terça-feira, 8 de maio de 2007

Guiné 63/74 - P1740: Há mortos que nunca se enterram (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) , a quem o editor do blogue pediu o favor de nos falar dos seus sentimentos pessoais ao saber da morte do seu grande amigo Carlos Sampaio, Alf Mil de Artilharia, mobilizado para Moçambique em 12 de Abril de 1969:


Caro Luís, conforme combinado, junto depoimento breve sobre mortos intangíveis, aqueles que se colam à existência, que ultrapassam a necessidade de os esquecermos.

Acerca do tema que agora circula no blogue (2), queria também dizer o seguinte: mortos que ficam são os que matamos com as nossas mãos; mortos dolorosos são os que não podemos enterrar e que nos culpam por um determinado acto precipitado; mortos são aqueles cuja morte não percebemos como Uam Sambu que morreu nos meus braços ao amanhecer de 1 de Janeiro de 1970, num estúpido acidente de G3. O morto que vou falar tem a ver com uma amizade profunda, o insólito da notícia no dia em que me casei pelo civil.

Um abraço para todos
do Mário.



Há mortos que nunca se enterram

por Beja Santos

A 7 de Fevereiro de 1970 consegui telefonar de Bambadinca para a Cristina. Era o nosso casamento por procuração, e havia festa lá em casa depois do conservador ter saído. Ela insistia, cautelosa, na pergunta:
- Já recebeste a minha carta?.

Naquele dia não tinha chegado o correio, de modo que subi a rampa para o quartel de Bambadinca a perguntar o que de tão extraordinário vinha naquela carta. À entrada do corredor, quando íamos almoçar, o Tenente Pinheiro deu-me o meu correio e, claro está, fui logo abrir o correio da Cristina. É de lá que sai a notícia necrológica que te envio, um verdadeiro coice que me atirou à parede, fui aos urros para o meu quarto, estupidificado a ver o Carlos Sampaio, li, voltei a ler, disse que era impossível, ontem chegara a sua carta cheia de promessas para o nosso futuro como editores. Lembro ainda a entrada no quarto do Abel Rodrigues (Alf Mil da CCAÇ 12) que conversou comigo. Lá me enxuguei e fomos almoçar.


A seu tempo, vão aparecer as fotografias do jantar do meu casamento. Não sei como foi possível eu festejar o meu casamento depois de ter perdido o meu mais querido amigo.


Norte de Moçambique > Alf Mil Art Carlos José Paulo de Sampaio, natural de Anadia, mobilizado para Moçambique, pelo BCAÇ nº 10, em 12 de Abril de 1969.




É verdade que já tinha perdido muita coisa (1) e até Abril de 1970 ainda irei perder mais. Estou à vontade para testemunhar que há mortos, inteiros ou aos pedaços, que nos acompanham e enformam o carácter. Até desaparecermos deste mundo.

Fotos: © Beja Santos (2007). Direitos reservados.

________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último post do Beja Santos > 4 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1730: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (44): Uma temerária e clandestina ida a Bucol

(2) Vd. posts de:

8 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1739: É ruim de se ver mas faz parte da(s) nossa(s) memória(s) (Luís Graça / David Guimarães / José Martins)

7 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1738: Hospital Militar de Bissau (2): O terminal da guerra, da morte e do horror (Carlos Américo Cardoso, 1º cabo radiologista)

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