domingo, 2 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3391: In Memoriam (10): Recordemos os camaradas que se foram desta vida (José Teixeira)




Recordemos os camaradas que se foram desta vida, no tempo em que era tempo para viver.
Por José Teixeira




Roubaram-nos o tempo que era tempo para cantar a vida. Forçaram-nos a viver o tempo que foi tempo do troar das armas para matar a vida. Quantos por amor à sua e à dos camaradas mataram ! Quantos a perderam num sofrimento atroz, seus gritos ainda ecoam nas nossas memórias. Quantos, hoje, têm vida que não é vida. Essa, deixaram-na lá longe algures no Óio, no Cantanhez, no Morés, em Gandembel, Guiledge, Guidage, Gadamael, Buba, Fulacunda e em tantas outras terras da Guiné, então dita portuguesa.

Apontam-nos falsos números. Perto de dez mil nas três frentes. E os outros ? Os do outro lado da contenda ? Os homens e mulheres válidos, cheios de vida, as crianças e os velhos, que conhecemos nas tabancas por onde passamos, ou se encontravam na hora errada nas tabancas controladas pelo inimigo, o alvo preferido dos nossos mandantes?

Quantos ? Ninguém ousou fazer as contas, na esperança de que o tempo perca a memória.

Não haveria tantos guerrilheiros, tanto ou mais inocentes que a maioria de nós?

Que apenas queriam viver e foram arrastados para a luta ?

Os nossos mandantes subornavam os africanos com dinheiro e arroz (Caçadores nativos, milícias, militares e comandos). Creio que não era por acaso que alguns comandantes africanos cortavam as orelhas aos mortos que faziam ao inimigo. Não havia um comandante de companhia que dava 500$oo ao guia na hora da partida e lhe prometia outros tanto se os levasse junto do inimigo? Quantas cruzes de guerra ele trouxe? E quantos mortos?

Hoje choram-se esse mortos, alguns dos guineenses, como a Cadi Candé que ao saber que eu conheci o seu pai, Aliu Candé, de imediato deixou que uma lágrima deslizasse suavemente pela sua face e hoje, telefona-me e escreve-me para saber se estou bem e partir mantenhas, chamando-me quirido tio .

O amigo Hamadú, sargento da milícia de Mampatá, que para grande desgosto meu já não fui a tempo de o abraçar, pois morreu dois meses antes de eu voltar à Guiné, contou-me numa das muitas noites de luar e de conversa amena, que os bandido (nome dado a todos quantos se refugiaram no mato para combater as forças de ocupação), nos primeiros tempo da guerra, cercava as tabancas fieis a Portugal e entravam à caça de gente para as suas forças. A frase que mais se ouvia era: Agarra! Agarra! Homens mulheres, crianças e jovens eram aprisionados e levados à força para serem re-educados na arte da guerra. Em Mampatá eu mesmo testemunhei uma cena dessas, já em 1968, quando um grupo inimigo se aproximou da tabanca e agarrou cinco pessoas que estavam nas redondezas na labuta diária do ganha pão, da agricultura. Valeu-lhes a reacção rápida de alguns dos poucos militares que lá estavam. Um pequeno grupo avançou na sua perseguição e conseguiu recuperar os cidadãos, para grande alegria de toda a tabanca, que não mais esqueceu este acto.

Em Março de 2008, durante o Simpósio fui abordado por uma antiga guerrilheira, por sinal ainda muito bonita, para me felicitar e agradecer a planta/flor que coloquei em Gandembel e as lindas palavra que proferi em sentida homenagem a todos quantos lá deixaram a vida. Soube então, que nesse tempo, ela, apenas com quinze anos era uma das telegrafistas de serviço na área do Cantanhez e já acompanhava os guerrilheiros que me combateram e a tantos de nós, desde Quebo/ Buba até Catió.

Quem não conheceu no Simpósio a enfermeira Domingas, hoje colega de trabalho do meu grande amigo Quintino Pourcel (grande no aspecto físico e no coração) em Canjadude, à data meu companheiro de enfermagem em Empada ! Foi ela com dezoito anos apenas, a enfermeira que esteve no inferno de Guiledje a prestar os socorros aos guerrilheiros feridos. Tantos e tantos jovens arrastados para o cenário de guerra fraticida, que com certeza, tanto como nós, prefeririam viver a vida a que tinham direito e a perderam, num tempo que não era ainda o seu tempo de partir.

No teatro de guerra, o tempo deixou de ser o nosso tempo. Perdeu a alma, o sentido do caminho a seguir. Não havia futuro, a não ser salvar a pele. O sonho da vida a construir, esfumou-se na roda da morte que nos cercava. Tinha os limites do arame farpado que nos envolvia.

Estávamos de algum modo impedidos de sermos nós próprios, mas a máquina de morte que nos injectaram – ou matas ou morres!

Reflectíamos um perfil de homens crispados de angústia, tentando afastar o medo. Inconformados, animados de duas ideias básicas para a sobrevivência: que o tempo passasse depressa, se possível a voar, como gritava o camarada Franklim, o telegrafista da Companhia - apetece-me voar ! Ou, a de regressar e se possível sem maleitas.

Massacrada a personalidade individual, transformamo-nos numa personalidade colectiva: Andávamos em grupo, comíamos e bebíamos em grupo, pensávamos em grupo, não, pensavam por nós; éramos os macaquinhos da G3; agíamos em grupo. Ora disparávamos, ora corríamos, ora ficávamos horas e horas, colados ao chão, olhos postos na mesma direcção, ora ficávamos quietos e absortos no espaço, de olhos e ouvidos despertos, mais que despertos. Até a dormir, os ouvidos ficavam acordados. O troar das granadas ao sair da boca dos canhões que o inimigo nos enviava pela calada da noite eram o suficiente para nos despertar e quando elas se desfaziam em mil bocados assassinos, nas paredes da caserna, encontravam o vazio quente dos leitos que momentos antes acolhiam os nossos corpos, agora protegidos na vala aberta ali á porta, enquanto os camaradas se batiam, lá na frente, junto ao arame farpado, por todos nós. Testemunhei isso mesmo, várias vezes. Recordo Buba, na noite em que pelas quatro horas da matina, fomos acordado pelo som de 11 canhões sem recuo e três morteiros, com inimigos de costureirinha quase junto ao arame farpado. Uma granada, das primeiras a ser enviada para nos dar os bons dias rebentou na parede da caserna semeando os seus estilhaços mortíferos pelos colchões ainda quente, mas sem vida, felizmente.

Então apareciam os fantasmas sem medo, os anti-heróis. O enfermeiro corria em direcção à enfermaria; o artilheiro voava para junto das suas peças de artilharia e punha-as a vomitar a morte; O homem do morteiro aparecia como que por encanto, junto do seu menino.

O diálogo das armas tornava-se então ensurdecedor, era como que o Apocalipse prometido. Se os da frente pediam munições, logo surgiam voluntários, cuja forte vontade de viver, os impelia para a acção debaixo do alto risco de encontrarem a morte.

No fim, como no lavar dos cestos na vindima, apareciam os comandantes, a fazer a conferência das eventuais vítimas. Passavam pela enfermaria, seguiam para as casernas, procuravam nos esconsos. . .

Assim vivemos o tempo, que não era o nosso tempo. Tempo em que muitos se perderam e por lá deixaram a vida.

Recordemos, neste dia que lhes é dedicado, com a saudade que ainda nos trespassa o coração, os que tombaram a nosso lado, os filhos da nossa Pátria. Talvez não saibamos ou já não nos lembremos dos seus nomes, mas aqueles gritos de dor sem esperança, aqueles olhares de angústia e desespero. . . Continuam bem vivos na nossa mente. O pó do tempo jamais os esquecerá.

Lembremos todos os que pereceram naquela guerra ingrata, independente da cor, raça, religião ou noção de pátria. Brancos e africanos, éramos irmãos e fizeram de nós inimigos.

Que bela lição de irmandade nos têm dado, a todos quantos ousaram lá voltar, agora voluntariamente, para reviver acontecimentos e reencontrar amizades que construímos e lá deixamos , sem um adeus até ao meu regresso.

Zé Teixeira

(José Teixeira foi 1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70)
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Pequeno apontamento de CV

Obrigado Zé Teixeira por esta homenagem que quiseste fazer aos nossos camaradas falecidos na Guerra Colonial, neste dia de Finados em que lembramos aqueles que de algum modo marcaram a nossa vida, sejam familiares ou amigos.
Já não me consegues surpreender, pois sou um admirador do que escreves, mas a cada intervenção tua mais convicto fico que tens uma sensibilidade fora do comum.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 1 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3389: In Memoriam (9): Trasladação de José M. Fernandes Carvalho: as diligências de José Martins

2 comentários:

Anónimo disse...

José Teixeira,

Como é habitual há anos, hoje também (na generalidade os mesmos)fui lendo: José, António, Manuel, Joaquim, Armando, Alberto, Julio, Fernando, Carlos, David, Etc. Etc. Etc.... A deposição de um ramo de flores, uma oração simples e a presença dos amigos, familiares e nós irmãos de guerra.
No regresso li o teu texto.
Que poderei dizer?
Simplesmente: Obrigado Zé! Estamos e estaremos com todos eles até à consumação dos Séculos!
Obrigado pelas tuas Palavras.

Um abraço forte! Desta vez do tamanho de toda a Nossa Tabanca Grande.

Mário Fitas

Anónimo disse...

Amigo e camarada Zé Teixeira, excelente texto! Os meus parabéns, não só pela grandeza de alma que transparece de todo o conteúdo, com o carinho que colocas em tudo o que se relaciona com aquela terra, com aquelas gentes, com a esperança que está sempre presente nas tuas intervenções e nos actos que vamos tendo conhecimento, como também nas descrições dos sentimentos que afectavam a maioria de nós.
Um abraço
Hélder Sousa