quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24031: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte I: Ainda não foi desta que o autor nos contou toda a verdade...

Capa do livro de memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009), "Crónica da  Libertação", Lisboa, "O Jornal", 1984, 464 pp. (Capa: de João Segurado segundo foto de Bruna Polimeni)


1. O nosso crítico literário, Mário Beja Santos, já aqui fez uma exaustiva e brilhante  recensão do livro do Luís Cabral (*), livro de memórias, talvez um pouco  esquecido,  do meio-irmão de Amílcar Cabral, escrito no seu exílio.

Recorde-se que Luís Cabral esteve  detido mais de um ano no Forte da Amura, em Bissau, logo a seguir ao golpe militar de 'Nino' Vieira, seu primeiro ministro, em 14 de novembro de 1980,  até ser liberto por pressões internacionais, acabando por seguir para Cuba e Cabo Verde e por fim para Portugal, em 1984, país onde viveu até à sua morte, em 2009, vítima de doença prolongada. (Ironicamente, um mês depois de 'Nino' Vieira.) (**). 

No prefácio do livro de 461 pp., com data de outubro de 1983, e escrito na Praia,  Cabo Verde, ele diz que nunca lhe tinha passado pela cabeça escrever um livro sobre a sua vida e a sua luta. Foi na solidão da Amura, que foi tentado a escrever. E fê-lo sobretudo em homenagem ao Amílcar e demais companheiros: 

(...) "Mais tarde, já em liberdade, alguns dos meus antigos companheiros dão o seu apoio e uma apreciação amiga a este primeiro trabalho sobre a vida e a luta com o Amílcar, e, fornecendo-me importantes precisões sobre factos descritos sem qualquer documentacão e encorajando-me a continuar a escrever as minhas lembranças sobre a heroica luta que conduziu os nossos povos à liberdade e independênci nacional" (pág. 9).

E no fim acressenta:

(...) Se é que tenho a uma pretensão, é a de considera que fiz o melhor do meu esforço para que tudo o que foi dito neste trabalho corresponda à verdade dos factos registados, embora com a consciência de, em muitos casos, não ter ainda chegado o momento de dizer toda a verdade" (pág. 11).

Não sei se o Luís Cabral chegou a ter a oportunidade, nomeadamente em entrevistas que foi dando, de "dizer toda a verdade" até ao momento da sua morte, em 2009, no antigo Hospital do Barro, nos arredores de Torres Vedras.  Ao que parece, estava nos seus planos escrever um segundo livro de memórias sobre a sua experiência como presidente da República da Guiné-Bissau. Teve 25 anos para o fazer, antes de morrer. Não chegou, infelizmente,  a escrevê-lo ou a publicá-lo. O que é pena.

Temos, todavia, que concordar que este seu primeiro (e único) livro é um documento importante para a historiografia da guerra colonial na Guiné, tanto mais que Luís Cabral era o nº 2 ou 3 do PAIGC, membro do "Bureau Político" e do "Conselho de Guerra", além de ter sido o primeiro presidente do conselho da República da Guiné-Bissau. Foi, além disso, íntimo confidente, grande admirador e fiel executante do pensamento e da estratégia  do irmão. Por outro lado, sabemos que os seus antigos companheiros, da cúpula do PAIGC,  já morreram todos ou quase todos, tendo levado para a cova os seus segredos, as suas melhores e piores memórias. Tirando Luís Cabral e Aristides Pereira, quem escreveu mais ? Ou dá a cara, falando em público, como é o caso do 'comandante' Pedro Pires ?!

Alguns antigos combatentes, membros da Tabanca Grande e/ou leitores do nosso blogue, nem sempre se sentem confortáveis quando falamos aqui do PAIGC, dos seus dirigentes, do seu pensamento e da sua história...como se o IN que combatemos, no TO da Guiné, não tivesse  um nome e protagonistas com um rosto... Como se tivéssemos combatida contra extra-terrestres!... Amílcar Cabral e Luis Cabral, por exemplo, estão na "lista negra"... Fazem parte dos ódios de estimação de alguns de nós... 

Mas se voltamos hoje a uma (re)leitura da "Crónica da Libertação" não é para santificar ou diabolizar ninguém, é apenas para melhorarmos e enriquecermos o conhecimento que temos daquele conflito em que estivemos envolvidos. E que não foi um conflito qualquer, Foi uma guerra prolongada e, em muitos casos, sangrenta e cruel. E, ainda mais do que isso, completamente estúpida e inútil.

Neste caso há "factos & mitos" que devemos pôr em evidência, numa linha que nos é cara, aqui, no blogue, que é a exploração das "memórias cruzadas", na continuação dos escritos de camaradas nossos como o Jorge Araújo, o Mário Dias, o António Rosinha ou o Patrício Ribeiro (estes dois últimos já como "paisanas", na República da Guiné-Bissau)...

Não vou cotejar o que diz (e muito menos o que omite, esquece, branqueia ou falsifica) Luís Cabral com o que os biógrafos de Amílcar Cabral  investigaram e escreveram. E são já  várias  as biografias do líder histórico do PAIGC.  Confesso que ainda não as li, conheço-as apenas das recensões que têm sido feitas, e nomeadamente pela mão do nosso camarada e colaborador permanente Mário Beja Santos. É preciso tempo e vagar para se ler, e a lista de prioridades de cada de um de nós é diferente. 

Da "Crónica da Libertação" vou, ao longo de vários postes, reter alguns pontos que me chamaram a atenção e que julgo ser também do interesse dos nossos leitores conhecer ou apurar melhor...  Por exemplo, a relação do PAIGC com os fotojornalistas e os cineastas, nomeadamente europeus, que ajudaram a alimentar o mito das "áreas libertadas", do "poder popular", dos "armazéns do povo",  das escolas e dos hospitais de campanha... 

Noutros casos, há perguntas que ficam no ar: teve ou não Luís Cabral um "copydesk" (editor literário) que o ajudou na feitura do seu livro ? Recordo-me de o saudoso Leopoldo Amado (vítima da pandemia de Covid-19, em 2021) me ter confidenciado, há uns largos anos atrás, na Feira do Livro de Lisboa, que a obra "O Meu Testemunho: Uma Luta, Um Partido, Dois Países", de Aristides Pereira  (Lisboa, Editorial Notícias, 2003, 974 pp.)  tinha sido em grande parte escrita por ele...

Não há nenhum mal nisso: muitos políticos e outras celebridades (nomeadamente do mundo do espetáculo) recorrem a jornalistas e escritores profissionais, como "copydesks", ajudando-os a publicar as suas memórias ou autobiografias...

Na ficha técnica do livro de Luís Cabral, editado em 1984 sob a chancela de "O Jornal", não há menção sequer de um revisor técnico e/ou de texto. Mas admitimos que tenha tido a ajuda de alguém na parte da escrita. No prefácio, o autor agradece, sem os citar, a "alguns dos seus antigos companheiros" que, além do apoio e estímulo, lhe forneceram "importantes precisões sobre factos descritos sem qualquer documentação".

O livro foi publicado em julho de 1984. O prefácio escrito em outubro de 1983. E a detenção na Amura decorreu, presumivelmentre,  entre novembro de 1980 e o  final do ano de 1981 (13 meses). Esteve depois exilado  em Cuba e a seguir em Cabo Verde, nos anos de 1982 e 1983. 

O "making of" do livro deve ser deste período, mas curiosamente as referências a Cuba e à participação dos "internacionalistas cubanos" na luta ao lado do PAIGC são escassas ou discretas... Fala de um ou outro médico, mas nem sequer nos dá um número (mesmo que aproximado) dos cubanos que participaram na "luta de libertação", desde 1966. Como se isso se tratasse de um "segredo de Estado"...

O autor é também avaro ou omisso quanto a outros números: população sob controlo do PAIGC, tabancas, escolas, hospitais, armazéns do povo, "barracas" ou "bases", homens armados (incluindo milícias), mortos e feridos, ajuda externa, etc. (Quanto a desertors portugueses, acolhidos pelo PAIGC, fala em 20, se não erro.)

Luís Cabral nunca foi um "operacional", ou um "combatente", de armas na mão... Nem devia ter qualquer formação militar específica... De resto, nunca foi tratado como um comandante, como 'Nino' Vieira, Domingos Ramos, Osvaldo Vieira ou Pedro Pires.  Pertencia ao aparelho político, ao "bureau"...  Mas tinha como pelouro, no interior do território da Guiné, a "reconstrução nacional das áreas libertadas" (sic). E, como Amílcar Cabral não tinha tempo para andar no mato, a caminhar, a pé, dias e dias, até à fronteira, o "mano" fazia as funções de "inspetor-geral"... dos combatentes e da população que os suportava... Em contrapartida, tinha boa memória para nomes, o Luís... 

De qualquer modo, é o homem de confiança do irmão para missões difíceis, nomeadamente na Região Norte e no Senegal (cujas autoridades só tardiamente abrem, ao PAIGC, o "semáf0ro verde" para o trânsito de homens armados, e de carregamentos  de armas e munições; e por essa razão o Luís passava mais tempo em Dacar, enquanto o Amílcar percorria as capelinhas a "ajuda internacional" e fazia o "marketing político" da sua "revolução africana").

A narrativa conserva um estilo de alguma oralidade, mas o autor raramente é traído pelo  crioulo guineense com que, supomos, se exprimia no dia-a-dia, para mais sendo casado com uma senegalesa, de origem cabo-verdiana, Lucette Andrade (ou uma filha de pais cabo-verdianos, da ilha de Santiago, a viver em Dacar), e lidando com muita gente de PAIGC de diferentes etnias. 

No final há um glossário, com 27 termos, para uso do leitor português (sem novidades para nós). O livro é ainda ilustrado com 3 dezenas de fotografias.

Numa primeira impressão, o livro tem algo de hagiográfico: o Luís Cabral viveu muito em função do irmão, que admirava acriticamente, pondo-o  no altar dos deuses ou semi-deuses (que para os gregos eram os heróis). E não é por acaso que as suas memórias acabam com as derradeiras recordações do Amílcar, no dia a seguir à sua morte em Conacri... 

Um dia depois, a 21 de janeiro de 1973, Luís chega a Dacar, e só então sabe da trágica notícia... É o último a saber, cruel ironia!... Senghor põe então um avião à disposição da delegação do PAIGC que se desloca a Conacri para as cerimónias fúnebres"...

Trata-se, mais do que um trajeto pessoal (o do guineense Luís Cabral, filho de pai cabo-verdiano e mãe portuguesa, antigo contabilista da Casa Gouveia, para onde entrou com uma cunha do irmão, conceituado engenheiro agrónomo): é, de facto, uma crónica da "luta de libertação",  mas ao mesmo tempo é também a crónica de uma morte anunciada,  parafraseando o título de um dos romances do colombiano Gabriel Garcia Márquez.  

Ao longo destas quatrocentas e tal páginas, que seguem um fio cronológico, embora sejam avaras em datas precisas, o autor não esconde que o seu irmão foi sendo alvo de várias tentativas de assassinato por parte de homens do seu partido... (A lista parece ser bem maior do que as referidas por Luís Cabral.) (***). A última, em 20 de janeiro de 1973, em Conacri, foi fatal. 

Mas o Luís é incapaz de perceber as razões e as motivações que estão por detrás desta tragédia: como é que um homem como o irmão, Amílcar,  tão amado e até idolatrado por tantos, podia ser também tão odiado por alguns, para mais estando dele tão próximos ?

(Continua)
_________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:


(...) É uma crónica em que quase se endeusa o líder máximo do PAIGC, tal a admiração de Luís pelo irmão. Do princípio ao fim destas memórias, Amílcar Cabral é o autor do pensamento que guia o movimento revolucionário, é o teórico indiscutível, é ele quem elabora os documentos fundamentais, quem tece a estratégia da guerra, quem representa com fulgor o PAIGC nos areópagos internacionais, está no centro da gestão dos conflitos com os países limítrofes, é o militante infatigável, a fonte de coragem que animou um movimento de libertação desde que se constituiu a partir de um simples conjunto de pequenos burgueses de Bissau até ao Exército que se confrontou e fez respeitar pelas Forças Armadas portuguesas. (...) 

(**) Vd. poste de 1 de junho de  2009 > Guiné 63/74 - P4447: PAIGC - Quem foi quem (7): Luís Cabral (1931/2009) (Virgínio Briote)

(***) Vd. poste de 22 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23905: Antologia (87): Apresentação do livro de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral: um outro olhar", pelo eng.º Armindo Ferreira, na Praia, em 5/9/2014

Guiné 61/74 - P24030: (In)citações (229): A matança do porco... do nosso contentamento (Francisco Baptista / Alberto Branquinho / Joaquim Costa / José Belo / Luís Graça / Valdemar Queiroz)

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "Depois da caçada há que preparar o bicho, tal qual uma matança de porco numa das nossas aldeias".


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "É hora de levantar cada um a sua parte e comer em família, cada um em sua tabanca [morança]".

Fotos (legendas): © José Manuel Lopes (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. O texto, de cinco estrelas, que escreveu o Francisco Baptista sobre a matança do porco em Brunhoso, na terra fria transmontana, já mereceu uma boa mão cheia de comentários... Reporta-nos para as memórias, os sabores, os paladares, as brincadeiras,  a ruralidade, as festividades cíclicas, as geografias emocionais da nossa infância, enfim, para um Portugal que não existe mais e donde saiu um milhão de homens para fazer a guerra em África (1961/74), e que eram capazes de vender, não digo a G3, mas pelo menos a alma ao diabo,  por um salpicão, umas chouriças ou um naco de presunto do fumeiro da santa terrinha... (que isso, sim, é que era pecado, para os nossos amigos e leais fulas, respeitadores da lei de Maomé).

Na Guiné os animistas como os balantas criavam uns porquinhos que, com relutância, vendiam à tropa,  às vezes eram atropelados pelo "burrinho" (o Unimog 411), que entrava pela tabanca dentro sem respeitar os "sinais de trânsito" e as orientações da "psícola" do Spínola,,, Outras vezes, havia uns corajosos e sortudos caçadores que lá apanhavam, no mato,  fora do arame farpado, um porco selvagem ou javali... 

Nesses dias havia festa no quartel, como documentam as fotos que acima reproduzimos... (E a propósito, não me lembro de ter comido carne de porco, da "pocilga do vagomestre", mas tenho que admitir que havia vagomestres engenhososos, criativos e nossos amigos que criavam uns porquinhos, com as sobras do rancho...).

Vale a pena, entretanto,  selecionar alguns dos comentários ao poste P24026 (*)

(i) Valdemar Queiroz:

Que apetitoso texto. Com cheiro a porco chamuscado e às tripas que tiravam da barriga ainda a fumar. Só faltou ouvir o porco guinchar antes, durante e no fim da matança.

Em criança de 9 anos, lembro-me de ter ido a uma matança do porco na casa da tia Rosa Verde. Pelo guinchar de outras paragens, o matador devia estar a chegar.

Eram só mulheres a tratar da matança, apenas dois homens a agarrar e atar o porco em cima do carro das "piscas". A minha avó era do grupo que tratava da lavagem das tripas, e eu ia com ela à foz do rio junto ao mar lava-las com areia(?) e limões.

Depois era toda a gente a encher chouriços e os rapazes e raparigas desapareciam nas brincadeiras.

Que pena eu não saber escrever como o Francisco Baptista. (...)

31 de janeiro de 2023 às 23:14  

(ii) Francisco Baptista:

Camarada e amigo Valdemar Queiroz, tu escreves bons comentários também saberás escrever bons textos.

Os porcos grunhem, não guincham, confesso que, à distância de muitos anos, esse grunhir queixoso me incomoda mais do que no tempo real em que acontecia, talvez porque com mais idade, com outra experiência de vida e mais conhecimentos, me tenha dado  conta que há a inteligência humana dos bípedes como nós e a inteligência animal. Talvez os porcos,  ao serem puxados com uma corda e ao depararem com tantos homens,  adivinhassem que era o fim da boa vida e das comezainas. 

Lembro-me da minha mãe que durante muitos anos matou as galinhas e os perus e, com mais idade, deixou de o fazer. Enfim com a idade ficamos mais humanos e passamos a ficar mais próximos e a compreender melhor os animais.

Continuo a gostar da carne de porco, ainda ontem comi um bom cozido dessa carne.

1 de fevereiro de 2023 às 11:07

(iii)  Luís Graça;

Francisco, é um texto de valor etnográfico. É bom poder voltar a ler os teus escritos. Este Portugal, da matança do porco, do fumeiro, da salgadeira..., já não existe mais. Há anos que deixámos de matar o porco em Candoz, no Norte... Mas faz parte das minhas memórias de infância, quando eu, menino e moço, ia à aldeia da minha mãe, Nadrupe, a 3 km da vila da Lourinhã, ma Estremadura, para participar na "festa" da matança do porco... Era sempre por esta altura, no inverno. Ao pé do mar, não se fazem presuntos, mas havia também um bom fumeiro, à base de chouriços.

(,,,) "Lembras-te da matança do porco, do facalhão com que matavam o porco, o alvoroço do povo, de forquilha e sachola na mão, os gritos do porco, o sangue aos borbotões, parirás com dor, os uivos do louco, e comerás o pão com o suor do teu rosto, a agonia do porco, a casa farta, o sarrabulho, o terror da morte, o cruel fatalismo dos provérbios populares, hoje com saúde, amanhã no ataúde, os corpos a sangrar de saúde, filho sem dor, mãe sem amor, a lição de anatomia, se queres conhecer o teu corpo, mata o teu porco, a lição de medicina, o que faz bem ao braço, faz mal ao baço, as partidas que os grandes pregavam à pequenada, a bexiga do porco, alegria de pequenos e graúdos, transformada em bola de futebol por menos de uma hora. Que, afinal, a vida tem uma porta só, a morte tem cem." (...)

1 de fevereiro de 2023 às 12:12

(iv) Joaquim Costa:

Em minha casa todos os anos se matava o porco. Era dia de muitas emoções para mim. O frenesim começava de manhã cedo com os preparativos e terminava ao fim da tarde com a chegada do especialista, com o seu facão para aplicar o golpe de misericórdia no sítio certo de forma a evitar o sofrimento do bicho. Este parecia que adivinhava o que vinha aí,  já que desde muito cedo mantinha um comportamento anormal. O caminho do calvário (corredor da morte) da pocilga até à rudimentar mesa onde era atado, esperneava, grunhia e gritava (...). . Era uma cena macabra. Ainda o bicho ofegava e já era chamuscado com tochas de palha a arder.

Depois era o lavar das tripas, fazer os enchidos e proceder à salga... Mas o que mais me impressionava era a matança da galinha, com a minha mãe cortando a cabeço à pobre ave (que esperneava sem cabeça) que durante meses era tratava com zelo e carinho.

Mas verdadeiramente arrepiante era a matança do coelho com as pancadas dadas no cachaço do fofinho animal. Fugia daquela cena arrepiante, razão pela qual nunca comi coelho na minha vida. 

Felizmente hoje a matança é … mais fofinha ! ?

1 de fevereiro de 2023 às 12:14



(v) Alberto Branquinho

Ó Francisco! Gostei muito do teu texto. Fez-me voltar à infância.

Na minha santa terrinha, que não é muito longe da tua (o Douro separa-nos), aos pulmões não chamam "boches", mas "bofes" e ao teu "piche" chama-se "alpechim" (origem árabe, vê tu, em terra de judeus...).

E com o auxílio de "fachas" de palha a arder não tiravam as unhas ao bicho para dar à garotada? Que as coloca no nariz e berrava: "Cheira a "carrapé"!

E não faziam cruzes no sangue com palhinhas para "coalhar" mais depressa?

O "unto", homem, o "unto"! É capaz de ser por causa disso que o pessoal não tem colesterol... Ou tem?

A matança, pois! Há uns poucos anos assisti a uma (clandestina), mas a pressa de matar (?!) era tanta, com medo de aparecer a fiscalização...

 1 de fevereiro de 2023 às 16:33

(vi) José Belo (... from Key West, Florida, USA):

Fantástico poder de observação. Minuciosos detalhes que transformam uma recordação em algo de vivo e actual.

Será…”todo um mundo que desapareceu “?

Ou antes páginas viradas de um mesmo livro?! Páginas (as viradas e as por virar) que mais não são que um “continuum” existencial?!

Encontram-se no interior do livro o passado, o presente e o futuro?! Entramos neles de acordo com a página,ou capítulo que (de momento) abrimos?!

E,mais uma vez, estou-te grato por teres folheado o teu “livro”.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24029: Notas de leitura (1549): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte X: a importância da acção psicossocial: pondo as mulheres a voltar a pescar... peixe e camarão


Guiné > s/l> s/d> Mulheres a pescar no rio... Cortesia do nosso camarada Carlos Rios [ex-fur mil, CCAÇ 1420 / BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66] (*)


Pormenor da capa do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército).

Na foto da capa, podemos ver o "capitão Cristo", sentado ao centro, com a mão direita no rosto, visivelmente bem disposto, em agradável convívio na casa do Zé Saldatnha [encarregado da Casa Ultramarina, em Bedanda, e onde se comia lindamente, graças aos dotes culinários da esposa, a balanta Inácia]. Por trás, em pé, os alferes Carvalho e Ribeiro e ainda o dono da casa, o Zé Saldanha (antigo militar que esteve em Bedanda). 

Recorde-se o que escrevemos na primeira destas notas de leitura (***):

(---) O livro, composto por cerca de 70 curtos capítulos, pode ser considerado como um "diário de bordo", embora não datado, do autor (ou do seu "alter ego"), que foi o último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (...)

A intensa atividade operacional é intercalada com pequenas, saborosas (e algumas pícaras) histórias do quotidiano do quartel, da tabanca e seus "vizinhos" (que o autor nunca trata por "turras")...

(...) O estilo narrativo é poderoso. Seco, assertivo, direto, às veses quase telegráfico. A escrita é, visivelmente, de um militar, com experiência operacional, e forte espírito de liderança, que quer "chegar, ver e vencer", mas que vai encontrar uma companhia em farrapos (equipada ainda com a velha Mauser, sem fardas novas, mal alimentada, isolada, desmoralizada, mal vista pelo comando do setor, sediado em Catió).

É decididamente um militar que sabe que uma companhia vale pelo seu comandante operacional, e que quer fazer jus à sua divisa "Aut Vincere Aut Mori" (Vitória ou Morte). Pelo que nos é dado inferir da leitura do livro, é um militar de "mão cheia", para usar uma expressão cara ao cor inf ref Arada Pinheiro, seu amigo e camarada (um ano mais novo na Escola do Exército), e que não regateia apoio aos seus soldados, mesmo que com isso tenha que enfrentar a incompreensão e até a desconfiança da hierarqui militar (em Catió e em Bissau). (...) 

1. Continuação da leitura do livro de  Manuel Andrezo, pseudónimo literário de Aurélio Manuel Trindade, ten-gen ref, que foi cap inf no CTIG, o último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (a 4ª Companhia de Caçadores passou, a partir de 1 de abril de 1967, a designar-se por CCAÇ 6, "Onças Negras"). Fez a sua comissão sempre em Bedanda, entre julho de 1965 e julho de 1967. 

Com mais três comissões, primeiro na Índia, depois em Moçambique, como capitão (1962/64) e  outra em Angola, já como major (1971/73), é um militar condecorado com Medalha de Prata de Valor Militar com palma, Cruz de Guerra, colectiva, de 1.ª classe, Cruz de Guerra de 2.ª classe, Ordem Militar de Avis, grau Cavaleiro, Medalha de Mérito Militar de 3.ª classe e Prémio Governador da Guiné. 

Participou no 25 de Abril, como major, tinha então 41 anos e estava colocado na EPI, Mafra. Em esposta ao "Inquérito a 13 generais de Abril", por Adelino Gomes, jornalista do "Público", respondeu, à pergunta "O que sonhava enquanto militar, enquanto cidadão e enquanto indivíduo, no 25 de Abril?", o seguinte: 

"Mais igualdade, melhores condições de vida, encontrar uma solução que não nos desonrasse nem o povo nem os militares, para o Ultramar."

Está à beira de fazer 90 anos (nasceu em Viseu, em 11 de maio de 1933). Vive em Lisboa, víuvo mas rodeado de bons filhos e netos. Em sua honra e para nosso prazer e conhecimento, publicamos  mais um pequeno apontamento das suas memórias, neste caso relativo ao seu dia-a-dia em Bedanda, à frente da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, entre meados de 1965 e meados de julho de 1967. 

O seu "alter ego", cap Cristo, mesmo sem orientações superiores, já na altura procurava pôr em prática a "ação psicossocial" que alguns de nós pensa(va)m ser obra de Spínola e do seu estado-maior... No essencial, e desde cedo, os militares portugueses (a começar pelos comandantes operacionais) se aperceberam que aquele tipo de "guerra subversiva" não se podia ganhar só pela força das armas, e que era preciso ir muito mais longe, ou seja, conquistar ou reconquistar (no caso de balantas, biafadas, mandingas, nalus...) a confiança das populações... O episódio chama-se "Um dia diferente" (pp. 337/339).


Pondo as mulheres a voltar a pescar... 
peixe e camarão

por Manuel Andrezo / Aurélio Manuel Trindade

A alimentação em Bedanda era deficiente, tanto para os militares como para a população civil. Para atenuar tais deficiências o capitão incentivou a cultura do arroz, a plantação da mandioca e da mancarra, essenciais para a alimentação da população nativa. 

Para acompanhar o arroz, o capitão entendeu que era preciso peixe à refeições, e que isso seria resolvido se as mulheres fossem pescar. Após uma conversa com a Tia e outras mulheres grandes, ficou decidido que as mulheres de Bedanda iriam pescar quando quisessem e que o capitão daria uma secção de escolta sempre que a solicitassem. 

Esta decisão caiu tão bem entre as mulheres que passaram a ir pescar todas as semanas pelo menos uma vez. Juntamente com o peixe vulgar também pescavam camarão. Por decisão das mulheres o camarão seria oferecido ao capitão como agradecimento por tudo o que ele estava a fazer em prol da população.

Uma vez, logo nos primeiros dias de pesca, compareceu no quartel a Tia com meia dúzia de mulheres e informaram o Lassen que queriam partir mantanhas ao capitão. E o Lassen informou o capitão. O capitão mandou entrar a Tia e as outras mulheres.

─ Nosso capitão, as mulheres da tabanca estão muito contentes com nosso capitão. Tudo que nosso capitão quiser das mulheres elas fazem.

─ Obrigado, Tia. O que eu quero é que mulheres da tabanca ajudem nosso capitão pescando e trabalhando na bolanha, para haver muito peixe e muito arroz para alimentarem marido e filhos. Vocês têm pescado muito.

─ Temos, nosso capitão. Quando vamos à pesca trazemos muito peixe para comer e mulheres muito contentes por nosso capitão dar protecção com soldados quando elas vão pescar. Elas decidiram que quando vão pescar também trazem camarão que é para nosso capitão. Não é muito mas foi o camarão pescado hoje de manhã.

─ Tia, muito obrigado pelo camarão. Nosso capitão está muito contente com Tia, com mulheres grandes e com todas as mulheres da tabanca por me oferecerem camarão. Nosso capitão gosta muito de camarão e isso vai matar-lhe saudades de Lisboa. Logo nosso capitão vai a tua casa falar contigo e agradecer o camarão que trouxeste.

─ Fico muito contente por nosso capitão ir na minha casa. Nosso capitão não tem que agradecer à Tia ou mulheres da tabanca. A Tia e mulheres da tabanca é que agradecem muito nosso capitão. Nosso capitão pode contar sempre com mulheres da tabanca.

─ Obrigado, Tia. Agradece por mim às mulheres da tabanca. Até logo.

─ Até logo, nosso capitão.

Assim se estabeleceu uma norma em Bedanda. Todas as vezes que as mulheres iam à pesca, traziam camarão para nosso capitão. Camarão muito pequenino, diferente do que se comia em Lisboa mas a que os oficiais da Companhia chamavam um figo. Como nestas coisas não havia propriedade privada, o capitão levava sempre o camarão para a messe, mandava-o cozer e todos petiscavam acompanhando o petisco com cerveja.

Tinha sido de facto um dia diferente. Surgira algo que justificava uma paragem na rotina de todos os dias e que permitia que os oficiais, com um copo de cerveja na mão e um prato de camarões, conversassem amenamente sobre as suas recordações. Um elo que os unia a todos, eles que quase todos os dias jogavam a sua vida em combate e a que tudo se agarravam para se sentirem vivos tanto física como psicologicamente.

Procedendo com a delicadeza tradicional da Guiné que exige que nada se ofereça na hora a uma oferta acabada de receber, porque isso seria ofensivo, o capitão mandou preparar uma encomenda para à noite a levar à Tia, e que seria a retribuição da delicadeza e nobreza de alma que a Tia e as mulheres da tabanca demonstraram. Nessa noite o capitão foi a casa da Tia para partir mantanhas e levou-lhe azeite, arroz, açúcar, conservas e pão. Eram as coisas que os homens e as mulheres da tabanca mais apreciavam. A Tia ficou muito contente por receber o capitão em sua casa com as lembranças que lhe levou.

─ Obrigado, nosso capitão. É uma honra para a Tia receber em sua casa nosso capitão, principalmente quando vem de propósito partir mantanhas. Nosso capitão pode sempre dispor casa da Tia como se fosse sua.

─ Obrigado, Tia. Se me deres licença gostaria de me sentar contigo na varanda um pouco, para conversar, descansar e apanhar o fresco da noite,

─ Fico contente nosso capitão querer ficar sentado comigo na varanda. Vamos, nosso capitão, vamos sentar.

Aí ficaram, capitão e Tia, a conversar como dois bons e grandes amigos, mais de duas horas. Em dado momento, porque a noite já ia avançada, o capitão despediu-se da Tia.

 ─ Agora vou-me embora, Tia. Vou até ao quartel e vou dormir. Obrigado por me receberes em tua casa e por me fazeres companhia. Até amanhã.

─ Até amanhã, nosso capitão. Venha sempre pois tenho muito gosto em o receber.

[Seleção / revisão e fixação de texto / título / negritos, para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de janeiro de  2012 > Guiné 63/74 - P9362: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (11): Fragmentos Genuínos - 9

(**) 20 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23997: Notas de leitura (1544): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IX: o vagomestre e o petisco que não podia ser para todos: o caso da mão de vaca com grão...

(***) Vd. poste de 5 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23553: Notas de leitura (1478): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): as aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte I: "Os alferes não gostaram do novo capitão. Acharam-no com cara de poucos amigos."

(****) Último poste da série "Notas de leitura" > 30 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24023: Notas de leitura (1548): História de Portugal e do Império Português, Volume II, por A. R. Disney; Guerra e Paz Editores, 2011 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24028: Historiografia da presença portuguesa em África (353): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
As atas do Conselho prosseguem dominadas pelas discussão de regulamentos, normas, concessão de créditos, a Província vai se dotando de legislação, bem interessante para quem investiga cotejar estas atas com o Boletim Oficial da Guiné e as leituras possíveis que passavam, por exemplo, pelos jornais e pelo Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Aqui e ali ouve-se a voz do povo, é o caso do padre missionário que vem acusar a autarquia de Bissau de crueza os indígenas que não pagam a tempo e horas, protestando que há dois pesos e duas medidas; ouve-se a queixa de um conceituado comerciante, Mário Lima Wahnon, que manifesta indignação com a concorrência desenfreada no mercado de amendoim, o que leva outro conselheiro a dizer que não há alfaiate ou sapateiro que não cheguem à Guiné e prontamente queiram enriquecer, sabe Deus como. A descolonização já bate à porta, chegámos a 1957 e as perturbações com a União Indiana movimentam manifestações e vozes calorosas a exaltarem o Portugal uno e indivisível.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (7)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Nunca esquecendo que estes volumes depositados na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa têm lacunas, há saltos da cronologia, por exemplo passou-se de 1951 para 1955, dá para ponderar o que distingue uma governação como a de Sarmento Rodrigues e como as dos seus sucessores acabaram por legitimar o espírito de modernização das instituições, consolidando infraestruturas, abrindo estradas, inaugurando pontes e fontanários, cuidando dos equipamentos de saúde, criando o liceu de Bissau, por exemplo. Referimos no último texto que já estamos no mandato de Diogo de Mello e Alvim, iremos verificar grandes ausências do governador por motivos de saúde. Participa no Conselho de Governo um elemento missionário, adiante será mencionado pela importância da sua intervenção. A partir de outubro de 1955 encontramos as atas com bastante regularidade, vejamos sumariamente os assuntos tratados: plano quadrienal de trabalho; crítica por não se incluir no mesmo a construção de silos para a mancarra; há largas referências à necessidade de um grandioso plano de estradas; discute-se a reforma dos serviços de assistência pública, bem como o orçamento geral da província para o ano económico de 1956; concedem-se bolsas de estudos e autorizam-se créditos; é posto à discussão o horário de trabalho dos estabelecimentos comerciais; referencia-se a tuberculose pulmonar como um importante desafio e há consenso para a transformação da missão do sono em missão de combate às endemias; é aprovado uma sobretaxa sobre o preço da gasolina e aprovado o abono sobre as ajudas de custo. Deteta-se que a partir de novembro é contínua a ausência do governador, quem preside ao Conselho é o vice-presidente, o Diretor da Fazenda. É na sessão de 29 de novembro que intervém o padre Cruz Amaral, tinha a ver com uma comunicação que este fizera ao governador, então doente na residência, manifestara discordância de opinião quanto às observações do padre missionário. E abordava publicamente a questão por que se via forçado um esclarecimento.

Assim:
“Há tempos fora abordado por alguns indígenas que lhe disseram ser obrigados pela Câmara Municipal a pagar o chão que ocupam com as suas moradias, vulgarmente de adobes cobertas a colmo. Que o mínimo que lhe cobravam era 200 escudos mensais, afora outros encargos. Fiquei impressionado, solicitei a pessoa da minha confiança para que me obtivesse elementos mais concretos e precisos, pois o assunto interessava sobre maneira ao representante dos interesses dos indígenas no Conselho de Governo. Essa pessoa trouxe-me a mesma notícia devidamente retificada. Os indígenas de Bissau, qualquer que seja o seu grau de assimilação, além de todos os impostos, pagam à Câmara Municipal 100 escudos por cada moradia e se a moradia for alugada passa a pagar 200 escudos; e quando destinada a estabelecimento comercial o imposto camarário pelo terreno que ocupa vai de 400 a 500 escudos.”

E o sacerdote observava a escassez de proventos dos indígenas e a crueza das execuções fiscais, quem não pagava a Câmara arrancava-lhe as portas e delas fazia coleção em monte no recinto do município. E assim verberou:
“Devo dizer a Vossas Excelências tais notícias que me deixaram verdadeiramente atordoado, não se pode ficar impassível perante tal violência. Numa terra como esta em que os CTT não cortam o telefone aos assinantes que estão 2 anos e mais sem pagar; onde a Emissora local sente repugnância em enviar para as execuções fiscais as taxas de recetores atrasadas, nesta terra, vamos descaridosamente arrancar as portas de domicílios que ocupam um chão que antes de ser do município já era dos indígenas. Isto vai contra o que há entre nós de tradicionalmente bom e cristão e compromete bastante os altos princípios de assimilação, de civilização humana que apregoamos”.

As discussões de caráter económico começam a vir à tona, veja-se o exemplo do período antes da ordem do dia aparecer o seguinte alerta vindo de um comerciante, Mário Lima Wahnon: “Avizinha-se o comércio da mancarra. Encerrou-se o comércio nalgumas localidades devido às taxas muito elevadas das licenças de comércio. Mas sei que apesar disso alguns comerciantes servem-se de camiões para comprarem mancarra nas povoações indígenas, com manifesto prejuízo daquelas que se sujeitam a pagar as taxas progressivas e despesas com a manutenção do estabelecimento todo o ano. Esta situação não deve continuar devendo o Governo exercer rigorosa fiscalização sobre este comércio ambulante e clandestino. Também se aproxima a campanha de arroz. Na área de Fulacunda é costume aparecer uma legião de homens e mulheres (chamados cristãos) que conduzem garrafões de água-ardente e tabaco para comprarem arroz de casca e de pilão nas diversas populações indígenas, também com manifesto prejuízo dos comerciantes legalmente estabelecidos. O governo proibiu a comercialização de arroz de pilão, mas a verdade é que o comércio de arroz de pilão continua todo o ano. Começou estes dias a venda de arroz de pilão no porto de Bissau e no mercado”.

Deu-lhe réplica o chefe dos Serviços de Administração Civil, alegando que o problema das limpezas dos produtos é um problema cíclico, observando que o mal tem outra origem, e não se coíbe de dizer qual: “Estamos habituados a ver chegar à província pedreiros, sapateiros, alfaiates, mulheres humildes e homens humildes que nunca tiveram outra profissão se não as que ficam apontadas; no entanto, ou porque o profissão lhes parece deprimente ou porque a sua ânsia é apenas a de enriquecer, 3 dias depois já aparecem licença para estabelecimentos de uma taberna ou de qualquer ramo comercial, intitulando-se comerciante”. Queixa-se que deveria haver regulamentação para instituir a carteira profissional, esta não existe e lembra que se dão fianças aqueles que adquirem camiões que permitem ir às tabancas utilizando meios ilegais e fraudes.

O Conselho continua a ser presidido pelo Diretor da Fazenda, o esforço legislativo prossegue: normas sobre os serviços de administração e funcionamento dos armazéns ou depósitos fiscalizados de regime aduaneiro, revisão do Regulamento dos Serviços das Alfândegas da província da Guiné; normas sobre a entrada, trânsito e saída de peles; regulamento de transportes em automóveis; tabelas de emolumentos a cobrar nos serviços públicos da Guiné. A 25 de abril de 1956 comunica-se a exoneração de Diogo de Mello e Alvim e a nomeação de Álvaro Silva Tavares, este presidirá à 1ª sessão do Conselho em 1 de outubro.

Paira já no ar a chamada questão da Índia e o chefe dos Serviços de Administração Civil apresenta uma moção a propósito de uma manifestação da população de Bissau de solidariedade com o governo central, no sentido de que a nação portuguesa é una, indivisível, e que a província toda está em íntima comunhão com estes princípios. “O Conselho de Governo não pode ficar indiferentes às interpretações que têm havido na ONU, em que o nosso delegado tem procurado mais uma vez demonstrar a inanidade dos conceitos de outros que, evidentemente, ainda não terão a capacidade suficiente para compreender o que seja uma unidade na diversidade”, moção que foi aclamada pelo Conselho com vozes de muito bem e apoiado.

(continua)

Avenida da República, Bissau
Pormenor da Catedral de Bissau
Estatueta Bijagó
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24010: Historiografia da presença portuguesa em África (352): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24027: (In)citações (228): Na morte do Francisco Silva (1948-2023), relembrando o cmdt do Pel Caç Nat 51, Nuno Gonçalves da Costa, assassinado por um dos seus homens, em Jumbembem, em 16/7/1973 (Manuel Luís R. Sousa, SAj Ref, GNR)

1. Comentário (*) do nosso camarada Manuel Luís R. Sousa (sargento-ajudante da GNR na situação de reforma; ex-soldado da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4512/72, Jumbembem, 1972/74; autor do livro "Prece de um Combatente - Nos trilhos e trincheiras da guerra colonial" (2012) (**): tem 46 referências no nosso blogue, e entrou para a Tabanca Grande em 31/3/2011.
 

A MORTE DO ALFERES NUNO GONÇALVES DA COSTA

por Manuel Luís Rodrigues Sousa

(excerto do meu livro "Prece de um Combatente", 2012, imagem da capa à esquerda).

Em março ou abril de 1973, Jumbembém foi reforçado com um pelotão de militares nativos, para suprir a falta do 1.º pelotão acabado de ser colocado em Canjambari, um quartel a sul de Jumbembém, a cerca de doze quilómetros, juntamente com outro pelotão de Cuntima, em substituição de uma companhia que dali foi retirada.

Desse pelotão de nativos, o Pel Caç Nat 51,  apenas os comandos, o alferes, Nuno Gonçalves da Costa,  e um furriel, eram de origem metropolitana.

Num dia em que se realizava a habitual coluna de reabastecimentos a Jumbembém, Cuntima e Canjambari, a 
16 de julho de 1973, um dos elementos deste pelotão pediu ao alferes Costa, ao seu comandante, para o deixar seguir na coluna de Jumbembém para Cuntima para visitar familiares.
Tratando-se de um militar rebelde e indisciplinado, como forma de o castigar, o alferes não autorizou a sua deslocação a Cuntima.

Perante esta recusa, o referido militar deslocou-se ao quarto do alferes, em fim de comissão e quase formado em medicina, com um futuro promissor pela frente, disparando contra ele dois ou três tiros de G3, atingindo-o na região do abdómen.

Foi-lhe prestada a assistência possível na enfermaria, enquanto se aguardava a evacuação por meios aéreos que entretanto foi pedida.

Passada pouco mais de uma hora veio a falecer, perante a impossibilidade de ser evacuado por falta desses meios aéreos, cujo uso era já particularmente restritivo, em consequência dos mísseis Strela ao dispor do PAIGC.

Este caso ilustra bem a perda do controlo aéreo na Guiné das Forças Armadas Portuguesas a que faço referência noutra parte do livro.

O referido alferes Costa era natural de Campos de Sá, S. Jorge, Arcos de Valdevez.

Após a sua morte, foi substituído pelo alferes Francisco Silva. Foi nestas circunstâncias que o alferes Silva chegou a Jumbembém. 

Que descansem em paz o alferes Silva, bem como malogrado alferes Costa. (****)

30 de janeiro de 2023 às 19:24

(Revisão e fixação de texto: LG)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de janeiro de  2023 > Guiné 61/74 - P24022: In Memoriam (467): Francisco Justino Silva (1948-2023), médico, ortopedista, ex-alf mil, CART 3492 / BART 3873, Xitole, e Pel Caç Nat 51, Jumbembem (1971/73) cerimónias fúnebres, hoje, em Porto Salvo, na igreja local, com velório a partir das 16h00; missa de corpo presente às 14h00 de 3.ª feira, seguindo o funeral para o cemitério de Carnaxide


(***) Vd. postes de:


(...) Presumo que o alferes devia estar deitado. Deve ter-se levantado e foi nessa altura que o homem pegou na G3 e, traiçoeiramente, disparou três tiros à queima-roupa sobre o oficial português.

Este último ainda foi levado para a enfermaria, onde se prestaram os primeiros socorros, ao mesmo tempo que foi pedido, com a maior urgência, a sua evacuação aérea. Como estava a perder muito sangue, foi pedido sangue e, voltou a ser pedido insistentemente, o máximo de urgência na sua evacuação, que tardava em aparecer.

E tanto tardou que o alferes não resistiu aos ferimentos e faleceu, sem que aparecesse qualquer meio aéreo para o socorrer. Esta situação indignou todo o pessoal da companhia, desde o soldado até ao comandante.

O nativo foi preso com arames nos pulsos, atrás das costas, enquanto os próprios elementos do Pel Caç Nat 51, bem como a milícia queriam fazer justiça pelas próprias mãos (linchá-lo). Valeu-lhe o nosso comandante, que ordenou:

- Não lhe toquem!

Mas, mal ele virava as costas, alguns militares mais revoltados descarregavam a sua ira em cima do assassino, que foi depois colocado na casa do motor (gerador), que se situava ao lado do tanque da água.

Ali permaneceu o prisioneiro até meio da tarde, altura em que o nosso comandante, penso que por causa da evacuação não se ter efectuado e achando que o comandante em Farim teve alguma culpa nesta falta, resolveu ir a Farim levar o corpo do alferes em sinal de protesto.

Deslocamo-nos então numa coluna motorizada (já não sei quantos nem quais pelotões), com o corpo do defunto numa viatura “Berliet” e uma bandeira nacional a cobri-lo, até Farim (sede do Batalhão 4512).

A coluna fez-se sem fazer a habitual picagem, tal era a revolta, desagrado e excitação que grassava em todo o pessoal da Companhia. Um risco acrescido, mas justificado pela hora tardia para o fazer.

Viam-se aqui e ali soldados e graduados com as lágrimas nos olhos, chocados com um desfecho fatídico que o alferes assassinado não merecia, porque todos eram conhecedores e concordantes de que ele era boa pessoa e bom para os nativos do Pel Caç Nat 51. Talvez bom demais,  ainda hoje o penso e digo! Segundo ouvi dizer na altura, ele, quando isso lhe era solicitado, inclusive emprestava dinheiro aos militares do seu pelotão.

A coluna chegou à entrada de Farim, abrandou mais um pouco e continuou a sua marcha, enquanto os militares que a compunham saltaram para o chão e acompanharam as viaturas a pé. Ao passar defronte ao edifício de comando, estava em posição de sentido e continência um graduado (ou era o comandante - Ten Cor Vaz Antunes -, ou o 2º comandante Major Menezes, já não me lembro bem).

Este é o relato com que fiquei gravado no pensamento desse dia.

Também trouxemos o nativo assassino que, pelo caminho fora na viatura onde seguia, alguns soldados, em certas alturas do percurso, continuaram a dar-lhe o “tratamento especial”, tendo o mesmo chegado a Farim num estado físico muito debilitado.

Disseram-me posteriormente que ficou preso em Farim e depois seria enviado para a “Ilha das Cobras”.

Para substituir o comando do Pel Caç Nat 51, foi destacado o alf mil at inf Francisco Silva (madeirense), que apareceu na 2ª Companhia do BCAÇ 4512 logo após esta tragédia. (...)


(****) Último poste da série > 27 de dezembro de  2022 > Guiné 61/74 - P23921: (In)citações (227): As cheias, estas e as outras (Hélder V. Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24026: Os nossos seres, saberes e lazeres (553): As matanças eram tempos de celebração e de paz entre as famílias (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)


Bragança > estaurante  "Solar Bragançano" > Cozinha do restaurante deste "distinto e afamado  restaurante", de que são proprietários a irmã e o cunhado do  Francisco Baptista. Fica na Praça da Sé 34, 5300-265 Bragança / Telefone: 273 323 875... Olhem-me só o que deixa antever a sua página no Facebook: é obrigatório lá ir!... O Francisco este anos todos sem nos dizer nada do restaurante da mana ?!...Em 2017 foi premiado como um dos 10 melhores restaurantes de Portugal!...

Foto (e legenda): © Francisco Baptista (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de hoje, 31 de Janeiro de 2023, trazendo até nós a tradição da matança do porco na sua casa, em Brunhoso:


AS MATANÇAS
por Francisco Baptista

As matanças eram sempre aos domingos, os únicos dias de folga que os lavradores tinham, e repetiam-se por tantos dias quantos os casais de irmãos ou irmãs que cada casal tinha. Procuravam-se escalonar de forma a não haver coincidências, para que todos pudessem estar presentes nesses dias festivos.

Eram tempos de celebração e de paz entre as famílias, em que se procuravam esquecer as querelas ou pequenas guerras que podiam existir entre irmãos e cunhados,  causadas por diferenças de indoles e temperamentos, por divergências nas demarcações dos terrenos, por palavras que no calor das discussões podiam soar a insultos, por dívidas esquecidas ou que tardavam a ser pagas ou por outras questiúnculas. 

 Os cunhados e cunhadas vinham de outras famílias com algumas diferenças de ser e de estar, os irmãos, sendo filhos do mesmo pai e da mesma mãe, nunca eram iguais pois tinham ADN diferentes, herdados de uma cadeia de antepassados de melhor ou pior qualidade e com o crescimento e com a constituição de famílias próprias e exclusivas as diferenças iriam acentuar-se mais, ao ficar também sujeitos à influência benéfica ou desfavorável do respectivo cônjuge.

Estes convívios tão salutares para reforçar os laços familiares, organizados com leis e regras que pareciam imutáveis, se desmoronou como um baralho de cartas, no último quartel do século XX, com a globalização, a desertificação, o abandono dos campos, a diminuição abrupta da natalidade, e a desagregação da família. Serão na sua génese,  não de influência judaico-cristã, mas serão de origem romana mais antiga, que está na base da nossa língua, das nossas estradas e comunicações, do direito civil e familiar, a civilização que nos deixou mais marcas.

Pela proximidade e pela conjugação de todos estes factores, com a morte das mães e dos pais que procuravam mantê-los unidos, os choques e os focos de desunião, motivados também por interesses egoístas e de grupo, iriam acentuar-se inevitavelmente.

Há alguns dias um amigo e vizinho, da minha idade, homem bom e como tal considerado por muita gente (para mim um homem bom tem que o ser no plural) disse-me que tinha sete irmãos e que não falava com quase nenhum. É um artista, um profissional honesto, sempre admirei estes homens e fiquei espantado, a explicação só poderá estar no que escrevi atrás sobre as relações, as diferenças e os conflitos familiares.

Em casa dos meus pais eram criados todos os anos dois porcos, numa loja ao lado da casa. Todos os dias antes do nosso almoço e da ceia, aquecia-se numa caldeira nas grades da lareira a "vianda" com produtos da horta, couves, beterrabas, abóboras, batatas, adubada com farelos, a que se juntavam outros restos que houvesse, pois eles, sendo glutões, não eram exigentes, que seria levada para ser despejada na pia de pedra onde comiam sofregamente. 

 No Outono, quando se aproximavam as matanças, para os cevar, tornando as suas carnes mais rijas, davam-se-lhes também rações cruas de batatas, bolotas e castanhas.

Na manhã do domingo aprazado para a matança, o pai e os filhos varões mais crescidos traziam para a lareira os maiores toros de carrasco ou de sobreiro e outra lenha mais fina de boa qualidade para aquecer o ambiente, dar calor a todos, e aquecer as grandes panelas de ferro que,  guardadas na despensas, depois de lavadas, teriam que cozinhar comida para mais de quarenta pessoas, entre crianças, jovens e adultos.

Havia dois porcos nédios, para serem sacrificados aos Lares, deuses da família, que eram o orgulho da nossa mãe pois tinha sido ela que os tinha criado, e sei, conhecendo-a bem, que se sentia muito contente por ter reunido toda a gente da sua família e da do seu homem, apesar do trabalho que lhe dariam.

Pelas nove apareciam os homens da família que iriam "fazer o mata-bicho", um pequeno-almoço frugal para aquecer, à base de figos secos e aguardente.

Os porcos, um de cada vez eram atados com corda e guiados para um banco, onde os mais velhos e os jovens adultos, os deitavam e agarravam para serem mortos com um golpe certeiro de uma grande faca, chamada porqueira, manejada entre as pernas dianteiras e o pescoço, pela mão hábil do matador, um homem da família, muitos anos um tio, mais tarde um primo, que lhe atingiam o coração com um golpe certeiro, para minorar o seu sofrimento.

Depois era queimado o pêlo com colmo de centeio e raspado com navalhas e com pedaços ásperos de cortiça, para o couro ficar bem limpo. A seguir era aberto, pelo matador, tirando-se todos os "pordentros",  as tripas, o fígado, os boches (pulmões), a bexiga, os rins, etc.

As tripas seriam levadas logo pelas mulheres da família para serem lavadas na água corrente e fria, por vezes próxima da congelação, de um ribeiro, para alguns dias depois a dona de casa ensacar as chouriças, salpicões e outros enchidos.

Parte do sangue do porco era cozido e dado a comer a quem gostasse, outra parte era tratado para não coagular para fazer os chouriços de sangue.

A carne do porco,  um bem primordial tal como o trigo, o centeio, as batatas, o azeite, a hortaliça, seria guardada na despensa, de diferentes formas para alimentar a família durante todo ano. A despensa da casa era uma espécie de grande arca frigorífica onde todos os alimentos se guardavam e conservavam.

Ao almoço em casa iríamos comer galinha, vitela, ou outras carnes em alternativa. Os homens e os jovens adultos bem instalados na mesa da sala com vinho à discrição, que quase todos apreciavam, iriam sair satisfeitos, apaziguados, e a pensar na próxima matança. As mulheres e a garotada na cozinha ou na entre-sala contígua, contentes à sua maneira. As mulheres porque tinham contribuído para a paz da família alargada e os primos e primas porque tinham tido um grande convívio, boa comida e muita brincadeira.

As matanças eram feitas nas ruas por causa do fogo e da água que era necessário utilizar na preparação das carcaças e aos domingos porque, sendo dia de folga,  não iriam estorvar o trânsito dos carros de vacas proibidos de circular, nesse dia, pela Santa Madre Igreja. Nos meses de Novembro e Dezembro, em Janeiro já não porque começavam os lagares de azeite a trabalhar e iriam despejar para os ribeiros o piche, um líquido escuro, que não era azeite, que também saía das azeitonas quando se espremiam e era encaminhado juntamente com a água utilizada, para o ribeiro mais próximo, tornando as suas águas turvas e impróprias para lavar as tripas.

As mulheres que criavam os porcos, preparavam as suas carnes e faziam os enchidos, as nossas avós, as nossas mães, as nossas tias, já morreram ou estão velhinhas, tal como os seus homens que os matavam , os "desfaziam" e plantavam as hortas, com grande abundância de hortaliças e outros bens alimentares.

Os porcos,  depois de mortos e preparados na rua,  eram pendurados em vigas nas despensas dois dias para verterem bem todo o sangue. Ao terceiro dia o chefe de família iria desfazê-lo, serviço que consistia em cortá-lo de acordo com as características das partes que o constituíam. Separar os presuntos, o toucinho, o lombo, as costelas, os pés, o focinho e outras partes, era um trabalho árduo que requeria pulso, uma boa machada e facas bem afiadas. Recordo-me que o meu pai fechava-se na despensa para fazer esse trabalho e não queria ninguém à sua beira.

Em alguns concelhos transmontanos felizmente ainda há casais, alguns jovens, que se dedicam a essa actividade. É bom que não se percam os bons sabores e a qualidade dos produtos da terra fria transmontana.

"Ao ser indagado, sobre qual a ave que mais gostava de comer,  um espanhol citou as qualidades do frango, da perdiz mas suspirou dizendo: Se o porco voasse... seria ele a primeira das aves".

O porco enchia a casa dos lavradores de bons sabores desde o focinho aos pés tudo se aproveitava:

- O focinho, os pés, as orelhas, o bulho (bexiga de porco enchida com carne com osso, curada no fumeiro), tudo cozinhado com casulas (vagens secas) e batatas, compunham um prato delicioso para comer nos dias frios do Inverno, obrigatório nos dias de Carnaval;

- Os presuntos curados com muito sal, depois cinza, a seguir limpos e pendurados nas despensas, não iriam ao fumeiro, o frio seco do planalto completava a sua cura; eram das peças mais importantes e apetitosas do animal, comidos com parcimónia em dias especiais e na recepção de familiares ou amigos;

- O toucinho, o parente pobre do presunto, era curado da mesma forma, tinha os seus admiradores, ficava mais saboroso com a passagem dos meses frios e quentes, quando o sol já desmaiava no horizonte, no tempo das sementeiras em Setembro e Outubro;

- A marrã, a carne entremeada da barriga seria grelhada à lareira acompanhada por batatas cozidas, grelos ou couves;

- Com as carnes magras do lombo e de outras partes, as donas de casa faziam os "chichos" que seriam postos em "suça", a marinar temperados com vários condimentos em alguidares ou barrinhões, durante alguns dias na despensa, muito saborosos; com o amor e as liberalidade das mães, alguns seriam grelhados na lareira e comidos com batatas e grelos ou couves, porém a maior parte seriam para fazer as chouriças e os salpicões, os enchidos mais valiosos do fumeiro;

- O fígado e os rins grelhados, eram petiscos que todos apreciavam; outro petisco guloso eram os rojões do redanho (diferentes dos rojões do Minho) fritos na sertã;

- Com a banha do porco fazia-se o "unto",  muito saboroso para barrar as torradas ou para temperar o caldo.

Aproveitando o tempo frio e seco, o contributo e inspiração do ciclo do porco as cozinheiras iriam encher os fumeiros de todos os géneros de enchidos, alguns com carne dele, outros com outras carnes, outros sem qualquer carne: as alheiras, os azedos, os chabilanos, os brancos, os doces e outros, breves dias depois do mata-porco iriam encher o fumeiro com formas e cores variadas, que consolavam a vista e anunciavam prazeres futuros ao paladar.

Infelizmente não há uma história fotográfica desses encontros familiares, nem das grandes fogueiras à lareira ou dos fumeiros que cobriam o espaço acima. As pessoas gostavam de conviver, sem se preocupar em registar os momentos. Também raramente alguém tinha máquina para tal, não fazia parte dessa cultura.

A fotografia que acima de publica,  é de um fumeiro feito pela minha irmã Ana Maria, há alguns anos na cozinha do restaurante dela e do marido em Bragança. Um restaurante distinto e afamado, "Solar Bragançano",  que continua aberto sendo ela a cozinheira. Foi professora de meninos e foi uma grande aluna da nossa mãe, a trabalhar à lareira com panelas de ferro e a fazer boas alheiras chouriços e salpicões. A história continua...


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Nota do editor:

Último poste da série de 28 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24018: Os nossos seres, saberes e lazeres (552): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (87): Uma visita a legados presidenciais, a pretexto da exposição Pintasilgo (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24025: Notícias Lusófonas (2): Morreu Luís Moita (1939 - 2023), grande amigo da Guiné-Bissau, especialista em relações internacionais, esteve com alguns de nós no Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de março de 2008)




Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2000) > Sessão de encerramento, dia 7, de manhã > O Prof Doutor Luis Moita (*), em nome de todos os participantes portugueses e demais estrangeiros (com excepção cabo-verdeanos e dos cubanos Oscar Oramas e Ulisses Estrada, que fizeram intervenções autónomas) profere, de improviso, um caloroso e brilhante discurso de síntese sobre o balanço daquela "semana inolvidável" que foi o Simpósio Internacional de Guiledje e as perspectivas que se abrem para o futuro da Guiné-Bissau em matéria de democratização interna e de cooperação internacional ...

O conteúdo do discurso de 10 minutos centra-se à volta de quatro ideias-chave: Organização, Rigor histórico, Densidade humana, Qualidade política. É uma intervenção de grande qualidade intelectual e humana, que nos honrou a todos, e em que Luís Moita mostra, para além da sua faceta de talentoso orador, toda a sua grande cultura como especialista de relações internacionais, e sobretudo a sua grande inteligência emocional, como português e amigo da Guiné-Bissau.

Na altura escrevemos que era uma pena este vídeo não estar disponível para os Amigos e Canaradas da Guiné, e nomeadamente na véspera da inauguração do Núcleo Museológico Memória de Guiledje que vem celebrar, não a derrota de ninguém, mas a fraternidade dos povos, trinta e seis anos depois do fim da guerra colonial, e muito em particular vem contribuir para o reforço da relação especial que une o povo guineense e o povo português.

Recordo aqui a composição do Comissão de Honra do Simpósio (**):

  • Presidente da República da Guiné-Bissau, General João Bernardo Vieira
  • Dr. Francisco Benante, Presidente da Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau
  • Dr. Martinho N’Dafa Cabi, Primeiro-Ministro da Guiné-Bissau
  • Doutor Nuno Severiano Teixeira, Ministro da Defesa de Portugal
  • Doutor João Cravinho, Secretário de Estado da Cooperação Internacional de Portugal
  • Professor Doutor Patrick Chabal, docente da King’s College, Londres, Grã-Bretanha
  • Professor Doutor Luís Moita, Vice-Reitor da Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal
  • Doutor Óscar Oramas, Ex-Embaixador de Cuba na Republica da Guiné-Conakry.
  • Professor Doutor João Medina, Professor Catedrático da Universidade de Lisboa, Portugal
  • Flora Gomes, Cineasta guineense
  • Professor Doutor Peter Mendy, docente no Rhoad Islands College, Boston, USA.

Vídeo (10' 14''): Luis Graça (2009). Alojado em You Tube > Nhabijoes


1. Morreu Luís Moita, que eu conheci pessoalmente na sequência do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de março de 2008), e de quem guardo, eu e a Alice, gratas recordações desses dias que passámos juntos. Recordo sobretudo a sua afabilidade, empatia e inteligência emocional...ms também a sua inquietação crítica, face ao futuro da Guiné-Bissau  e do que restava da elite do PAIGC...

Sobre o seu currículo de vida (inclundo académico), não me vou aqui pronunciar, mesmo que ele tenha sido meu "vice-reitor" durante algum tempo, no ano lectivo de 1994/95, quando dei colaboração à sua universidade, a UAL - Universidade Autónoma de Lisboa. (Em boa verdade,  colaborei, com o Departamento de Ciências Sociais da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), na elaboração dos programas e na docência de novas disciplinas, a Administração de Serviços de Saúde e a Sociobiologia, no âmbito da licenciatura em Sociologia, em 1994/95, por convite do então regente da Cadeira de Ciências Sociais e Humanas da ENSP - Escola Nacional de Saúde Pública, Dr. João Santos Lucas, mas nunca vi nem contactei o então vice-reitor Prof Luís Moita.)

Deixem-me no entanto destacar aqui alguns pontos do seu CV, relativos aos seus  últimos 20 anos, para se perceber melhor a sua relação com a instituição militar e a sua autoridade, como especialista em Relações Internacionais.

  • 2015-2018: Professor do Doutoramento em Relações Internacionais: Geopolítica e Geoeconomia
  • 2005-2018: Director do Departamento de Relações Internacionais da UAL 
  • 2005-2011: Professor do Curso de Estado Maior no Instituto de Estudos Superiores Militares 
  • 2004-2018: Professor do Curso de Promoção a Oficial Superior no Instituto de Altos Estudos da Força Aérea e no Instituto de Estudos Superiores Militares 
  • 2003-2018: Professor do Mestrado em Estudos da Paz e da Guerra 
  • 1998-2018: Conferencista regular do Curso de Defesa Nacional do Instituto de Defesa Nacional
  • 2010-2018: Director da revista JANUS.NET, e-journal of International Relations 
  • 2009-2011: Membro do Conselho de Ensino Superior Militar no Ministério da Defesa Nacional 
  • 2006-2018: Membro do Conselho Editorial da revista Nação e Defesa do Instituto de Defesa Nacional

Limito-me aqui a lamentar profundamente a sua morte, aos 83 anos, e a endereçar os meus votos (pessoais) de pesar à sua família e amigos íntimos.  Aproveito para  reproduzir alguns destaques da imprensa em língua portuguesa, disponível "on line".

Lembro que o Luís Moita  não faz parte da nossa Tabanca Grande, mas tem pelo menos uma dúzia de referências no nosso bogue. 

O seu funeral é hoje, terça-feira, dia 31, em Lisboa. (***)


Diário de Notícias > 28 de janeiro de 2023, 20:08 > "Até sempre Professor". Morreu Luís Moita

(...) Luís Moita, um dos últimos presos de Caxias a ser libertado, professor da Universidade Autónoma morreu este sábado. Tinha 83 anos. (...)

Expresso / Lusa, 28 de janeiro de 2023, 21:33 >  Marcelo evoca professor Luís Moita, "lutador pela justiça social" e "militante pela igualdade"

(...) O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lamentou hoje a morte do professor Luís Moita, evocando-o como um "lutador pela justiça social" e "militante pela igualdade" e endereçou à família e amigos "um sentido abraço de pêsames". (...)

7Margens, 29 de janeiro de 2023 > Na Igreja de Santa Isabel, em Lisboa: Funeral de Luís Moita dia 31, velório nesta segunda-feira

(...) O funeral de Luís Moita, professor universitário e um dos organizadores da vigília da Capela do Rato em 1972 contra a guerra colonial e pela paz, será nesta terça-feira, 31, às 15h, na Igreja de Santa Isabel, em Lisboa. Antes disso, o corpo será velado na mesma igreja a partir das 18h30 desta segunda-feira, 30 de Janeiro.

Nascido em 11 de agosto de 1939, Luís Moita, morreu sábado em Lisboa, como o 7MARGENS noticiou. Tinha 83 anos.

Tendo sido padre, Luís Moita doutorou-se em Roma em Ética, em 1967, na Universidade Lateranense. Abandonou depois o ministério e em Dezembro de 1972, foi um dos organizadores da vigília de católicos que demonstrou o afastamento de largos sectores católicos em relação à ditadura do Estado Novo. Foi preso pela polícia política e sujeito a tortura.

Depois da instauração da democracia, em 25 de Abril de 1974, Luís Moita foi fundador e dirigente do CIDAC (Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral), entre 1974 e 1989, dedicando-se depois quase exclusivamente à carreira académica, leccionando as áreas de Ética e Relações Internacionais.(...)

Esquerda.net > 28 de janeiro de 2023 > 19:47 > Luís Moita (1939-2023)

(...) Foi um dos protagonistas entre os católicos contra a guerra e a ditadura. Em democracia, dedicou-se à cooperação com África e mais tarde à academia na área das relações internacionais e do estudo da paz e dos conflitos armados. (...)
 


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Mata do Cantanhez , algures no sector de Bendanda, no triângulo Iemberém, Cadique e Cananime, na margem direita do Rio Cacine > Simpósio Internacional de Guiledje > Domingo, de manhã, 2 de Março de 2008 > Visita ao antigo Acampamento Osvaldo Vieira (agora reconstituído) ... Dois exemplares da espécie Ui!ui! (****), uma variante albina: O Cor Cav Ref e escritor Carlos Matos Gomes e o Prof Doutor Luís Moita , vice-reitor da UAL - Universidade Autónoma de Lisboa, e antigo fundador e dirigente do CIDAC; os dois claramente deslocados do seu habitat natural, que é o mangal de Lisboa)


 Foto (e legenda): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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(****) Vd. poste de 20 de outubro de  2009 > Guiné 63/74 - P5135: Humor de caserna (14): Curiosidades zoológicas: Os Ui!Ui!, animais nocturnos, do tarrafo do Rio Grande de Buba (José Belo)