segunda-feira, 22 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P781: Do Porto a Bissau (20): Os filhos que lá deixámos (A. Marques Lopes)


Texto de A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968)... Visitou recentemente a Guiné-Bissau, num viagem de grupo organizada pelo Xico Allen...


Guiné-Bissau > Barro Guiné-Bissau >
> Jorge Gomes Bigene (à esquerda)
Bigene> Bacar Turé (à direita)
Fotos: © A. Marques Lopes (2006)


Caros camaradas e amigos:

Foram casos que muito me sensibilizaram nesta visita à Guiné. É sabido que há-de haver muitos casos destes (1), mas estes tocaram-me pessoalmente e quero dar notícia disso.

Em Barro, o Bacar Sani, filho do Cacuto Seidi, disse-me que havia um filho de branco (2) chamado Jorge Gomes. Pedi para o ir chamar, mas o rapaz não vinha, vergonha ou receio, não sei. Fui eu pela tabanca dentro à procura dele e lá cheguei á sua morança.

Disse-me que o pai se chamava Fernando Gomes e que lhe tinha dado o nome, mas fora-se embora. Não sabia quem era a mãe, porque ela desaparecera, por vergonha e repúdio dos da sua etnia (não lhe perguntei qual). Também não me soube dizer a qual companhia pertencia o pai, mas penso que terá sido das últimas a estar em Barro, pois que o rapaz tem 33 anos.

Passámos, depois, em Bigene, onde parámos bastante tempo para o turbulento fotógrafo Hugo [Costa] fazer a sua reportagem fotográfica. E aí conheci o Bacar Turé, que me disse ser filho do imediato Varela, médico do Destacamento 21 dos fuzileiros que estavam em Ganturé [no Rio Cacheu, a sul de Bigene], e que o comandante [Alpoím] Galvão conhecia bem o pai dele, que se fora e não lhe dera nome, daí ser Bacar Turé.

Há mais casos semelhantes a estes, é claro, pois é verdade, como disse o António Gedeão, que, como muitos, também eu "Tremi no escuro da selva, /Alambique de suores, /Estendi na areia e na relva, /Mulheres de todas as cores" (in Poema da Malta das Naus) (2). E tive de pensar sobre o que faria eu se soubesse que tinha medrado alguma semente minha em terras da Guiné... mas cada um deve pensar por si, evidentemente.

A. Marques Lopes

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Notas de L.G.

(1) Um outro caso já aqui foi referido, em Guileje: vd. post de 21 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (3): Dauda, o Viegas

" (...) Este menino, na altura com onze, doze meses de idade, era filho da Sona, uma jovem de Cacine, comprada pelo alfaiate de Guileje para ser a sua terceira esposa. Tinha o nome de Dauda, mas era tratado por todos nós por Viegas, apelido do pai, capitão que comandara a companhia de Cacine. Ainda hoje, quando revejo as dezenas de fotografias que fiz do garoto, acho que poderíamos anteceder Silva a Viegas" (...).

Vd. também, do Zé Neto, o post de 18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLVI: Os filhos de branco (Zé Neto)


(2) O Zé Teixeira também nos relatou aqui outros casos, de filhos de brancos que por lá ficaram, melhor ou pior integrados nas comunidades locais de suas mães: vd. post de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLV: O raio do puto era branco (Zé Teixeira)


(3) António Gedeão > Poema da malta das naus

Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
Pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias,
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me as gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão direita benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
Do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.

In Teatro do Mundo, 1958

Fonte: CITI - Centro de Investigação para Tecnologias Interactivas, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa (com a devida vénia...)

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