terça-feira, 16 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3211: PAIGC: Instrução, táctica e logística (15): Supintrep, nº 32, Junho de 1971 (XV Parte): Os Armazéns do Povo (A. Marques Lopes)


Guiné > Possivelmente numa base do PAIGC, no sul, na região fronteiriça > Visita de uma delegação escandinava às regiões libertadas > Novembro de 1970 > Foto nº 28 > Transporte de sacos de arroz em viaturas soviéticas. Segundo a inteligência militar portuguesa, o PAIGC dispunha, na Guiné Conacri, de cerca de 40 camiões russos (havia dois modelos, o Gaz e o Gil) , que faziam o transporte dos abastecimentos de Conacri até a Kandiafara e, depois de queda de Guileje, em 22 de Maio de 1973, até mesmo para lá das fronteiras... O grande celeiro do sul abastecia de arroz as populações sob controlo do PAIGC; os excedentes eram exportados, nomeadamente para a região norte. Havia uma rede de Armazéns do Povo que ia de Conacri até ao interior das regiões libertadas. Essa rede, mal ou bem, funcionava e terá permitido o desenvolvimento de uma "economia de guerra", que muitos de nós, antigos combatentes portugueses, conhecia mal ou até desconhecia... 

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a competente autorização do NAI) (As fotografias tem numeração, mas não trazem legenda. Legendagem de LG).

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Rio Udunduma > 1970 > Como já aqui escrevemos, noutro poste, a economia guineense dependia também da produção pecuária que por sua vez estava dependente da prática da transumância, prática essa que a guerra veio limitar ou inviar... As manadas de gado dos fulas, povo originalmente de pastores nómadas, eram um sinal exterior de riqueza e de status social do seu dono. Por essa razão, os fulas tinham tradicionalmente relutância em alienar esse património... Por morte do dono, os animais eram abatidos para alimentar o choro, uma festa que se prolongava por vários dias, dependendo da posição hierárquica do defunto na sociedade fula... Com a guerra, a entrada de dinheiro nas tabancas fulas fazia-se por duas vias: o pré dos soldados africanos e das milícias e as vendas de gado vacum aos militares portuguesas, compensando a quebra da produção da mancarra, devido à guerra... O porco era criado pelos povos animistas e ribeirinhos: balantas, manjacos, papéis... Havia por vezes conflitos com a população local, devido a abusos dos militares (que roubavam ou matavam vacas, porcos, cabritos ou galinhas)... Durante a Operação Lança Afiada (8 a 18 de Março de 1969), as populações sob controlo do PAIGC, no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, sofreram grandes perdas de gado... Muitos animais foram abatidos a tiro, nalguns casos foram, inclusive, levados até ao aquartelamento do Xitole onde foram abatidos e consumidos (*) (LG). 

 Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

1.  Continuação da publicação do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971, documento classificado na época como reservado, de que nos foi enviada uma cópia, através de mais de um dúzia de mails, entre Setembro e Outubro de 2007, pelo nosso amigo e camarada A. Marques Lopes, Cor DFA, na situação de reforma, que é residente da Tabanca de Matosinhos, a maior das tabancas da nossa Tabanca Grande... 

 Este texto já circulou pela nossa tertúlia, através de mensagem de 23 de Setembro de 2007. Esta série tem vindo a ser publicada, com alguma irregularidade, desde há um ano (**), e está longe de ter chegado ao fim. A divulgação deste e doutros documentos sobre a organização e o funcionamento do PAIGC é meramente ididáctica, não implica, por nossa parte, qualquer juízo de valor. E, não é de mais referi-lo, não é um documento de PAIGC (embora utilize fontes escritas e orais ligadas à guerrilha que então nos combatia) tem como origem o próprio Com-Chefe da então província portuguesa da Guiné. Trata-se de Subintrep que foi distribuído aos comandos das unidades do CTIG em Junho de 1971.(Supintrep: Do inglês, Supplementary Intelligence Report, ou seja, Relatório de Informação Suplementar.) (LG) 

  AGRICULTURA, PECUÁRIA E INSTALAÇÕES COMERCIAIS: 

(1) Produção agrícola nas “regiões libertadas”; pecuária 


 Em todas as “áreas libertadas” do Sul da Província a produção das culturas alimentares tem registado elevado crescimento, tanto como resultado do aumento das superfícies cultiváveis com ainda em consequência de melhores cuidados atribuídos a essas culturas. 

 Efectivamente, apesar da redução do tempo útil de trabalho motivado pela crescente actividade das NT, muitas bolanhas têm sido aproveitadas, o que se traduz num aumento de produção de arroz em percentagens que chegam a atingir de ano para ano os 20%. 

As “áreas libertadas” do sul são mesmo já autosuficientes para satisfação das suas necessidades alimentares, sendo os excedentes da sua produção de arroz enviadas para o exterior, para distribuição a outros locais onde a produção não atinge os níveis necessários. O mesmo não acontece no Norte da Província. Aqui a população, tradicionalmente mais ligada a outras culturas, não produz arroz em quantidades suficientes para se abastecer, pelo que são enviadas regularmente colunas à fronteira para transporte desse produto para o interior. 

 Outras culturas alimentícias, tais como mandioca, batata doce, milho e legumes, subsidiárias na ração alimentar da população, têm tido também apreciáveis aumentos de produção. O desenvolvimento da cultura de féculas e legumes abre novas perspectivas para a utilização de um sistema alimentar novo, reduzindo o uso do arroz, quer na frequência quer na proporção. 

 Ainda nas “áreas libertadas” do sul, nomeadamente nas regiões de Catió e Cacine, as populações têm-se dedicado ainda ao desenvolvimento das culturas frutíferas, tendo os cuidados prodigalizados no tratamento permitido a obtenção de uma abundante produção de anazes, bananas, papaias, laranjas, etc. Igualmente se refere, dada a importância de que se reveste, a especial atenção que tem sido dada ao tratamento de gado e animais de criação.

 Como factores decisivos no desenvolvimento da produção agrícola e pecuária que se verifica especialmente nas “áreas libertadas” do Sul, refere-se, por um lado, a existência de agrónomos especializados na Rússia e Cuba e, por outro, o intenso trabalho político levado a efeito no seio das massas rurais, convencendo-as da importância que representa o desenvolvimento agrícola das “áreas libertadas”. A fim de recompensar os que mais se esforçam no trabalho dos campos, o Partido institui prémios para os melhores produtores. 

  (2) Empresa de comércio geral (Armazéns do Povo) 

 Em fins de 1965 afirmava Amilcar Cabral: “Na Guiné, em dois anos e meio de luta armada, libertámos cerca de metade do país. Nas regiões libertadas estamos a construir uma vida nova, temos várias dezenas de escolas, instalámos comércio para abastecer as populações em artigos de primeira necessidade através dos Armazéns do Povo, criámos serviços de assistência sanitária e vários outros organismos que definem o novo Estado em formação”.  O objectivo do PAIGC, ao levar a cabo estas iniciativas, foi o de criar condições que estabelecessem bases de uma sociedade nova. 

No que diz respeito aos Armazéns do Povo teve-se em vista a sua criação satisfazer as necessidades de abastecimento das populações, fornecendo-lhes artigos de uso corrente para seu consumo em troca de produtos agrícolas que, por sua vez, são trazidos para o exterior onde são vendidos, revertendo os lucros dessas transacções para os cofres do Partido. Verifica-se, assim, que os Armazéns do Povo permitiram a valorização do trabalho do povo, na medida em que trouxeram uma solução ao problema da comercialização, da agricultura e artesanato, já que, como se referiu, os produtos agrícolas (arroz) e, provavelmente, os artigos de artesanato funcionam como moeda de troca. 

 Estes Armazéns não são contudo, em princípio, destinados a auferir lucros. Dando para já uma experiência útil na futura organização do comércio, os Armazéns do Povo têm como objectivo, na hora actual, servir como elo e ligação com as massas, representando por si só uma arma poderosa ao serviço dos interesse do povo e do Partido, não só do ponto de vista económico mas também, e especialmente, do ponto de vista político. Através deles, na medida em que evita as transacções comerciais nos nossos estabelecimentos, o PAIGC procura o nosso "isolamento" ao mesmo tempo que garante a segurança das suas "áreas libertadas".

 Dum modo sumário e face aos elementos disponíveis, é a seguinte organização e funcionamento da Empresa de Comércio Geral do PAIGC, a qual depende, para efeitos de organização do Departamento da Organização e Questões Internas e para efeitos da prestação de contas do Departamento de Economia e Finanças. Esta tem em Conacri o órgão de abastecimento central – os Armazéns Centrais – e “antenas” em todas as “regiões libertadas” – Armazéns do Povo -, designados também por Depósitos, os quais são numerados, encontrando-se à frente deles um responsável, possuidor de conhecimentos genéricos de contabilidade. 

 Como se referiu, os Armazéns Centrais abastecem estes Depósitos com artigos de consumo corrente nomeadamente açúcar, sal, conservas, roupas e calçado, enviando à data da expedição dos artigos uma "factura" na qual constam discriminadas as quantidades e valor da mercadoria. Muito embora seja utilizado o dinheiro, o mais vulgar é o sistema de permuta em que os podutos agrícolas, especialmente o arroz, ou msmo o gado, funciona como "moeda" de troca, sendo os produtos obtidos na troca enviados aos Aramazéns Centrais com nota de remessa, local onde essa distribuição é devidamente escriturada em mapas dos quais se junta o Mapa de Distribuição de arroz. 

 Admite-se, para facilidade de transporte, que parte desses produtos sejam enviados directamente às bases logísticas sem passar pelos Armazéns Centrais,embora estes movimentos em mapa sejam sempre feitos nestes armazéns creditando-se às Bases que directamente receberam os produtos. Todos estes movimentos são contabilizados, sendo feitas periodicamente inspecções tendentes a verificar a “situação” em que se encontram os depósitos. Nestes, diariamente, é elaborado um mapa relativo às receitas diárias, no qual são escriturdas as mercadorias saídas e a entrada de produtos. Anda se conhece os movimentos dos Depósitos um documento nota de crédito. 

 __________ 

 Nota de L.G.: 

 (*) Sobre a Operação Lança Afiada, comandanda pelo então Cor Hélio Felgas, vd. os seguintes postes, na I Série do nosso blogue: 


 9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas (Luís Graça) 

 9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli (Luís Graça) 


 (**) Vd. último poste desta série: 














Guiné 63/74 - P3210: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (2): O mítico cais do Xime (1969)

Guiné > Zona Leste > Xime > CART 2520 (1969/70) > Foto 14 > "Cais do Xime, a cores já esbatidas" (RM)…


Atracagem de uma LDG - Lancha de Desembarque Grande... Em primeiro plano, o Fur Mil Renato Monteiro, que foi parar ao Xime (e depois ao Enxalé, destacamento do Xime, no outro lado do Rio Geba) por não morrer de amores pelo comandante da sua unidade de origem, a CART 2479 (1968/70)... Conheci-o em Contuboel, em Junho/Julho de 1969. Nunca mais o vi... Só há poucos anos nos reencontrámos... Graças ao blogue... É a história de um feliz acaso, já aqui contada (*). Ele era(é) o misterioso homem da piroga, fotografado comigo no Rio Geba, em Contuboel, uma das poucas fotos que tenho da Guiné...



Guiné > Zona Leste > Xime > CART 2520 (1969/70) > Foto 13 > Cais do Xime > "Poucos de nós se atreviam, solitariamente, a pisá-lo por estar demasiado exposto… Mas havia um puto que apanhava aí camarão, enquanto sonhava com o momento de vir para Lisboa estudar" (RM)... Pergunto.me se esse puto não poderia o nosso amigo, hoje engenheiro, e membro da nossa Tabanca Grande, José Carlos Mussá Biai... (**)


Guiné > Zona Leste > Xime > CART 2520 (1969/70) > Foto 4 > Cais do Xime... Milhares de homens e de viaturas passaram por aqui, ao longo de toda a guerra... Havia tensão naquela ponte. Ali começava o Geba Estreito. A montante e a juzante, havia ataques do PAIGC contra as nossas embarcações: Ponta Varela, Mato Cão... O aquartelamento do Xime era flagelado ou atacado com frequência... O PAIGC tinha, desde o início da guerra, uma boa implantação no triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, entre a margem direita do Rio Corubal e a estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole.

Fotos: © Renato Monteiro (2007). Direitos reservados (Legendas do autor e do editor).


1. Como já nos explicou o Monteiro, as fotos podem ser dele ou não (***)... São filhas de vários pais. "Uma boa parte, [foram] produzidas a partir de um improvisado laboratório instalado por um soldado no aquartelamento do Xime". Andavam perdidas pela despensa....Que raio de sítio para guardar as lembranças dos verdes anos e daquela querida terra vermelha... Hoje seleccionei três: revisitei, com emoção, o Cais do Xime, o mítico cais do Xime, onde muitos de nós desembarcámos a caminho do leste, do chão fula, da Guiné profunda...

Naquele tempo o Renato não era grande fotógrafo, como ele confessa... Nem sei se tinha máquina fotográfica. Hoje a fotografia é a sua paixão. Tem vários álbuns e exposições. A última é sobre os "Ciganos do Sul" (Padrão dos Descobrimentos, Lisboa, até a 28 do corrente). (LG)


(Foto de cima, em tamanho pequeno) Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969: Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o Rio Geba. Furriéis moilicianos Henriques (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Monteiro (CART 2479 / CCAÇ 11)e remo na mão, à popa. A minha foto-ícone... Não sei quem a tirou: alguém que estava "à prova"... O Renato sugere que pode ter ido o seu camarada, o Fur Mil Cunha (mais conhecido por Canininhas):

"Natural do Barreiro e filho de um palhaço, herdara do pai um grande humor (que muito ajudou a contrariar a propensão para uma revolta amarga que me deixava a falar sozinho) sendo, ainda, dotado de uma aptidão fora de série para tocar qualquer instrumento. (Hoje não faz outra coisa do que andar pelo país fora, a concertar orgãos e pianos gripados...).

"Desde a aterragem no Aeroporto da Portela (1969) vi-o apenas três vezes: uma com o propósito de me facultar o Diário da Companhia ( a CART 2479); outra para me ceder algumas fotos tiradas por si na Guiné (algumas das quais figuram na Fotobiografia) e uma outra a pretexto de beber um copo...

"Seguramente que a personalidade do Canininhas, vertida para a literatura, não careceria de muita elaboração ficcional, bastando quase só transcrevê-lo... E, pergunto-me se não terá sido ele o autor da foto da Piroga do Geba, já que uma das suas fixações era, para além de perfilhar uma gazela (!), adquirir uma câmara fotográfica"...

Foto: ©
Luís Graça (2005). Direitos reservados.

____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)

(**) Vd. postes, publicados na I Série do nosso blogue, sobre o J. C. Mussá Biai, o "nosso menino do Xime":

10 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XVI: No Xime também havia crianças felizes (2)

20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXII: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)

20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXI: Sete mortos civis no ataque ao Xime (Dezembro de 1973)(J.C. Mussá Biai)

(***) Vd. último poste desta série > 13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3199: Álbum fotográfico de Renato Monteiro (1): Contuboel (1968/69)

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3209: Tabanca Grande (88): Victor Garcia, ex-1.º Cabo Cav da CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71)



Victor Garcia
1.º Cabo Cav
CCAV 2639
Binar, Bula e Capunga
1969/71



1. Mensagem do nosso novo camarada Victor Garcia, com data de 13 de Setembro de 2008

Caro camarada
Aqui vos envio os elementos pretendidos para fazer parte da vossa lista de antigos companheiros de armas.

Nome: Victor Garcia
Posto/Especialidade: 1.º Cabo Cavalaria
Companhia: CCAV 2639
Grupo de combate: 3.º pelotão (Os Kimbas de Capunga)
Local: Guiné
Zona acção: Binar, Bula, Capunga
Comissão de: Outubro de 1969 a Outubro de 1971

Com os meus agradecimentos:
Victor Garcia

2. Comentário de CV

Caro Victor, bem-vindo ao nosso Blogue.
Com certeza que conheces as normas da nossa Tabanca Grande.
O nosso blogue é um sítio de encontro de ex-combatentes da Guiné, onde cada um conta as suas experiências enquanto militar. Também temos entre nós, amigos da Guiné-Bissau, que não tendo sido militares lá, têm alguma ligação com aquele país, seja por naturalidade, por questões profissionias, por ser cooperante, etc.

Claro que cabe a todos a responsabilidade de manter o Blogue activo e para isso cada um de nós deve enviar as suas estórias, de preferência acompanhadas por fotografias legendadas.

Instala-te e começa a trabalhar.

Deixo-te, em nome dos editores e da restante tertúlia, um abraço.
Carlos Vinhal
Co-editor

Guiné 63/74 - P3208: Pensamento do dia (16): E não se pode exterminá-la ?... A epidemia de cólera em Bissau (Sofia Branco, "Público")

Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Barro > Abril de 2006 > As crianças são sempre as principais vítimas de doenças transmissíveis como a coléra que corre o risco de se tornar endémica na Guiné-Bissau e em especial na cidade de Bissau onde, em muitas zonas residenciais, faltam alguns dos principais requisitos de saúde: água potável, electricidade, saneamento básico, recolha do lixo, desinfectantes como o cloro, higiene pessoal e ambiental, cuidados médicos, etc. Guiné-Bissau > Região de Bafátá > Mansambo > Fonte de Mansambo > Abril de 2006 > Água corrente, potável, e sabão: a saúde começa aqui ou por aqui... Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Fonte de Mansambo > Abril de 2006 > Lavadeiras... Fotos: © Hugo Costa / Albano Costa (2006). Direitos reservados 1. Chama-se atenção para a publicação, na edição de ontem do jornal Público, de uma notável crónica de Sofia Branco, com fotos de Daniel Rocha, sobre a actual epidemia de cólera em Bissau: A doença das mãos sujas continua a matar todos os anos na Guiné-Bissau, Público, P2, 14.09.2008, Sofia Branco (texto) e Daniel Rocha (fotos), em Bissau. Eis aqui, com a devida vénia e o nosso apreço pelo trabalho da jornalista do Público, alguns excertos, devendo esta longa citação (*) ser entendida como sugestão para uma leitura integral da peça jornalistística e como manifestação da nossa preocupação e solidariedade em relação a mais esta crise sanitária que afecta os nossos amigos da Guiné-Bissau. (A Sofia Branco tem-se destacado, nos últimos anos, como jornalista, competente, corajosa, lúcida e empenhada, na investigação e divulgação do problema da Mutilação Genital Feminina na Guiné-Bissau). Aproveito para chamar a atenção para o paradoxo da situação actual da Guiné-Bissau, que exporta médicos e enfermeiros nacionais (!) e que vê-se na contingência de pedir ajuda internacional para combater o actual surto de cólera que lavra em Bissau... São os médicos estrangeiros (neste caso, da associação Médicos Sem Fronteira) quem está na linha da frente da luta contra a cólera em Bissau, no Hospital Nacional Simão Mendes... O terrível paradoxo é que a Guiné-Bissau, que não tem (a par de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe) uma Faculdade de Medicina, depende da ajuda de terceiros (Portugal, China, Cuba...) para formar os seus médicos, os quais, acabada a sua formação, não voltam a casa onde as conidições de trabalho e de vida estão longe de ser atractivas, ou no mínimo decentes e aceitáveis... Ainda há dias dei os meus parabéns a um aluno meu, médico, guineense, que veio para Portugal, com uma bolsa (portuguesa!) , para fazer um mestrado em gestão da saúde, e que entretanto conseguiu ver reconhecidas, pela nossa Ordem dos Médicos, as suas competências profissionais (tirou o curso de medicina na ex-União Soviética ou já na actual Rússia). Dei-lhes os meus parabéns, a ele, como pessoa, como médico, como meu aluno e como meu amigo... E os meus pêsamos à Guiné-Bissau por que vai perder, por vários anos, o contributo qualificado de um dos seus filhos, para mais numa área, a saúde, onde as carências de pessoal são brutais... "Agora vou ganhar algum dinheiro, aqui, em Portugal... mas um dia hei-de voltar à minha terra"... É humano, humaníssimo, vistas as coisas no plano individual... Mas é uma terrível sangria, uma tragédia, para países tão pobres como a Guiné-Bissau, que tem os seus melhores quadros na diáspora, na emigração... (Atenção: há gente extraordinária, guineense, a viver e a trabalhar, em condições dificilíssimas, na Guiné-Bissau, e que merecem o nosso reconhecimento, apoio e aplauso... Portanto, nada de estigmatizar ninguém, e muito menos fazer a distinção entre bons e maus filhos; até por que também nós, portugueses, temos mais de cinco milhões espalhados pelo mundo fora, e que nunca mais voltarão, na maior parte dos casos...). A questão não é saber se um dia os filhos da Guiné-Bissau na diáspora (portuguesa, comunitária, mundial...) os mais qualificados, voltam, mas como conseguir criar condições - de parte a parte, Portugal, a União Europeia e a Guiné-Bissau... - para que eles voltem, os médicos, os enfermeiros, os técnicos de diagnóstico e terapêutica e outros técnicos de saúde, os engenheiros, os professores, os gestores, os informáticos, os operários qualificados e os empresários, guineenses, que tanta faltam fazem no seu país. (...) "Estão vivos, mas o seu olhar parece já ter desistido. Os doentes de cólera que se aglomeram no Hospital Simão Mendes, principal unidade de saúde da Guiné-Bissau, esperam em macas de lona pela sua sorte - que pode ser a morte. Conhecida como a doença das mãos sujas, este ano a cólera já matou mais de cem pessoas e infectou cerca de 5500. "São homens e mulheres, algumas crianças também. Os doentes mais graves têm o luxo de poder dormir dentro da ala reservada para a cólera, os outros espalham-se ao ar livre pelo alpendre que abraça o edifício, embrulhando-se num lençol branco, que é trocado pelos enfermeiros quando muda de cor - a cólera, infecção intestinal aguda causada por uma bactéria, normalmente contraída por ingestão de alimentos ou de água contaminada, manifesta-se em diarreias, vómitos e até sangramentos. Outros doentes já estão instalados na tenda de campanha em frente, montada pela Unicef. Os Médicos Sem Fronteiras (MSF), há um mês em Bissau, vão instalar outras tendas nos próximos dias. (...)" Combater a cólera não custa muito dinheiro, as soluções de cloro têm preços acessíveis. Mas a Guiné-Bissau não tem cloro suficiente em armazém e precisa de o importar. Quando a equipa de emergência dos MSF chegou ao país, o stock do hospital central era 'insuficiente e irregular' e não havia cloro nos centros de saúde espalhados pela capital - 'ainda não há', disse ao [Público] o coordenador da equipa dos MSF, Daniel Remartínez. ...) "A cólera não é propriamente uma surpresa na Guiné, um dos países mais pobres do mundo. Espera-se que ela aconteça todos os anos, por alturas das chuvas - a Organização Mundial de Saúde diz que a doença é endémica no país. Como é endémica em todos os países subdesenvolvidos que carecem de saneamento básico, aterros sanitários, sistema de distribuição de água potável. Menos de dez por cento da população guineense tem acesso a água potável e mais de 80 por cento dos poços estão contaminados. "O próprio Presidente, Nino Vieira, reconheceu que o surto de cólera no país é 'preocupante'. (...) (...)"A área mais afectada pelo surto de cólera deste ano é a de Bissau. A sobrepopulação, a degradação ambiental e o lixo a céu aberto atacado diariamente por djugudés (abutres) ajudam a explicar por que é que é na capital que se concentram o maior número de casos e o maior número de mortes. Só no Hospital Simão Mendes, onde têm dado entrada 60 doentes por dia, já morreram 35 pessoas. "No mercado de Bandim, o maior da cidade, é fácil perceber o que faz deste bairro da capital o mais afectado de todos. É um labirinto de ruelas estreitas, com centenas de comerciantes, à semelhança de um qualquer suq marroquino, onde o cheiro fétido chega a ser insuportável. O chão está invariavelmente enlameado, poças de água aqui e ali. Na zona onde se vendem os alimentos é difícil permanecer. Há quem durma no chão sujo. Em bancas de madeira estende-se o peixe fumado muito consumido pelos guineenses. 'O mercado está muito cheio, devia ser uma feira bem organizada para que as pessoas possam vender e haja mais condições e mais limpeza', reclama Aneximandro Ribeiro, 33 anos e comerciante no Bandim. (...) "A cólera tem um período de incubação 'muito rápido' - entre as 12 e as 48 horas, 'na maioria nas primeiras 24' - e, portanto, é crucial que as pessoas que tenham 'diarreias e vómitos rápidos parecidos com água de arroz' se dirijam de imediato para o hospital, explicou ao [Público] a enfermeira dos MSF Llanos Montero" (...). ___________ Nota de L.G.: (*) Vd. último poste desta série > 7 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3184: Pensamento do dia (15) : Paz à Nossa Alma (Anónimo)

domingo, 14 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3207: Álbum fotográfico do Hugo Costa (2): A viagem Porto-Bissau, de Abril de 2006, organizada pelo Xico Allen, em 15 fotos

Foto 1 > 1º Dia – Sul de Espanha – Local de embarque, de Algeciras para Tanger.

Foto 2 > 2º Dia – Marrocos – A famosa Praça de Marraqueche, à noite.

Foto 3 > 3º Dia – Sul de Marrocos – Um retalho da vida quotidiana dos Marroquinos.

Foto 4 > 3º Dia – Sul de Marrocos – A estrada que nos leva a Tan Tan.

Foto 5 >4º Dia – Perto do Sahara Ocidental – A camaradagem dos marroquinos que nos ajudaram a desenterrar a “Julieta”.

Foto 6 > 4º Dia – Perto do Sahara Ocidental – Uma das nossas rotinas, o abastecimento da “Julieta”.


Foto 7 > 4º Dia – Sahara Ocidental – As situações caricatas com que deparávamos na estrada.

Foto 8 > 5º Dia – Território fronteiriço entre o Sahara Ocidental e a Mauritânia – Uns Tuaregues conhecidos do Xico Allen.

Foto 9 > 5º Dia – Mauritânia – Um dos comboios - neste caso, de transporte de minério - maiores do mundo.

Foto 10 > 5º Dia – Mauritânia – Estavamos ansioso por encontrar camelos.

Foto 11 > 6º Dia – Capital da Mauritânia – Nouakchott – Pátio do hotel a tomar o Pequeno-almoço, antes da partida para uma nova etapa.

Foto 12 > 6º Dia – Sul da Mauritânia – Paragem para trocar o alcatrão que sempre trilhamos, por areia ultra-fina do deserto.

Foto 13 > 7º Dia – Senegal – O olhar das crianças que nos lembra a Guiné.

Foto 14 > 7º Dia – Senegal – A caminho de Tambacounda, a realidade de um povo que luta pela sua mobilidade.

Foto 15 > 8º Dia – A caminho da fronteira com a Guiné, já se sente pela paisagem, cor e cheiro.


Fotos e legendas: © Hugo Costa / Albano Costa (2006). Direitos reservados



Comentário de L.G.:

Trata-se de uma selecção de fotos do Hugo Costa (*), filho do nosso camarada Albano Costa, e que documenta, sumariamente, a viagem por terra, do Porto a Bissau, organizada pelo Xico Allen, em Abril de 2006. A caravana era constituída por um único... jipe, que levou sete pessoas (além do Xico e da Inês Allen, o Hugo Costa, o A. Marques Lopes, o Zé Teixeira e ainda mais dois camaradas nossos, do Norte, o Casimiro e Manuel Costa). Essa viagem ficou registada numa série de crónicas assinadas pelo A. Marques Lopes, na I série do nosso bogue (**), bem como em alguns apontamentos do Albano Costa (que,desta vez, ficou na terra, em Guifões, Matosinhos)...

A selecção e as legendas das fotos são do Albano e do Hugo. O Hugo, nessa ocasião (Abril de 2006) fez uma excelente cobertura fotográfica da viagem e da estadia na Guiné-Bissau (*). Já aqui divulgámos algumas das suas belas fotos. É uma rapaz com talento e sensibilidade. E sabe o ofício.

Este material, já pronto, aguardava publicação, desde Março de 2008... Ao pai e ao filho daqui enviamos um grande Alfa Bravo, de toda a Tabanca Grande, além do nosso pedido de desculpa pelo atraso... LG

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Notas de L.G.:


(*) Vd. poste anterior desta série > 16 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2181: Álbum fotográfico do Hugo Costa (1): A mãe e os seus filhos, o direito à esperança (Bissau, Abril de 2006)

(**) Vd. último poste da série > 30 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXIX: Do Porto a Bissau (23): Os restos mais dolorosos do resto do Império (A. Marques Lopes)


Vd. ainda as seguintes notas de viagem do A. Marques Lopes, publicadas em poste de 14 de Maio de 2006:

Caros camaradas e amigos:

Já lá vão quinze dias após o regresso. Vários problemas que houve a resolver. Só agora deu para começar a falar.

Não vos vou fazer o relato pormenorizado desta nossa viagem por terra até à Guiné-Bissau (Rali Porto-Bissau...). Vou, apenas, realçar alguns aspectos que, em minha opinião, podem ser úteis e alertas para futuros andantes nestas aventuras.

MARROCOS:

5 de Abril [de 2006]

Em Tânger, já de noite, o inspector da alfândega Abderalak El Moussadek, com os seus ares e ademanes esquisitos, reteve o jipe por causa do material médico que continha (cerca de 200 quilos de soro fisiológico e seringas), alegando falta de guia e incumprimento das normas nacionais marroquinas, e dizendo que, pelas mesmas razões, já tinha sido detida uma viatura portuguesa na véspera...

Grande chatice (no barco que faz a travessia de Tarifa para Tânger, o Allen já tinha sido obrigado por um polícia a apagar uma fotografia, pois é proibido tirar fotografias no barco...); mas deu para uma conversa amigável com o sargento dos guardas, Mohamed Farak, que tem duas mulheres e sete filhos, com 30 anos de serviço e prestes a reformar-se (a reforma é aos 50 anos) com dirhams equivalentes a 300 € e, por isso, muito interessado em saber as condições de reforma dos militares portugueses; dorminos no Hotel Ibis (El Jadida, Place Nour El Kamar, Route de Casablanca), que se recomenda, tem perto o Café Oasis, aberto toda a noite (mas, cerveja só no hotel...).

6 de Abril

Eu, o Allen e a Inês voltámos à alfândega logo de manhã para ver da situação. Ainda pensámos que o amigo sargento Farak tivesse feito alguma coisa a nosso favor. Mas não, o inspector, só visto ao longe, agora, tinha dado ordem para o material médico não sair sem guia. Os muitos cadernos e canetas, bem como as centenas de chupa-chupas e dezenas de camisas que tínhamos não interessaram... Palpitou-nos, a mim e ao Allen, que a razão era o receio de entregarmos o material médico à Frente Polisário. Pusemo-nos a andar e lá ficaram os 200 quilos de soro fisiológico e as seringas.

7 de Abril

Dormimos em El Quatia, praia perto de Tan-Tan, já pero do Sahra Ocidental, na Villa Ocean, uma pequena pousada de um casal francês, ele ex-militar. Também a recomendo. Depois do jantar, eu fui dar uma volta (meu hábito) e encontrei um marroquino que me perguntou se tínhamos vinho e se lhe dávamos um copo. Fui buscar um copo de vinho e dei-lhe (no dia seguinte trouxe-me o copo lavadinho).

A seguir entrei numa escola infantil, porque a vi aberta, com luzes e gente lá dentro. Espanto deles e o director dirigiu-se a mim e perguntou-me o que queria. Disse-lhe que só queria visitar. Depois de eu falar, diz-me ele:
- Você bebeu vinho!.

Perguntei-lhe como é que ele sabia. Disse-me que o cheiro conhecia (o bafo deu-lhe...). Não me digam que ele vai bufar a alguma autoridade religiosa... Lá lhe fui dizendo que as religiões na minha terra não proibiam as bebidas alcoólicas, cada um podia ter a religião que quizesse, que eu até nem tinha nenhuma, etc, etc... Mas, depois desta conversa, achei por bem desistir da visita à escola e fui-me embora.

SAHARA OCIDENTAL

8 de Abril

Saímos de El Quatia em direcção ao Sahara e, 20 km depois tivemos um controlo policial. Cinco minutos depois, fui eu controlado pessoalmente. É que o Allen tinha dado antes uma lista com os passageiros e respectivas profissões, tendo colocado que eu era militar. Que estivessem descansados, que estava reformado e não tinha já nada a ver com a actividade militar... Lá os consegui convencer e seguimos para Tarfaya.

No caminho para lá, o turbulento fotógrafo Hugo pediu ao Allen para sair do asfalto para colher uma imagem. Assim foi feito e... o jipe enterrou-se na areia, rodou, rodou, mas nada. Lá ficou. Valeu-nos a juda de uns marroquinos que passaram num camião. Com uma corda que tinham e força de braços lá conseguimos voltar ao asfalto.

Às 11h20 entrámos no Sahra Ocidental, por Tah. Às 12h10 tivémos um controlo policial. Cinco minutos depois, antes de entrarmos em Layoune, capital do Sahara, novamente controlados, desta vez com militares também. Há, aliás, um quartel à entrada desta cidade, que, verificámos depois, está altamente militarizada, com vários quartéis e muita tropa pelas ruas, embora não armada. Sinal da situação são também as dezenas de jipes junto à delegação da ONU. Depois de Layoune, há uma grande cimenteira, em El Marsa, com uma grande cintura de segurança à volta e várias guaritas de vigia.

Almoçámos conservas no meio do deserto, ao sol, e surgiu um jipe da polícia pelo que tivemos de beber o vinho à pressa e guardar as garrafas. Seguimos e, às 14h45 tivemos novo controlo da polícia, com um camião de soldados por perto. Às 15h15 novamente controlados.

Entrámos, de seguida, em Boujdour, que verificámos ser igualmente uma cidade muito militarizada, também com muitos soldados na rua. Boujdour tem uma extensa praia, o que leva a estranhar que seja aqui o cabo Bojador dos portugueses (o nome foi afrancesado), mas tem um grande farol. E há razão para isso, embora não haja penhasco algum, nem na praia nem no mar: os vários navios que se vêem encalhados testemunham as marés e correntes contrárias que se cruzam naquela zona, a dor que os marinheiros portugueses tinham de passar.

À saída de Boujdour há um grande quartel e fomos controlados por perto. Seguimos e fomos novamente controlados às 16h20, e mais outra vez às 16h30. Houve outro controlo policial às 17h30, e mais outro às 18h45.

Dormimos em Rokchip, no Hotel Oasis (fácil de encontrar, pois é uma localidade muito pequena), com chuveiros e casas de banho comuns, mas já vi pior. Travei aí conhecimento com três marroquinos imigrados em Itália e que vinham com duas brutas máquinas, um BMW e um Mercedes do último modelo. Falámos lindamente em italiano e...
- Temos de fazer pela vida!, disseram-me. Os carros eram roubados e eram para vender na Mauritânia. Pediram-me para os acordar às 7 da manhã (eu era, aliás, o despertador de todo o nosso grupo), pois tinham pressa para serem os primeiros na fronteira.

MAURITÂNIA

9 de Abril

Antes de pertirmos, um dos guias do deserto pediu-nos, a mim e ao Allen, para lhe arranjarmos uma garrafa de vinho e lha darmos, depois, na terra de ninguém, cerca de um quilómetro pedregoso e sem qualquer controlo entre a fronteira do Sahara e a fronteira da Mauritânia.

Às 08h48 chegámos a Gargarate, a fronteira do Sahara, mas já estava uma longa bicha de carros. Nos primeiros lugares da frente lá estavam os tais marroquinos italianos. Durante a espera vi muitos tuaregues, claramente aborrecidos, assentados no chão, à espera que os funcionários marroquinos os atendessem. Decidi fazer uma provocação a um deles. Perguntei-lhe se era marroquino. Olhou-me duramente e com ar ofendido:
- Marroquino no!! Esta es mi tierra!- respondeu-me em perfeito castelhano. E lá me explicou que a terra dele tinha sido uma colónia espanhola e que os marroquinos a tinham ocupado após os espanhóis saírem.

Esperámos algum tempo, mas, após várias conversas minhas e do Allen com os funcionários alfandegários, e após o Allen lhes ter dado várias camisas, canetas e chupa-chupas lá passámos à frente da bicha. Os italianos olharam para nós desconsolados. O tuaregue perguntou-me:
- Te marchas ya?- Disse-lhe que sim e ele pôs a cabeça de lado e abriu os braços como quem diz: - Blanco, claro.

Antes de sair a fronteira fomos controlados por militares. Depois da terra de ninguém , entrámos na Mauritânia, depois de três controlos, um na alfândega, um policial e um militar. Depois, fiquei a saber, junto de uns tratadores, que podia comprar um camelo por 2 €.

Até Nouakchott fomos controlados às 15h35 pelos militares mauritanos, às 16h20 pela guardas alfandegários e às 16h35 pela polícia. Chegámos a Nouakchott, capital da Mauritânia (e, se não única, quase única cidade deste país deserto). É uma cidade que se caracteriza pelos montes de lixo acumulado nas ruas e nos passeios, com um trânsito caótico, sem regras, com os ministérios, os organismos oficiais e a estação de rádio guardados por militares.

Falei com um mauritano (sei o nome dele mas não ponho aqui, por razões óbvias) sobre isto, sobre um país com uma cidade, com escassos centros populacionais, muito deserto, e um governo que parece não tratar de nada, não cuidar do bem da população:
- Oh, le gouvernement!... Il mange, il mange, seulement! (que é como quem diz: eles comem tudo e não deixam nada).
- E vocês não fazem nada?
- É que - disse-me ele - há poucos brancos, alguns árabes e a esmagadora maioria são pretos, como eu, mas o problema é que estão divididos em vários partidos políticos que não se entendem, é difícil.

Dormimos no Hotel El Amane (Av Gamal Abdel Nasser, 26), um sítio muito agradável, com uma recepcionista muito simpática, destoando de todo o ambiente degradante da cidade.

10 Abril

Metemos-nos ao caminho e tivemos às 09h00 o primeiro controlo policial do dia, seguido, às 09h15 de um controlo militar. Às 10h20 tivemos outro em Tiguent e, às 10h52 e 11h20, mais dois controlos policiais. Á entrada de Rosso dois controlos policiais imediatamente seguidos: um às 11h30 e outro às 11h35.

Metemo-nos, de seguida, por uma picada de 90 quilómetros até chegarmos à fronteira (lado da Mauritânia), onde chegámos às 14h00, demos 5€ ao guarda da alfândega, o Mohamud (disse que era solteiro e perguntou ao Allen quanto é que queria pela Inês...), mas só saímos de lá às 14h55.

Desde esta hora até às 16h10 estivemos empatados com os vários guardas da fronteira do Senegal, polícias, alfandegários, militares, e até nos obrigaram a fazer um seguro para o carro. Aqui, com os senegaleses, foi só largar dinheiro. No final, um major queria meter um polícia no jipe para ir connosco até à Guiné-Bissau. Chamei-o à parte, mostrei-lhe o meu cartão militar:
- Ouve lá, nós somos colegas! Não confias em mim? Pega lá 50 € e deixa-nos andar.

E lá andámos, sem polícia pendura. Fomos controlados pela polícia às 16h30 e chegámos a Saint Louis às 16h40. Dormimos no Hotel Cab St. Louis. Muito agradável, e pudémos aí comprar CFAs. Fica perto da margem direita do rio Senegal e está pegado, do outro lado, a uma praia oceânica.

SENEGAL

11 Abril

Partimos para Tambakounda e fomos controlados às 12h00 e 12h15 pela polícia. Chegámos a Tambakounda depois de almoço (de conservas, no caminho). Ficámos no Hotel Oasis. Houve quem fosse à piscina. Não é mau. A empregada do bar é solteira mas diz que não quer saber de homens.

12 Abril

Saímos às 07h10 a caminho da Guiné-Bissau. Às 10h15 passámos a fronteira do lado do Senegal sem qualquer problema. À entrada da Guiné já não estavam para chatear. Também há uma terra de ninguém. A entrada na Guiné foi uma festa.
- Até que enfim oiço falar português - disse-lhes eu.

E um guarda até era sportinguista!

Recomendações ou dicas para quem se aventurar por estes caminhos:

(i) Quem se aventurar nestes caminhos conte em levar bastante dinheiro para distribuir pelas várias fronteiras (nós gastámos cerca de 500€, pagos pelos patrocínios conseguidos); levem camisas, caramelos e canetas também para distribuir, em certas situações os guardas contentam-se com isso;

(ii) Quem se aventurar nestes caminhos tenha uma conversa prévia com o Francisco Allen, o globtrotter destas viagens, batido em todos os esquemas necessários para ultrapassar as chatices destes espíritos africanos.

Guiné 63/74 - P3206: Antropologia (11): O Crioulo da Guiné. Mário Beja Santos.

O Crioulo da Guiné-Bissau (III)

As singularidades do Kriol da Guiné-Bissau

Beja Santos (1)

O crioulo da Guiné-Bissau suscita o maior interesse nos meios linguísticos, em África e no mundo. É a língua veicular de um povo, a língua franca num território onde se falam 22 idiomas étnicos, território esse que não excede a superfície do nosso Alentejo. É uma língua independente, em crescimento e complexificação, assimilando a toda a hora os termos necessários da nossa contemporaneidade. O ideólogo máximo do PAIGC, Amílcar Cabral, não só falava um português primoroso como deixou toda a sua produção científica e política redigida num português de elevada cultura, o que veio marcar a formação da Guiné como país dividido entre uma liga de comunicação comum, o crioulo, e o português, entendido como a língua da identidade nacional face ao universo francófono envolvente.



Para entender as raízes dessa língua espantosa, aprofundar o seu saber original, é importante ler o que de melhor se escreveu sobre este crioulo, o mesmo é dizer é indispensável ler “O crioulo da Guiné-Bissau, Filosofia e Sabedoria”, por Benjamim Pinto Bull, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989. No primeiro texto que dedicámos ao estudo que Pinto Bull dedicou ao crioulo do seu país, deu-se uma panorâmica dos diferentes falares crioulos, da intersecção entre o português e as línguas nativas, primeiro na Senegâmbia e depois na actual Guiné-Bissau, aflorou-se a colonização da Guiné para se revelar como se organizou e difundiu o crioulo nas praças e presídios, no tráfego de escravos e no comércio dos tangomaus ou lançados, na cultura dos grumetes ou assimilados. A grande singularidade é que a Guiné-Bissau é o único país de expressão oficial portuguesa onde coexistem sem sobressaltos as línguas africanas, o crioulo e o português. O surpreendente é que o crioulo é uma língua antiga e sempre renovada, recebe interferências linguísticas do francês, das línguas senegalesas, é riquíssima em provérbios, contos e adivinhas, o colonizador julgou mesmo no século XX que iria ser desvanecida a sua importância com o português, tal não aconteceu, o crioulo está reabilitado, autónomo, de boa saúde. Pinto Bull procura justificar como tudo aconteceu.

Primeiro, é impressionante o número de palavras crioulas nas relações e descrições dos viajantes e religiosos do século XVI ao século XX, o seu livro inclui o seu estudo pormenorizado no glossário. Logo no século XVII se observava o exótico multicolor da língua do país, referindo-se expressamente a palavra crioula. As descrições da fauna ou da flora, expressão nomes em crioulo, certamente por quem perguntava era esclarecido por negros e mulatos que dominavam fluentemente o crioulo. Os poucos períodos de sucesso missionário ocorreram quando os religiosos perceberam que a sua comunicação não podia prescindir centralmente do crioulo. Dos diferentes testemunhos evocados por Pinto Bull registo um do rei de Bissau, Incinhate, que se dirige ao governador Gomes Mena assim em 16 de Janeiro de 1697: “Sr. Governador, faço a V. Ex.ª esta carta para lhe falar mantenha”.

Segundo, coube aos grumetes a resistência cultural do crioulo. Em 1842, surgiu, um conflito entre o governador de Bissau e os grumetes da cidade. Dois anos depois, dá-se nova revolta, e os grumetes tomam a iniciativa de negociar a paz. A cerimónia decorre debaixo dos poilões, onde se resolvem os litígios – palavra, em crioulo. Poderá ser excessivo querer encontrar nas manifestações de revolta dos grumetes qualquer sinal de independência. O que os relatos deixaram claro é que houve resistência dessa gente que se expressava em crioulo e que queria ver a sua língua respeitada, a sua língua e a sua identidade.
Uma das maiores figuras do século XIX da vida política da Guiné foi Honório Pereira Barreto, um natural da Guiné que procurou defender a integridade do território sobretudo dos franceses e dos ingleses. Cabe a este homem que foi governador de Bissau uma expressiva definição do crioulo: “A língua do país é um dialecto da portuguesa, mas tão desfigurada que os Reinícolas não a entendem; além disso é recheada de muitas palavras derivadas do gentio”.
O primeiro cientista a estudar o crioulo foi o padre Marcelino Marques de Barros, natural de Bissau. Veio para Portugal com 12 anos, depois de ordenado padre em Cernache do Bonjardim, foi nomeado pároco em Bissau, percorreu a Guiné durante onze anos, veio a Portugal por motivos de saúde e regressou à Guiné onde permaneceu por mais oito anos. Deixou a sua obra espalhada por diferentes publicações como por exemplo o “Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa”. Correspondeu-se com linguistas de renome e escreveu obras ainda hoje de leitura obrigatória, tais como “Literatura dos Negros: contos, cantigas, parábolas” ou “Guiné Portuguesa ou Breve Notícia Sobre os Usos, Costumes e Línguas da Guiné”. É, historicamente, o primeiro estudioso do crioulo guineense, tendo mesmo organizado um vocabulário português/guineense, repertoriando 5420 palavras, deixando claro à comunidade científica que havia duas línguas aparentadas mas distintas: labra (cultivar), kume (comer), rema (remar), verbos que dão substantivos (labur, kumida e remu). No início do século XX, a alta sociedade do Cacheu fala informalmente em crioulo, cantado em crioulo, escrevia histórias em crioulo.

Terceiro, o colonialismo não compreendeu o crioulo e procurou discriminá-lo. Pinto Bull refere a Carta Orgânica da Província da Guiné (1917), o Acto Colonial (1930), o Acordo Missionário (1940), o Diploma legislativo n.º 1356 (1946), que constituíram tentativas de banimento de uma língua tida como uma algaraviada de gente inferior que para chegar à civilização deviam obrigatoriamente fazer um uso exclusivo do português.
Em 1954, Avelino Teixeira da Mota dá o sinal de alarme: “A difusão actual do crioulo – ainda que pese aos puristas e racistas – é um triunfo do português. Porque o crioulo, aqui, está em evolução, e cada vez se enche de palavras portuguesas”. Durante a luta de libertação, o PAIGC usou o crioulo como arma ideológica: nas escolas, na propaganda e mesmo na música (Musika k’ no na kanta luta de libertasõ, a música que cantamos é a nossa luta de libertação; Tempu di labur, tempu di kalur, tempo de trabalho, tempo de suor). Com a independência, o crioulo ganhou reconhecimento em toda a sociedade, tornou-se num instrumento de trabalho, apareceram poemas, obras didácticas, storia, adivinhas, banda desenhada.

Quarto, a prova indesmentível da sabedoria crioula é comprovado pelos seus provérbios, transmitidos em história e fábulas, em canções para ninar, e Pinto Bull recolheu-as graças a alguns contadores que o ajudaram no levantamento. São provérbios que falam da religião, da casa, da família, das relações humanas, do desentendimento, da vingança, das proezas, das viagens, das injustiças e da solidariedade. Vale a pena no próximo texto passar em revista alguns desses provérbios, fórmulas evocativas e até adivinhas. Eles constituem a prova provada de uma cultura admirável de grandes bibliotecas da narrativa oral onde se espraia o génio africano.
__________

Nota do editor

(1) Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).

(2) artigos relacionados em

5 Setembro 2008 > Guiné 63/74 - P3175: Antropologia (10): O Crioulo da Guiné. Mário Beja Santos

29 Agosto 2008 > Guiné 63/74 - P3154: Antropologia (9): O Crioulo da Guiné. Mário Beja Santos

Guiné 63/74 - P3205: Tabanca Grande (87): Luís de Sousa da CCAÇ 2797 (Cufar, 1970/72)




Luís de Sousa
CCAÇ 2797
Cufar
1970/72



1. Mensagem do nosso novo camarada Luís de Sousa da CCAÇ 2797, que esteve em Cufar entre 1970 e 1972.

Olá amigos,
Eu já ando aqui a rondar a Tabanca há uns tempos, e como sei que não é preciso pedir licença, olha, aqui estou eu!

Sou o Luís de Sousa e estive em Cufar entre Dezembro de 1970 e Agosto de 1972.

Faz 36 anos no próximo dia 7 de Outubro que a minha Companhia, a CAÇ 2797 regressou. (...)

Pronto. Agora já sabem porque é que entrei.

Prometo voltar com estórias lá de Cufar.

Até lá, um abraço para todos.
Luís de Sousa



2. Caro Luís de Sousa

Bem-vindo à Tabanca Grande. Gostamos que tivesses entrado sem pedir licença. A nossa porta está sempre aberta para isso mesmo.

Só te vamos pedir que na próxima vez que nos contactes nos indiques ao teu antigo posto e Especialidade, não para te incluir nas Escalas de Serviço, mas porque gostamos de ter os nossos arquivos com o mínimo de elementos dos nossos camaradas.

Está-se mesmo a ver, que como verdadeiros camaradas que somos, não importa o posto que tivemos como militares nem o que somos agora. Tratamo-nos todos por tu, porque nos une para sempre aquele pedacinho de terra onde deixámos tanto de nós.

Esperamos a partir de agora as tuas estórias e as tua fotografias.

Já que falo em fotografias, como reparas, a tua foto antiga não está nas melhores condições. Se tiveres outras por aí, manda para ver o que se pode arranjar.
Também, se tiveres uma outra foto do crachá da tua Companhia, manda-a para a nossa fotogaleria que o Luís um dia destes vai criar em novo endereço.

Não sei se sabes que no nosso Blogue temos um ilustre camarada de nome Mário Fitas, ex-Fur Mil da CCAÇ 763 que esteve em Cufar nos anos de 1965 e 1966. Escreveu ele uma belíssima história que te aconselho vivamente a ler, porque terás acesso a ela no nosso Blogue.
É uma ficção com o título Pami Na Dondo A Guerrilheira (1), onde é narrada a guerra em que participamos, mas pelo ponto de vista de uma jovem guerrilheira do PAIGC.

Como quero que leias este livro, deixo-te o número dos postes que deverás consultar.
Basta que cliques em cima dos respectivos números e acederás directamente ao romance.

Os números são: P2293, P2298, P2307, P2328, P2340, P2363, P2391, P2443, P2506, P2560 e P2593.

Em nome da tertúlia e editores do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, envio-te um abraço de boas vindas.

O teu novo camarada e amigo
Carlos Vinhal
______________

Nota de CV

(1) - Vd. poste de apresentação de Pami Na Dondo A Guerrilheira de 21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)

Guiné 63/74 - P3204: O Nosso Livro de Visitas (27): Almeida Soares, ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 1857 (Mansabá, 1965/67)

1. Mensagem do nosso camarada Almeida Soares, com data de 11 de Setembro de 2008

Caros amigos e camaradas:
É com muita emoção que vos dirijo esta pequena mensagem, porque casualmente encontrei uma referência ao Batalhão do qual fiz parte (1). Pertencia à CCS/BCAÇ 1857 e era o Fur Mil Soares, mais conhecido pelo furriel da viola.

Como estou a fazer um vídeo, com fotos claro, lembrei-me de consultar a NET e não é que tive a sorte de encontrar o vosso blogue.

Penso, não li tudo ainda, que estão aqui por Leça da Palmeira… ou não?

Eu resido em Perafita. Gostaria de vos enviar os meus parabéns pelo óptimo trabalho realizado.

Um forte abraço para todos vocês, e continuem,

Ao v. dispor
A. Soares

Mansabá, onde esteve o BCAÇ 1857 do nosso camarada Almeida Soares.

2. Resposta enviada ao nosso camarada no mesmo dia

Caro Almeida Soares
Obrigado por nos escreveres.
Porque não aderes ao nosso Blogue, já que te deu alguma alegria ver uma referência ao teu Batalhão?

Podes também contribuir com as tuas estórias e as tuas fotos, dando assim a conhecer aos camaradas que nos lêem algo que ainda não terá sido contado. Cada um de nós viu a guerra segundo a sua óptica, os seus princípios, a sua arma, o local onde esteve e a época em que cumpriu a sua comissão.

Com respeito ao nosso Blogue, posso dizer-te que foi ideia do nosso Editor Luís Graça que o fundou, provavelmente sem imaginar no que iria dar em matéria de participação. Deves ter reparado que temos já mais de 700 mil visitas, mais de 250 tertulianos e um sem número de leitores.

O Luís é de Lisboa, onde é Professor na Universidade Nova de Lisboa e tem como colaboradores o Virgínio Briote e eu próprio, Carlos Vinhal.

No nosso blogue há alguns camaradas do concelho de Matosinhos, sendo eu na verdade morador em Leça da Palmeira.

Há uma Tabanca de Matosinhos, composta por camaradas de Matosinhos e não só, que quase todas as quartas-feiras se reune para um almoço de trabalho na Casa Teresa, em frente à Lota de Matosinhos, e que vai fazendo uns périplos aqui e ali.

Lê o lado esquerdo da nossa página, onde tens as respostas a possíveis interrogações que te possam surgir e manda-nos uma foto actual e outra do teu tempo de tropa (em formato tipo passe de preferência) para começares a fazer parte da nossa Tabanca Grande, como também é conhecido o Blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Um abraço do camarada e vizinho
Carlos Vinhal
____________

Nota de CV

(1) - Vd. poste de 2 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3163: O Nosso Livro de Visitas (25): Francisco Passeiro, ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857 (Mansabá, 1965/67)

sábado, 13 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3203: História da CCAÇ 2679 (2): A caminho de Piche (José Manuel Dinis)


1. Mensagem com data de 8 de Setembro de 2008, do nosso camarada José M. Matos Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, (Bajocunda, 1970/71), com mais um pouco da história da sua Unidade (1).

Caro Carlos Vinhal

Anexo novo texto, desta feita sobre a chegada da 2679 a Piche.

Quanto a fotos é que andamos às avessas, enviarei proximamente. Mas tens em stock três fotografias, duas relativas à viagem no Uíge, outra reporta o meu primeiro serviço em Bissau.

Vou procurar ser cronologicamente fiel aos acontecimentos da Companhia, ou situações contemporâneas.

Um abraço para o pessoal da Tabanca Grande
José Dinis

2. A caminho do Xime
Por José Dinis

Do Xime para Nova Lamego e, seguidamente, até Piche, a CCAÇ 2679 deslocou-se em coluna auto com escolta de um Pelotão de Cavalaria de Bafatá, rotativamente deslocado em Piche, onde pontificava a velha Fox, que impressionava pelo barulho do motor, como pela metralhadora instalada na torre. Completava a escolta o Pel Caç Nat 65, domiciliado em Piche, comandado por um cromático alferes, pois durante as pausas na deslocação, deambulava por entre nós, de pistola à cinta e empunhando uma moca com um lenço amarelo atado na extremidade. Constituía uma verdadeira nota de cor na paisagem camuflada, embora contra todos os ensinamentos transmitidos na instrução.

Começava a pensar com os meus botões, que raio de guerra aquela onde tinha ido parar. Mas o registo iconográfico funcionava, apesar da maluqueira manifesta.

Dia 21 tomámos o caminho de Piche, já em picada, em boa parte do percurso com as margens capinadas e livres de vegetação. O nosso Capitão António Oliveira ter-se-á lembrado de usarmos lenços pretos, idênticos aos dos comandos, para nos identificarmos, ou para impressionarmos. Piriquitos nas fardas novas e com goma, servi-me do lenço para proteger a cara da poeira levantada pelas viaturas que precediam. E assim fez a maioria.

Chegados a Piche fui encarregado de instalar o pessoal na caserna, um antigo celeiro para a mancarra que aguardava a venda à Casa Gouveia. Entretanto, apareceu-me o Zé Tito, acompanhado por dois militares locais, referindo que tinha arranjado um quarto para nós, a suite 3, que partilhávamos com furriéis do BART, o Branco da Silva, o Águas e outro de quem não me lembro o nome.

Quando cheguei ao quarto, o Tito teria gratificado os militares, ambos a cumprir pena de detenção, que ali nos ofereceram os seus serviços no fornecimento de galinhas e cabritos, a dez ou vinte escudos, cinquenta ou cem escudos, respectivamente, não sei precisar. Indaguei onde arranjavam as preciosas mercadorias e obtive por resposta que controlavam a bicheza na tabanca. Era só querer.

O.K., mandei chamar o nosso padeiro, apresentei-os e referi que queria todas as noites dois cabritos na padaria, um para eles e cúmplices, outro assado com batatinhas, seria entregue na suite 3. E assim foi, noite após noite, e nunca paguei o que fosse, nem me lembro de ter voltado a falar com qualquer deles.

Comandava o BART um Major alcunhado de drácula, tal era o cagaço que infundia no pessoal, conhecido pelas porradas a torto e a direito, que passavam a ilustrar as importantes Cadernetas Militares. Dizia-se que o Caco Baldé o escolhera para impor alguma ordem num Batalhão onde teriam acontecido coisas inimagináveis e a generalidade dos comandos fora transferida.

Piche era uma grande tabanca e uma fortaleza com o perímetro aramado, dispondo de amplos postos defensivos na sua extensão, onde o pessoal da CCS garantia essa função e tinha os alojamentos. Nesse amplo espaço, para além da população, ficava a pista para aeronaves e um campo para futeboladas. A norte, também isolado por arame e com acesso por Porta de Armas, ficava a zona aquartelada, com modernas instalações, águas correntes e energia eléctrica quase permanentes, um campo de futebol de cinco e uma piscina. Vizinha era a casa Tufico, local de informalidades, onde havia matrecos, comércio diverso e bar com preços competitivos. Quatro escudos uma pequenina.

Bailinho da Madeira para Major ver

Homem de créditos, a pedir pedestal, o Major Comandante deve ter exigido um desfile.

Não sei por que carga de água, mas desfilámos. Com caixa, para marcar o passo. Na torreira do sol, sob a constante humidade que dificultava movimentos, lá fomos marchar para Sua Excelência. Pelo canto do olho, o que vi do Foxtrot foi um bailinho da Madeira mal ensaiado. No mínimo era displicente.

No final mandaram-me levar o Pelotão para as traseiras do refeitório, onde destroçariam. Antes perguntei se tinham desaprendido de marchar, como resposta, fizeram risos amarelos. Enfureci-me. Comuniquei que iam praticar Ordem Unida. Abriram fileiras relutantemente. Foram indolentes no exercício. A coisa começava a dizer-me respeito. Comuniquei que umas flexões iam ajudar à lembrança da disciplina exigida a um Grupo de Combate na iminência de o ser. Dirigi-me aos velhinhos que se juntavam para gozar o prato, que podiam ver, mas o primeiro a abrir o bico havia de ficar a conhecer-me.

Regressei ao Pelotão, junto do Ferdinando, o mais alto, e dei-lhe ordem para queda facial em frente. Olhou-me de soslaio. Apliquei-lhe uma tesoura, caíu e procurou a posição para pagar. Os restantes seguiram o movimento. Estava neste teimoso entretém de refrear a rebaldaria, quando chegou o Capitão a perguntar o que era aquilo, como que a justificar o pessoal.

Entreguei-lhe o Pelotão e virei-lhes as costas. No primeiro dia começava a experimentar dificuldades, mas tinha que considerar que o Foxtrot, pelas caracteristicas do alferes e minhas, de alguma indiferença pela disciplina militar, sendo o Pelotão onde o pessoal mais gostaria de estar, corria o risco de desgoverno e desagregação, sobretudo em ocasiões de maior tensão, se dele perdessemos o controle.

O futuro veio a revelar que o Foxtrot, sempre com características de irreverência no que respeita às formalidades militares, foi um grupo coeso, determinado, generoso e orgulhoso, onde a camaradagem não era vã.

Mais tarde no quarto, durante as apresentações, o Tubaco da Selva mostrou-me a área de arrumações e uma mala-biblioteca recheada de autores da moda, como Amado, Remarche, Lartégui, etc., mas acrescentou que estavam na fase das fotonovelas.

Pouco tempo depois,também eu me identificava com os personagens fotografados.

No final do dia fomos informados de que no dia seguinta faríamos uma patrulha a nível de Companhia, de reconhecimento e ambientação.
José Dinis

OBS:-Subtítulo da responsabilidade do co-editor
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Nota de CV

(1) - Vd. primeiro poste da série de 31 de Agosto de 2008 >
Guiné 63/74 - P3157: História da CCAÇ 2679 (1): Apresentação (José Manuel Dinis)

Guiné 63/74 - P3202: Estórias avulsas (5): Missão Católica ou Missão Heróica? (José Nunes)

1. Publicamos hoje uma estória enviada pelo nosso camarada José Nunes (1), ex-1.º Cabo Mec Elect de Centrais, do BENG 447, (1968/70), enviada no dia 7 de Setembro de 2008.

Missão Católica ou Missão Heróica?

Saía eu a Porta de Armas para ir à tabanca de Brá levar roupa à Fina Rosa, minha lavadeira, quando o sentinela me chama:

- Nosso Cabo, o frade anda a perguntar por um electricista.

Lá me dirigi ao Sto. António assim era o seu hábito, um jovem de vinte e poucos anos tal como eu, que precisava que um electricista fosse à Missão ver se era posssível fazer uma instalação eléctrica para pôr a Carpintaria Escola a funcionar.

Prontifiquei-me a ir e lá fomos, não sem antes comprar umas bazucas que o Frade me pediu, numa motorizada Peugeot, só com um assento, eu sentado e o frade de pé em cima dos pedais, picada fora, cai aqui, cai ali, lá fomos direitos a Prábis.

Chegados, fiquei boquiaberto ao ver tamanha beleza, uma pequena capela, mas a torre sineira deslumbrante entre duas altas palmeiras, lá estava a sineta com o seu campanário para chamar os fiéis.

Algumas construções de alvenaria e uma grande construção sem telhado. Lá fomos por meio de cajueiros, um pouco afastado da capela lá estava um pavilhão tosco, cheio de máquinas de carpintaria. O meu interlocutor lá ía esplanando as suas pretenções e eu anotava. Visitei a Missão, qual o meu espanto quando me leva para uma zona de Tabanca com muitas moranças e começo a ver gente com aspecto horrendo.

- São leprosos, disse-me.

Lá fui vendo aquela gente sofrida e verificando a falta de condições para assistir esta gente.

- Aquele edifício era para ser a enfermaria, mas não temos dinheiro para o telhado.

Senti uma revolta imensa, como era possivel?

Voltei ao quartel e falei com o meu chefe a quem fiz um relato do que tinha visto.
O Eng. Alf Mil José Alberto deu-me carta branca para dentro das disponibilidades dar todo o apoio possivel.

Lá fomos fazer a obra. Montámos a iluminação e a força motriz na carpintaria, com um camarada de São Pedro da Cova, cujo nome não me recordo. Almoçávamos na missão com os Frades.

Um dia ao almoço, após as orações, vem para a mesa uma travessa com aves, talvez pato e outra com uns bifinhos dos quais me servi. Começando a comer noto um sabor adocicado na carne e pensei:

- Estes italianos põem açucar na carne?

Quando o Padre no topo da mesa me diz num português meio italiano e crioulo:

- Desculpa, não sei se gosta de bife de macaco.

Mastiguei mais um pouco, mas desisti de comer alegando uma indesposição. Na missão comi a pasta mais gostosa da minha vida e receitas conventuais.

A minha admiração pela obra das missões em Africa, a forma desinteressada como estes homens se dedicam ao seu semelhante, sem meios, contra tudo, mas com uma Fé imensa e disponibilidade para ajudar.

Viviam sem luxo ou riqueza, do que a terra dava. O Cabi caçava para toda a comunidade, do cajú aproveitava a castanha para vender e do fruto faziam vinho. De Itália chegava muita coisa que eles distribuiam com a população.

Decerto o seu trabalho continua, será que em melhores condições? Oxalá pois o seu labor é sinónimo de cuidados de saúde para os leprosos da Guiné, que por lá devem continuar.

A minha admiração por estes frades, com quem tive o grato privilégio de privar e conhecer D. Sétimo Serrazeta, que teve um papel grandioso no conflito de 1999, na procura de soluções.

Este meu testemunho para dizer que apesar da guerra, havia outras lutas que era preciso vencer.

Se servir para publicar tudo bem, não quis deixar de vos relatar esta vivência em tempo de guerra.

Um abraço e saudações cordiais a todos os Camaradas.
José Nunes
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Nota de CV

Vd. poste de 22 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2469: Tabanca Grande (55): José Nunes, ex-1.º Cabo Mec Electricista de Centrais (BENG 447, 1968/70)