quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3411: O meu baptismo de fogo (22): A minha primeira vez... (Vitor Junqueira)

1. Mensagem do nosso camarada Vitor Junqueira (1), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 - Os Barões - Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, com data de 4 de Novembro de 2008, contando-nos como foi, nas suas palavras, a sua primeira vez e nas nossas o seu baptismo de fogo (2).

Amigo Carlos,
O texto que se segue, vem um pouco fora de tempo. Estive tentado a nem sequer te pedir a sua publicação depois de saber que na caixa do correio existem milhares de e-mails a aguardar escrutínio. No entanto, como eu acho que não devemos coibir-nos de dar a nossa versão dos acontecimentos quando tal nos é pedido, acabei por decidir deixar ao teu critério o destino a dar ao escrito.
Obrigado pela tua atenção,
VJ

A minha primeira vez …

Há algum tempo que venho tentando corresponder ao desafio que nos foi feito para que reportássemos para o blog, aquela experiência que deveria ser inolvidável: A nossa primeira vez! Pois, queridos camaradas, não sei se por culpa do Dr. Alzheimer ou, por o acontecimento não ter deixado marcas, não possuo qualquer recordação de como a coisa se passou. Sei que terá ocorrido algures na mata do Oio, mais precisamente no triângulo Mansabá, Olossato, Farim, por volta de Novembro ou Dezembro de 1970 – eu até podia ir pesquisar alguns dados aos meus papéis, mas acho que não vale a pena –, encontrando-se a minha guerra, empenhada numa segurança afastada aos trabalhos de reabertura da auto-via Mansabá – Farim. Estávamos na altura acampados nuns escafundós de Judas chamado Bironque, de onde partia diariamente uma expedição com o propósito de retribuir gentilezas com que éramos mimados, diariamente, pelo IN. Aqueles contactos decorriam quase sempre da mesma, pelo que, por mais que puxe pelo bestunto, não consigo recordar-me do primeiro.

Mas recordo como se tivesse acontecido ontem, um episódio em que pela primeira vez senti os ditos realmente entalados e, aquela sensação de arrepio gelado a trepar pelo espinhaço acima. Na mesma região, no mesmo contexto e na mesma época. Se me permitem, vou partilhá-lo convosco, estando certo de que alguns camaradas reviverão também situações idênticas, das quais saímos convencidos de que o Senhor Santo Cristo dos (meus camaradas) Açorianos, para outros o Altíssimo, se não fez fogo ao nosso lado, pelo menos orientou os trabalhos.

Província da Guiné, mostra a zona designada pelo Vitor Junqueira como triângulo Mansabá, Olossato, Farim na problemática região do Óio. O rectângulo encarnado assinala o Bironque onde se encontrava o Destacamento provisório de apoio à construção do troço de estrada Bironque-Farim.

Foto 2 > Destacamento do Bironque, inaugurado pela CART 2732, destinada à protecção das máquinas da Engenharia, utilizadas na construção da estrada.

Foto 3 > Troço novo da estrada Mansabá-Farim.

Fotos: © Carlos Vinhal (2008). Direitos reservados.


Sempre ouvi dizer que na tropa, voluntário, nem para cima da filha do comandante! E que a melhor atitude era não fazer ondas, porque quando o mar fica agitado, quem se lixa – com éfe – é o mexilhão. Pois, com este manancial de sabedoria, caí na esparrela e fiz-me notar através de uns bitates que mandei em frente a uma certa individualidade que os terá registado. A factura surgiu na volta do correio, a liquidar em suaves prestações, geralmente semanais, até ao final da comissão.

Eis a primeira tranche: Um belo dia, fui abordado pelo senhor CMDT do Cop 6, major Moura (?), que me propôs uma diligência no sentido desalojar uma guarnição do In que durante meses insistira em perturbar o bom andamento da obra, atacando a frente de trabalhos. Terminados estes, ou em vias de conclusão, a malta do PAIGC tinha agora o desplante de se passear na nossa estrada, novinha em folha, como se aquilo fosse o da Joana. Inaceitável!

Num mapa, mostrou-me a localização do objectivo, os itinerários possíveis – quanto a isso também não havia grande escolha –, transmitiu-me as informações que possuía acerca da composição daquela força (1 bigrupo + 1 secção de sapadores) e… desejou-me boa sorte! Certamente por lapso ou puro esquecimento, não mencionou o facto de àquela data haverem já sido feitas três tentativas para espatifar a barraca aos homens. Todas sem sucesso e, como vim a saber mais tarde, a nossa malta trouxe o que contar dessas incursões. Numa delas participou o CMDT Jorge Picado que a narra num delicioso relato, publicado há meses no blog.

No dia D, alta madrugada, uma vez apeados das viaturas, lá seguimos aos encontrões e apalpadelas, caminhando pela berma com a discrição possível ao longo de, talvez dois quilómetros, no sentido Farim – Mansabá. Em breve nos embrenhámos na faixa de terreno arroteado pelas caterpillars, que corria paralela à estrada, em cujo limite e sem grande dificuldade encontrámos a boca do carreiro que nos havia de conduzir ao objectivo, uma tabanca com o piedoso nome de Fátima, tal como o da filha do Profeta e da localidade mais milagreira de Portugal, situada aqui bem perto do sítio onde moro. Já no coração da mata, abandonámo-lo com receio de que estivesse minado ou armadilhado.

Progressão penosa, lenta, sem outro meio de orientação que não fosse uma bússola e o tino do pica titular, o Cunha de Santa Cruz da Graciosa que, com a vareta sob o sovaco, nos abria caminho tentando desembaraçar-se das lianas. Certo é que, ao clarear, sentimos o cheiro de presença humana pelo que concluímos estar muito próximo do objectivo e da bernarda. A cabeça da coluna estacou na orla da mata que bordejava uma zona quadrangular, limpa, onde tinham sido poupadas apenas as grandes árvores. Fez-se uma curta pausa para retirar as remelas mais persistentes e, com mil olhos, perscrutar cuidadosamente o extenso campo visual que se apresentava pela frente. Não vislumbrámos indícios de qualquer construção, não se via gente nem se ouvia o canto alegre do galo madrugador ou o tan-tan ritmado do pilão. Nada, apenas aquele silêncio sinistro, prenúncio de coisas más. Até os pássaros pareciam estar feitos com o IN, espiando-nos sem soltar um pio.

De repente, fazem-me sinal apontando na direcção de um combatente armado que, à distância, entra na clareira acompanhado por uma mulher. O par está bastante longe, oitenta metros aproximadamente. Naquela altura já não existiam quaisquer dúvidas de que a nossa presença era conhecida. Perdido por um, perdido por mil… o Francisco de Assis de Angra, vira para lá o canudo do LG de 6cm (eles juram que fui eu, mas não me lembro!) e com um único tiro, o combatente interrompe a caminhada. Com a perna esquerda amputada pelo joelho, o homem cai e a mulher segue o seu destino em passo acelerado. Aproximamo-nos avançando pelo lado direito da clareira, no sentido da progressão, ao longo da linha de separação com a mata, contando com a protecção da floresta, ou assim pensávamos. Uma secção da qual faz parte o maqueiro Leonel Melo, desloca-se rapidamente para o local onde se encontra o ferido. Porém, assim que entra em campo aberto é recebida por uma saraivada de tiros e bazucadas que parecem chover de todos os lados.

Vamos tentando dar alguma cobertura à equipe sanitária, fazendo tiro de morteiro para a orla oposta, poupando ao máximo as preciosas munições. Ao abrigo de enormes baga-baga e dos troncos de imponentes árvores, o cabo Melo lá consegue pôr um soro a correr e administrar alguma morfina, enquanto o transmita Osvaldo, por alcunha o Fafe, tentava contactar Bissalanca a fim de evacuar o soldado do PAIGC. Se até então, nunca tínhamos deixado um ferido abandonado não era altura para abrir excepções e por isso, a decisão rápida embora discutível foi, aguentar até à chegada do meio de salvamento.

Decisão errada! Em breve percebemos que a tropa com quem estamos metidos, se movimentara de forma a encurralar-nos. Ouvíamo-los nas nossas costas, na tal mancha de floresta que supostamente nos poderia proporcionar alguma protecção, estavam do outro lado da clareira, da rectaguarda chegava a informação de que a cauda da coluna tinha a retirada cortada enquanto da frente rebentava nos entrementes um fogachal que só visto. Sim senhor, lindo serviço, pensámos todos. Pois bem, como se costuma dizer, a gente dança conforme a música!

Dado que intuí que esta operação ia cheirar ao esturro, preparei na véspera com os elementos de que dispunha, um cuidadoso plano de fogo de apoio. Numa saltada a Farim, fui entregá-lo ao camarada Moreira, senhor de três magníficas peças de 14cm, pedindo-lhe que se mantivesse por perto para o caso de.

Agora era altura de colher alguns frutos da diligência efectuada. Foi dada ordem geral para abrigar, e ao Moreira foram solicitados os tiros, tal e tal e tal. Daí por uns segundos que pareceram minutos, ouvíamos as saídas e uma onda de conforto envolveu-nos a alma. Não tardou, primeiro o silvo das brutas por cima das nossas cabeças e logo a seguir, um estrondo tão grande capaz de acagaçar o mais afoito. Devido aos clarões, o céu ficou cor de laranja e pelo ar voaram chispas de aço incandescente, toneladas de pó, folhagem, ramos arrancados às árvores e o intenso odor característico da combustão de explosivos, criaram um cenário próprio do reino de Lucífer. Aquilo, sim, parecia a guerra. Mas os sacanas já deviam estar habituados à fruta, e não se deixaram intimidar. Ó Moreira, manda lá mais três ameixas para os pontos X, Y e Z. Despachadas as bojardas, vemo-las aterrar ainda mais próximo de nós, na margem oposta da clareira. O camarada artilheiro apanhou-lhe o gosto e continuámos naquilo até limpar esse lado da arena.

Para lá deslocámos metade da nossa força, assumindo o controle de uma zona anteriormente ocupada pelos malandros. A situação melhorou bastante em termos de segurança, o que vinha mesmo a calhar dado que, pelo transmita ficámos a saber que os Helis haviam descolado e deviam estar a chegar. Por precaução suspendeu-se a guerra, e de novo um silêncio pesado se abateu sobre nós acompanhando aquele falso sentimento de paz que se segue a cada escaramuça. Estava no papo! Santa ingenuidade, mais um engano!

Mal chega e helicanhão, faz duas passagens à nossa vertical e logo se ouve o matraquear lento de uma metralhadora pesada tentando derrubá-lo. Só então percebemos que ali mesmo na nossa frente, a escassas dezenas de metros e encoberto por um pequeno declive do terreno, estava o verdadeiro ninho da cobra. O In tinha estado a jogar apenas com reservas, a sua milícia. O heli-maca mal contacta o solo e já os enfermeiros pára-quedistas se despacham a recolher o sinistrado. Partem levando consigo o lobo mau que nos informa … estou a ser batido, tenho de retirar.

E adeus, boa tarde! Ficámos novamente no mato sem cão. Com as precauções habituais e muitas outras motivadas pelo aperto do buraco ao fundo das costas onde certamente não caberia um chícharo, retomámos a progressão, agora a duas colunas e com flancos limpos pela artilharia(*). Percorridos meia dúzia de passos, estaríamos a menos de cinquenta metros do objectivo ou seja, do grupo de moranças ocupadas pelos militares, pois as outras habitadas pela população civil ficavam um pouco mais afastadas, quando uma violenta tempestade de chumbo e aço nos fez amochar. Amochar, aguentar, levantar, mais uns passos e nova cambalhota forçada. Foram os cinquenta metros mais duros que tive de percorrer em África. A cena repetiu-se várias vezes até que, passo a passo, nos fomos aproximando, valendo-nos os seis morteiretes que nos acompanhavam sempre e a perícia dos apontadores dessa arma que não me canso de encomiar, o precioso dilagrama.

Confrontando-se mais com uma inesperada teimosia da nossa parte do que com arte guerreira que certamente não possuíamos, o tal bi-grupo e mais as suas milícias retiraram quando acharam que era oportuno, com prováveis perdas, bastantes, atrevo-me a dizer fazendo fé nos vestígios, deixando para trás algum material, sobretudo muitas munições que foram destruídas in loco, dado não possuirmos meios de evacuação. Foi abatido gado, fizeram-se estragos numa plantação de milho e as construções reduzidas a cinzas como recomendavam as NEPS. Espaldões de morteiro, ninhos de metralhadora e uma trincheira que circundava todo o perímetro da tabanca-quartel lá ficaram à espera de ser reocupados. A população civil não foi incomodada e também não nos causou qualquer problema.

E foi assim, até à semana seguinte …

(*) O êxito alcançado com esta operação só foi possível graças à excelente e nem sempre devidamente valorizada colaboração dos nossos camaradas artilheiros. Em outras que se seguiram e até onde o seu braço chegou, nunca a minha companhia deixou algo por fazer. A todos eles, um serôdio abraço de gratidão.

E para todos os Tertulianos, abraços também.
VJ
____________

Notas de CV

(1) Vd. último poste de Vitor Junqueira de 23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2979: Exercício do meu direito à indignação (1): Simplesmente obnóxio, senhor anónimo (Vitor Junqueira)

(2) Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3381: O meu baptismo de fogo (21): 6 de Outubro de 1970, o primeiro contacto com a realidade das minas (Carlos Vinhal)

4 comentários:

Anónimo disse...

É com satisfação e admiração pelo teu estilo de escrita que vejo o grande Vitor de volta à boa prosa. A recordação dos textos como "Um dia no mato", para indicar um exemplo simples,já estava longinqua demais. É bom ter-te de volta em pleno uso do teu virtuosismo literário. Parabéns.
Raul Albino

Anónimo disse...

Só agora li o teu post,quando do
telefonema de há uma hora atrás,não
tinha ainda espreitado o blogue.
Muito bom.Não faças intervalos tão
grandes entre os teus escritos.
Abraço
P.Santiago

Anónimo disse...

Grande Victor
Acabo de ler a tua brilhante actuação na destruição da célebre base de Fátima.
Felicito-te mais uma vez pelo teu comportamento, mas outra coisa não seria de esperar por quem tão destemidamente "se foi meter na boca do lobo", como ajuízei sem o saber depois de conhecer oteu percurso de vida, quando te encontrei nas margens do Rio Cacheu e tu, com a tua ousadia, fizeste mais uma vez aquele número provocatório que então tanto me marcou...
De facto não sei se participei na 2.ª ou 3.ª tentativa, só sei é que antes já tinham tentado Forças de Elite.
Naquela altura não podes ter pensado naquilo que agora vou dizer, mas talvez agora reconheças. De facto, perante tão grande "enquadramento IN", aquilo não era tarefa para mim.
Um grande abraço
Jorge Picado

Carlos Vinhal disse...

Caro Vitor
Percebeste mal, temos neste momento na caixa do correio do Luís, 6164 mensagens, mas felizmente que a esmagadora maioria está processada.
Quanto à tua participação, não te faças rogado, sabes que tens muitos admiradores dentro dos nossos habituais leitores.
Para mim, particularmente, é um prazer ler histórias do nosso Chão comum, contadas por ti. É como se estivesse a ver o filme dos acontecimentos. Obrigado Vitor.
Vinhal