugando avioneta civil ou aproveitando algum héli, mas não o fiz, pois sabia bem o que me esperava, em todos os aspectos.

Uma vez que fui ao Depósito de Adidos, só por precaução, fui informado que me enviavam rádios para Bissau a saberem de mim, mas era difícil encontrarem-me…
Doze dias em Bissau, escandaloso, e era hora de partir para Gadamael, onde era esperado, sabe-se lá como, pois o capitão andava em perseguição obsessiva…

Despedi-me do Charles André, que não correspondeu, pois dizia que não gostava de despedidas e insistiu que não aceitava que eu morresse naquele inferno.

Fui ao porto de Bissau e consegui lugar numa LDG que ia para sul e, depois, arranjei lugar numa LDM e batelão, até Gadamael Porto.

Já na LDG, quando abri o meu pequeno saco de campanha, encontrei um bocado de presunto e o cantil do Charles André, com um bilhete: ‘bonne chance et pensez à ma proposition’.
Mais tarde, soube que tinha sido executado pelos agentes da PIDE, durante a tentativa de fuga de Bissau!

Para estas acções, a PIDE tinha grande expediente, era organizada, inteligente, activa.
O mesmo não se podia dizer, quando eram necessárias informações concretas e indispensáveis à execução de operações militares, durante a guerra do ultramar…

Pode parecer lamechice, mas não mais esqueci aquele francês, apesar de mercenário, um homem direito, corajoso, resistente a adversidades, independente dos critérios que possamos ou queiramos ter em conta, um exemplo de solidariedade e espírito de grupo, além da particular preocupação que mostrava por mim, um menino de vinte e três anos, lançado às feras, embora consciente.
É com estes exemplos humanos que mais aprendemos e nos preparamos para a vida.

"Não vejo, apenas, sinto que o Adolfo vive as palavras, sempre que se refere a alguém, como exemplo que o marcou!"

A chegada a Gadamael Porto não foi seguida de uma boa recepção, por parte do capitão, bem pelo contrário, mas não esperava outra coisa.
Em contrapartida: uma calorosa recepção, por parte da companhia, que me deixou um pouco emocionado, mas sem conseguirem esconder a saturação e cansaço.

O capitão manda chamar-me e começam os ataques e as ameaças: ‘Cruz, tem aqui trinta e seis mil pesos para pagar, porque desapareceu uma data de material para o reordenamento!’
A minha reacção foi imediata: disse-lhe que fizesse o que entendesse.

Depois de explorar a que se referia, concluí que era material que vinha de Bissau, destinado a obras de reordenamento, um programa relacionado com a designada ‘psico’, e tinha desaparecido uma parte, o que era um hábito em qualquer ponto da Guiné, pois os diversos nativos eram conhecidos pela habilidade no desvio…
Ele ficava furioso, quando se reagia com indiferença à sua agressividade, apoiada nos galões, apenas!

"Falou em reordenamento e psico e gostava que me explicasse o que significam, realmente."

REORD, reordenamento, é uma acção estratégica que consiste na construção ou reconstrução de uma tabanca ou um conjunto de tabancas, visando a protecção da população e impedimento o seu contacto com o IN (inimigo).

Claro que esta e outras acções cabem no âmbito da designada ‘psico’, actividade que tem a ver com a captação da confiança e simpatia das populações indígenas, de forma que se sintam protegidas pelas NT (nossas tropas), importante para a nossa missão, como se entende.

Um dos dramas do capitão continuava a ser o facto de que a maioria dos graduados se mantinha afastada dele, mostrando-lhe indiferença, com evidente sinal de que o considerávamos ‘persona non grata’…
Daí, a sua obsessiva perseguição e agressividade, atitude contrária ao perfil de um líder.
Mas, afinal, além de o termos considerado um caso típico de sorte, pois nada lhe aconteceu, muitos de nós acabámos por sentir pena dele…
E continuámos a enfrentar o cenário de guerra, sem alternativa, claro, uns dias melhores do que outros.

Tínhamos ouvido qualquer coisa relacionada com tempos de estadia em determinadas zonas da Guiné, pela maior dificuldade operacional e psicológica, como era o caso de Gadamael Porto, o que significava o período máximo de doze meses para uma companhia completa, um pelotão de cavalaria e um pelotão de artilharia.
Assim, devia estar a aproximar-se a autorização de rendição da nossa companhia, pois já íamos em dezasseis meses.
Mas as coisas nem sempre acabam bem…

Uma das últimas operações, reconhecimento na zona de Sangonhá, pertinho da fronteira, saíram parte de dois grupos de combate, do segundo grupo, e do quarto grupo, o meu.
Tudo a correr bem, até que somos surpreendidos por mais uma emboscada, com alguma confusão, e o Fernandes, um dos furriéis do segundo grupo, é ferido, gravemente.

Foi a última ‘bofetada’ que levámos, naquela zona já tão massacrada e com tanto para contar!...


Finalmente, o prémio…

E
a ordem chegou: seríamos rendidos, brevemente!

Como faz parte das estratégias militares, há um período de sobreposição, para que a companhia a ser rendida possa ‘passar o testemunho’ à nova companhia.
A entrega de armas e sua localização, os pontos mais vulneráveis do próprio aquartelamento, os locais estratégicos de saídas e entradas do aquartelamento, as picadas e trilhos de conveniência dentro e fora das matas, os pontos de instalação das nossas armadilhas e minas, os detalhes sobre a comunidade indígena, enfim, a preparação mínima da nova companhia para o que a espera…
Como a companhia tem quatro grupos de combate, saem dois para o novo destino de operações e ficam os outros dois, que fazem a sobreposição.

Chegados os batelões, toca a embarcar e seguir o rio Cacine, transbordar para as LDM, já no rio Geba, seguindo pelo mar, até Bissau, o trajeto contrário ao de dezasseis meses antes.
Depois, de viatura até aos quatro destacamentos, na zona noroeste da Guiné, um grupo de combate em cada um, como ‘prémio’ da campanha em Gadamael Porto, demasiado longa e cem por cento operacional e dura, assim classificada.

A mim, tocou-me Ome/Bijemita, o segundo destacamento, a partir de Bissau.
Zona de etnias Balanta e Biafada, principalmente, embora por lá andassem outras etnias.
Notava-se um pouco mais de movimento e evolução, pois estávamos perto da capital.

A missão, agora, limitava-se à defesa da área de Bissau, cujas ‘operações’ se reduziam a pequenos reconhecimentos e patrulhamentos na zona, incluindo os patrulhamentos do rio Mansoa, uma chatice…
Como era da praxe e bem importante, a designada ‘psico’ estava presente, quer para captar a simpatia da comunidade indígena, pela sua protecção, além da imagem que as forças portuguesas queriam fazer passar.

Os outros três grupos foram colocados em Ponta Vicente da Mata, Quinhamel e Biombo.

Ainda chegámos a ter connosco, uns tempos, o tal célebre Marcelino da Mata, guerrilheiro que ficaria na história desta guerra, por inúmeras e difíceis operações em que participou, nomeadamente, na operação Mar Verde, de que já lhe falei.
Voltarei a falar dele, se tiver oportunidade.

As condições deste destacamento permitiram apreciar alguns dos costumes das etnias locais, principalmente, quando em festa, a que chamavam ‘ronco’, assim como as cerimónias fúnebres que envolviam cenas dignas de filme.

Também era possível dar umas saltadas a Bissau, em viatura militar, sem grandes riscos, nomeadamente, para adquirir bens que não nos eram proporcionados pelo exército.

Recordo-me de um dos patrulhamentos que fiz, no rio Mansoa, com os designados ‘sintex’, barcos de fibra com motor fora de bordo, salvo o erro, com cinquenta cavalos, a que chamávamos banheira, pela configuração.
Saímos da zona posterior do destacamento, entrámos no rio e rumámos para a foz, que chegava mesmo ao Biombo, onde tínhamos um dos grupos.
Mas a operação limitava-se a uma parte do rio, embora tenhamos continuado um pouco mais, e mais, sem repararmos na quantidade de gasosa que tínhamos de reserva.
E as águas revoltas confirmavam o que já tínhamos ouvido sobre a fauna que ali habitava, como tubarão e crocodilo.
Já perto da foz e quase a atingir o Biombo, tivemos de aproveitar a corrente do rio, para conseguir lá chegar, pois a gasosa tinha acabado.

Quando já perto da margem, um dos homens resolve saltar para a água para empurrar o ‘sintex’- má ideia!
Começa a ficar rodeado por umas coisinhas avermelhadas e o corpo cheio de manchas e borbulhagem vermelha, comichão desesperante, difícil de suportar, que só foi atenuada com umas pomadas que o enfermeiro do Biombo lhe pôs no corpo, chamavam flor do congo ou coisa parecida.

E o que nos valeu foi o grupo que estava no Biombo ter gasosa suficiente para nos dispensar, para podermos voltar ao nosso destacamento, graças à solidariedade do Campinho, o alferes comandante do terceiro grupo.
Estas situações não deviam acontecer, pois os riscos estão sempre presentes, com forte probabilidade de consequências graves, mas sabemos que acontecem…

E não posso deixar de recordar as caldeiradas que um dos nossos homens fazia, aproveitando as minúsculas tainhas que as bajudas balantas ou biafadas apanhavam, com redes artesanais, enterradas nas lamas do rio, aguardando a maré.
Claro que as tainhas só serviam para dar o sabor, pois eram difíceis de comer, só espinhas…
Isto passava-se às seis da manhã, já com um calor insuportável, e era o pequeno-almoço.

E, realmente, acreditei no que nos disseram sobre o facto de terminarmos a comissão nestes destacamentos, como ‘prémio’, pelo facto evidente de termos estado aquele tempo todo em Gadamael Porto.
E já íamos em vinte e dois meses, quando sempre tínhamos ouvido falar em dezoito meses de comissão, quando se tratava da Guiné.

Faltava a ordem de saída para o COMBIS (comando de bissau), onde aguardaríamos avião para regresso à Metrópole.

"O Adolfo fala em prémio, como se isso fosse, realmente, um prémio!
Mas acredito que assim considerassem, tendo em conta a diferença de cenário de guerra que passaram a experimentar, com melhores condições e menos riscos, se bem entendi."


Isso mesmo, Daniel, melhores condições e menos riscos, permitindo o descanso merecido a todos nós.
Além disso, a parte psicológica enriquecida, pelo facto de estarmos perto de Bissau, naturalmente, local de partida para o regresso a casa…

Mas esta última etapa, a partida, rumo a Bissau, apesar de ansiada e muito desejada, deixou-me triste e marcado por um episódio simples, mas recheado de emoção.
A lavadeira que eu tinha neste destacamento tinha um filho com cerca de oito anos, a quem eu me tinha dedicado, pela doçura do olhar, simpatia e esperteza, que aceitava pequenas e simples coisinhas que eu lhe ia arranjando, principalmente, comida e alguns pesos.
E aquela minha dedicação nada tinha a ver com carência afectiva da minha parte ou outro qualquer sentimento, mas talvez com uma forma de agradecer o facto de estar no final da comissão, sem grandes mazelas físicas próprias daquela guerra, apesar de reconhecer que as psicológicas acabariam por emergir, mais tarde ou mais cedo.
Além disso, com o facto de ter acumulado uma forte dose de revolta e frustração, pois tinha estado em teatro de guerra que, a certa altura, depois de acordar, reconheci como desnecessária e injusta.

Pois é, este menino não conseguiu aguentar mais e desabafou comigo, mais ou menos, isto: ‘mê furiel, a mi miste bá com bó pr’a Lisboa!’

É um murro grande no estômago, já tão debilitado!...
E tive de pensar bem nas palavras de resposta a este miúdo, com todo o cuidado para não lhe fazerem mal, bem bastava o cenário onde vivia, mesmo que integrado na comunidade onde tinha nascido!...

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Nota do editor

Poste anterior de 8 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23856: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte VII - Que mal fizemos nós?! e As minhas únicas férias

Guiné 61/74 - P23865: Efemérides (379): No 20.º aniversário da Universidade do Mindelo, Amílcar Cabral recebe o Doutoramento Honoris Causa e é agraciado com a Ordem da Liberdade pelo Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa


Presidente da República em Cabo Verde

09 de dezembro de 2022

O
Presidente da República chegou à Cidade do Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde, onde foi recebido com honras militares.

Após a chegada, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa encontrou-se com o Presidente da República de Cabo Verde, José Maria Neves.

O Presidente da República participa, este sábado, na cerimónia de Doutoramento honoris causa, a título póstumo, de homenagem a Amílcar Cabral, na Universidade do Mindelo.

Informação retirada do SÍTIO OFICIAL DE INFORMAÇÃO DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA PORTUGUESA


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Nota do editor:

Também, de acordo com o publicado no DN, que cita a Agência Lusa: "PR atribui Ordem da Liberdade ao "homem grande" Amílcar Cabral" - O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, atribuiu hoje a Ordem da Liberdade a Amílcar Cabral, líder histórico da independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde, "homem grande" que não "chegou a chefe de Estado por uns meses".

© ELTON MONTEIRO/LUSA

Ver notícia do DN aqui e no Expresso das Ilhas, de Cabo Verde, aqui.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23857: Efemérides (378): a crise académica de 1962 que, para muitos estudantes, futuros oficiais milicianos, foi o início da sua tomada de consciência cívica e política