1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Agosto de 2017:
Queridos amigos,
Mais uma agradável surpresa, descobrir outro
protagonista da literatura luso-guineense, Waldir Araújo veio na
adolescência para Portugal e é profissional na RDP África. Este
"Admirável Diamante Bruto e outros contos" transporta-nos em permanência
para a Guiné, tudo mesclado de saudades, amores fracassados, silêncios
africanos, misticismo e feitiçaria, a metáfora da espera, a resignação
perante as engrenagens de quem triunfa no poder e dita ordens.
Como
escreve o escritor angolano Ondjaki:
"Requintada Domingas Odianga, o
temível Carlos Nhambréne, o amoroso Mimito Adão ou até o galego Maurizio
Santiago, todas estas pessoas recheadas de invulgares aspetos humanos
querem estar na Guiné e falar sobre ela, dos seus tempos, dos seus
quotidianos, dos seus sensíveis afazeres".
Um abraço do
Mário
"Admirável Diamante Bruto", por Waldir Araújo
Beja Santos
|
Waldir Araújo |
Na introdução este livro de contos de estreia literária, o escritor angolano Ondjaki saúda o colega guineense com inegável ternura, dá-lhe um belo estímulo para continuar, tão promissor parece ser o início da carreira literária:
“parece-me, pois, que nasceu aqui um importante, simpático e arejado livro de contos. que estas histórias semeia no autor o desejo de continuar escrevendo, brincando com seriedade entre a tradição coletiva guineense e a tradição interna dos seus segredos, aí onde residem os sonhos inquietos, as árvores que contam segredos, os rios que se revoltam em mágoa, as imperfeições da vida, os amores não impossíveis, as dramáticas fragâncias, as guerras desumanas e as gentes humanas”. O estreante é Waldir Araújo, um guineense que confessa a paixão pelas palavras e é jornalista desde 1996, é profissional da RDP África.
"Admirável Diamante Bruto e outros contos", Livro do Dia Editores, 2008, é a primeira aventura do autor, um bom punhado de histórias onde a Guiné está sempre presente ou quase.
Para quem continue cético quanto as primícias da literatura luso-guineense, estes contos de Waldir Araújo trazem matéria clarificadora. O autor recorda que cresceu rodeado de figuras, situações de vida e por uma realidade guineense rica em fantasia, vivendo em permanência em Portugal, considera que a escrita é uma forma de exorcizar as saudades, daí a interseção entre o que observou e os cadinhos da memória conserva. Logo o conto de abertura,
“Admirável Diamante Bruto”. Temos Ansumane Sidibé, trabalhador incansável que conseguiu o estatuto de subempreiteiro, comprou um terreno na zona da Amadora onde construiu a sua moradia. É nisto que surge alguém que se apresenta como seu primo, trata-se deste admirável diamante bruto a quem ele confia uma função na empresa. Revela-se abusador, ingrato, ao fim do dia de trabalho passava a percorrer os hotéis de luxo, sentava-se no hall de entrada a ler jornais e revistas. Acaba por agradar a uma rica empresária francesa, a sua vida mudou radicalmente, sempre que passava por Lisboa dirigia-se para o hall de entrada do hotel e pensava alto:
“Que saudades, meu Deus!”.
Passamos para um conto tipicamente guineense, passado numa ilha do arquipélago dos Bijagós, Ernesto já não é amado por Domingas Odianga, tornou-se um pescador desconsiderado. Procura a automutilação do seu órgão sexual, é tratado por uma curandeira, Domingas desperta para este ressentimento de homem despeitado, procura recuperá-lo. O trabalho da curandeira levou à recuperação de Ernesto, Domingas vai buscar quem abandonou, a paixão reacendeu-se. A curandeira explicou a Ernesto o que verdadeiramente aconteceu, não foi uma planta vulgar que mudou as coisas, o que mudara foi a confiança e autoestima que Ernesto reconquistara, o amor-próprio. Segue-se a conclusão:
“Foi assim que nasceu esta celebração que ainda hoje se realiza na mística ilha de Etionkó. No Dia do Amor-Próprio, celebrado todos os anos no início da época das chuvas, não há disputas, todos os homens como as mulheres celebram em pé de igualdade a confiança na sua força interior”.
Há contos que se rendem ao mundo dos mortos, às notícias que se publicam sobre falecimentos de vivos, é esta a trama de Salvo pela Morte, uma brincadeira de um falso anúncio muda a vida de um homem, torna-o melhor, não tinha amor ao próximo, passou a ser um sensível e compreensível cidadão. Há também as cartas de amor, que transportam por vezes tantos equívocos. Mina Sandi socorria-se de um escritor ambulante para enviar os seus estados de alma ao seu amigo Malaquias. Sucedem-se as cartas de Nina graças à prosa de Mimito Adão, carteiro nos CTT de Bissau. Mimito ouve os lamentos de Mina, interioriza-os, e espelha-os nas cartas que envia para Malaquias:
“No profundo oceano das minhas dúvidas, és a única certeza que conta. O carteiro consola-a, as respostas não chegam. Por compaixão, o carteiro inventa cartas de resposta de Malaquias para Mina". Dera-se uma alteração afetiva de Mina, o longo silêncio e a demora de Malaquias contribuíra para a sua transferência amorosa para Mimito, Waldir Araújom encontra um remate espantoso para esta história, dita a Mimito a última carta para aquele por quem ela nutrira flamejante paixão:
“Querido Malaquias, escrevo-te hoje para te dizer que sempre soube que partiste com outra mulher. Não quisera aceitar, mas sempre soube. Insisti em escrever na tentativa de descobrir que estava enganada. Recebi as respostas que também sei que não saíram do teu punho. Mas resolvi responder, é uma forma de recusar a realidade, de continuar a sonhar. Hoje escrevo-te para te dizer que estou finalmente livre e quero levar a minha vida a adiante. Conheci um homem bom por quem me apaixonei e, se esse amor tiver correspondência como as nossas cartas, é com ele que eu quero viver. Quanto mais o conheço mais me admiro com o tempo e amor que te dediquei. Não tive ainda coragem de lhe dizer o que estou a sentir mas, inteligente como é, sei que já se apercebeu. Sinto que ele também me quer. Espero que sejas feliz”. As mãos de Malaquias não paravam de tremer, Mina intimava-o a dar uma resposta. E o final é equívoco e ambíguo, provavelmente Mimito não aguentou passar do sonho à realidade:
“Naquele dia foram muitos os moradores que reclamaram pela ausência do carteiro que escrevia as cartas de amor”.
Há nestes contos gente que rouba para comer e que se disfarça de Pai Natal; há relatos sobre a decadência de Bolama, há um vendedor de rosas que tem a face desfeita por razão de uma rixa, uma antiga amante marcou-lhe o rosto com ácido sulfúrico, a sua vingança era por veneno fatal aos que a cheiravam, virou-se o feitiço contra o feiticeiro. Estes pequenos contos sucedem-se com a Guiné sempre presente e assim chegamos à última peça,
“Sem Motivos para Rancor”, é o conto mais marcadamente político de Waldir Araújo, num restaurante de Bissau fala-se sobre os primeiros números da Comissão Nacional de Eleições, sobre os resultados da segunda volta de um polémico escrutínio presidencial. Os números que inicialmente pareciam dar vitória ao candidato apoiado pelo Governo começavam então a ser contrariados com informações e números que circulavam em panfletos vendidos a mil francos a folha. É nesta atmosfera que Gabriel encontra Dino Isaac, o judeu mais guineense que conhecera. Dino comenta:
“Essa malta não percebe que nos cega a todos com o vaivém da luz. Eu já me desenrasco bem nesta eterna escuridão. Sabes o que eu acho? No dia em que acabar essa história de corte geral, luz bai, luz bim, e passarmos a termos luz elétrica a todo o tempo, os guineenses vão todos sair à rua a pedir à comunidade internacional que lhes devolva a escuridão amiga de longos anos”. Gabriel é abordado para participar num documentário positivo sobre o país, com coordenação francesa. Jean Marie Guinnot é um francês de coração guineense. Propõe Gabriel que prepare a trama da história para o filme. Este pensa ter encontrado o fio condutor, sugere ao realizador Dino Isaac. Mas os produtores consideraram que o projeto fugira à ideia inicial. Dino sentencia:
“Gabriel, aqui as coisas são outras. Tens que voltar e entrar no sistema e só depois é que entenderás tudo". Gabriel regressou a Portugal. Continua à espera.
O leitor tem assim oportunidade de ser confrontado com um conjunto de histórias onde se cruzam a magia e a fantasia da alma africana, tudo saiu da pena de um jovem guineense que veio para Portugal mas sabe muito bem onde estão as suas raízes.
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de setembro de 2020 >
Guiné 61/74 - P21346: Notas de leitura (1306): "Forças Expedicionárias a Cabo Verde na II Guerra Mundial", livro de Adriano Miranda Lima (edição de autor, Mindelo, 2020, 241 pp.): a história escrita com paixão, memória e coração (José Martins)