Um dos livros de cabeceira do Beja Santos, em Missirá (1) > Maurier, D - Rebeca. Lisboa: Livros do Brasil. 2001. (Colecção Dois Mundos, 36). Capa: Bernardo Marques.
Imagem capa do Livro de Manuel da Fonseca, Seara de Vento, 2ª ed. Lisboa: Portugália. 1962. (Colecção Contemporânea, 39). Capa de João da Câmara Leme. A proósitop deste livro escreceu-me o Beja Santos a seguinte nota:" 10/10/2006. Caro Luís: Ando cheiod e sorte. Seara de Vento, tal qual aqui te junto, ardeu em Março de 1969, com tudo o mais. Fui no mês passado à Feira da Ladra e comprei-o por um 1 euro, no meio de um espólio. A capa é ilustrada pelo Jpão da Câmara Leme, um dos artistas mais distintos da sua geração. Vê, por favor, se podes ilustrar o texto sobre o Coronel Martiniano! Mário".
Mensagem do Beja Santos, de 11 de Outubro de 2006:
Caro Luís, ainda bem que estás a apreciar (...). O episódio seguinte é rocambolesco: um comboio de seis barcos de comércio com os passageiros aos gritos quando entrámos no primeiro, a meu pedido, porque queria ir abastecer-me de comida a Bambadinca. O livro do Manuel da Fonseca já seguiu. Tive a 1ª edição, que era ilustrada pelo Vespeira. Farás o favor de transmitir à malta, a 14, [na Ameira,] que mando saudades a quem conheço e me conhece. Os outros estão a ser conhecidos pela paciência em lerem-me semanas a fio.
Abraços do Mário. Esta é a versão definitiva!
Continuação da série Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2). Mário Beja Santos foi alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) .
Texto e documentação: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Os Quesitos do Coronel Martiniano
por Beja Santos
Casa arrombada, trancas à porta. Logo a seguir à flagelação, convidei os furriéis Saiegh, Ferreira e Casanova (este chegou a Missirá na antevéspera do nosso baptismo de fogo, ainda anda alvoroçado pelos acontecimentos) para fazermos um balanço das perdas e danos.
À partida era tudo simples: três armas muito danificadas e três leitos carbonizados, isto da parte militar. O Cabo Veloso ajudou a tornar as coisas complexas:
- Qualquer dia vou-me embora, espero que saibam que faltam dezenas de mantas, capacetes, lençóis e até botas de lona e panos de tenda. Peço que aproveitem este ataque para pôr tudo em ordem.
Perguntei ao Saiegh se podia consultar o deve e haver das existências à nossa responsabilidade. Saiegh disse-me com o ar mais natural do mundo que desde que o pelotão viera do Enxalé se perdera o resto do material à carga:
- O melhor é aproveitar esta circunstância e descarregar tudo em falta. - Eu não me contive:
-Muito bem, mas como é que sabemos o que é que falta?
Ninguém sabia. Furioso, pedi uma viatura e lancei-me a caminho de Bambadinca. Depois do alto de averiguações de Abudu Cassamá, voltei a ajustar contas com os labirintos Kafkianos: entreguei-me de braços abertos aos zelosos administradores da CCS [do , em vias de partida. Para quem já esqueceu, está tudo classificado, as camisolas interiores pertencem ao subgrupo G-Eq e os pára-brisas pertencem ao subgrupo G-An. Em estado de vertigem, procurei clarificar a estes senhores o que era a nossa carga actual. Com sorrisos de bonzos, dois sargentos lateiros foram-me encostando à parede:
- Ó meu Alferes, isso pode dar uma porrada das valentes, dois destacamentos com leitos, lençóis, fronhas, metralhadoras, baixela de comida, por exemplo, tem que estar tudo classificado, sugiro mesmo que leve aqui uns livros para fazer os respectivos depósitos. É nessa altura que entra um Alferes e lança um pedido:
-Eh pá, safa-me de um sarilho. Faltam-me 10 camas, 40 lençóis, 20 mantas, tesouras corta-arame, declara-me que perdeste tudo no fogo devorador.
Eu estava pronto a tudo e com o auxílio do Saiegh fiz o relatório e forjei um abate apocaliptico. Este foi o primeiro abate apocaliptico. Daí em diante, por cada flagelação sofrida, aceitei os pedidos da CCS para abater capacetes, material de bate-chapas, utilidades do Pelotão de Manuntenção e até do Pelotão de Sapadores. Pediam-me e eu declarava no relatório da flagelação que tudo ficara calcinado. Até que um dia, pelo hora do almoço, um helicóptero zumbiu sobre Missirá, aterrou a silvar no heliporto tosco, dali saiu um Coronel com umas ripas do cabelo alouradas declarando com secura que me queria ouvir imediatamente num auto de averiguações. Coronel, o seu escrituário e eu rumámos para o abrigo, e, sentados, iniciou-se o interrogatório:
- Sou o Coronel Martiniano e o nosso brigadeiro Comandante Militar imcumbiu-me de o ouvir para apurar a certidão da verdade. Após seis flagelações, nos seus destacamentos já arderam camas, lençóis, mantas, material de transmissões e de manuntenção de viaturas superiores a um batalhão bem sacrificado. Quero que me explique e fundamente tais perdas a partir da carga existente.
Não precisei de representar ou simular incredulidade pelo que estava a ouvir. A resposta foi pronta:
- Meu Coronel, tem toda a razão em estar surpreendido por tanto material abatido. Primeiro, quando aqui cheguei disseram que de Porto Gole para Enxalé, e depois de Enxalé para Missirá tinha desaparecido muita coisa. Quando procurei apurar qual o material e equipamento desaparecidos, o batalhão de Bambadinca estava de partida e pediu-me ajuda para as suas faltas. Vai desculpar-me, mas aceitei que daí não viria nenhum mal ao mundo. Não estou a ver ninguém a levar estas mantas tenebrosas e mal cheirosas para a Metrópole. Segundo, este clima destrói tudo, corrói o metal, apodrece o pano, rebenta correias, enferruja e inutiliza tudo. Assumo inteiramente o que está registado nos meus relatórios. Respondo pelas faltas dos outros. Como o Coronel de Bafatá já me deu dois dias de prisão simples porque não tenho o quartel irrepreensível, porque disparo com o morteiro 81 sem a alça regulada, porque há cartuchos espalhados pela parada e não chega a justificação que saímos à noite para emboscar e que antes de partir obrigo a puxar a culatra à rectaguarda e entretanto as botas esmagam os cartuchos, fica Vª Excia a saber que não me arrependo de ter abatido este material todo e aceito todas as suas consequências.
O Coronel Martiniano sorriu, olhou para o tecto do abrigo e depois para as suas unhas cuidadas, fechou o caderno, levantou-se com um suspiro e disse-me:
- Vamos ver o que eu posso fazer. E agora sigo para Nova Lamego.
Partiu como chegou e só muito mais tarde soube que o auto fora arquivado sem procedimento. Aí por 1983, andava na praia do Alvor com as minhas filhas a chapinhar na água, voltei a encontrar o Coronel Martiniano. Veio direito a mim e lançou um cumprimento invulgar:
- Espero que tenha boa sorte na vida como foi sincero naquele auto. Não passou de um pró-forma, todos sabíamos que você vivia na completa miséria, não podia ter ardido aquele material todo. Com os seus relatórios, apagaram-se aquelas faltas e ainda bem. Desejo-lhe as maiores felicidades.
Voltando ao auto, fiz a descrição do costume, pedi louvores para o Cherno, Mamadu Camará e Campino. Sem nenhuma hesitação, descrevi um abate apocalíptico. Apareceu o Saiegh e informou que o Quim condutor iria ficar no batalhão, em vias de partida. Recordei a noite de 6 de Setembro em que o Quim, pacientemente a meu lado, no auge do foguetório ia passando a toda a gente carregadores cheios. Pedi ao Quim para vir falar comigo e como se fosse militar há muitos anos escrevi de um só fôlego, dirigindo-me ao Comandante:
- Como o soldado condutor Joaquim da Conceição, adido ao Pel Caç Nat 52 regressa à sua Unidade de origem e como a sua prestação de serviços no destacamento de Missirá se tivesse revelado brilhante, venho junto a Vª Excia propor que lhe seja dado um louvor por toda a sua acção pois, durante este período de tempo, tanto o que foi meu subordinado como do Comandante que me precedeu, este soldado revelou a exemplaridade das suas qualidade militares, conquistando a estima dos seus camaradas graças a um procedimento de constante rectidão e afabilidade, comportando-se no seu duro mister e nos horários mais contigentes com uma lealdade e eficiência só explicáveis à luz de uma noção militória do bem servir. Granjeou a simpatia de todos os seus camaradas pela riqueza do seu carácter e deixou uma grata lembrança na população civil de Missirá e Finete. À consideração superior".
O Quim ouviu tudo em silêncio, levantei-me esparvoado por ter escrito tudo de uma assentada, como se a prática fosse grande e cumprimentei o camarada que partia. Pouco mais de um mês depois de eu ter chegado, o Joaquim da Conceição foi o primeiro a partir deixando-me uma grande saudade. Tenho mais 25 meses para aprender que durante a guerra o efémero e o transitório podem mudar de forma a ponto de, décadas depois, se reproduzir sem vacilar a gratidão que se sentia por uma pessoa.
Regressamos a Missirá e tenho uma pequena encrenca à minha espera. Ao armar as coisas na minha casa, Sadjo Baldé entrega-me uma folha e afasta-se rapidamente enquanto eu leio o seguinte:
- Agradecia o obséquio por amor de tudo o que é mais sagrado neste mundo e especialmente sua Excelentíssima esposa. O pedido é o seguinte: como o meu Alferes disse que tenho de ir gozar licença, gostaria que lembrasse aos meus colegas que me devem dinheiro desde o ano passado, e que até agora não pagaram, que eu não posso ir gozar licença sem levar dinheiro para os meus assuntos particulares que tenho que realizar na minha terra. Peço para fazer um desconto de 900 escudos ao soldado Mamadu Camará. Desde já, meu senhor, fico muito grato pela sua costumada atenção para comigo e obrigado (...).
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > Bilhete manuscrito do Sold Sajo Baldé, entregue ao seu comandante de pelotão.
Estava cheio de fome, queria tomar banho e dormir mas o Mamadu passou ali perto e chamei-o. Interpelado sobre o conteúdo do pedido do Sadjo, disse a tudo que sim e foi mais longe:
- O Alfero ainda vai receber mais cartas com as minhas dívidas. Por enquanto pago estes 900 escudos, pois o Sadjo vai casar. Mas aprendi em Bambadinca que também se pode pagar em prestações.
Veremos mais adiante que Sadjo Baldé ficará desfeito por um rebentamento na noite de 19 de Março de 69. Trouxe o seu dólman para Portugal e só muito mais tarde é que me desfiz dele, oferecendo-o ao Fodé.
Nessa noite, cumpridas as formalidades burocráticas, e após as visitas aos postos de sentinela, vim ler. Estou a acabar de Manuel da Fonseca Seara de Vento. É uma edição muito bela da colecção Contemporânea da Portugal Editora. É uma obra definitiva sobre a condição do trabalhador rural no Alentejo. É prosa polvilhada pela melhor toada poética onde este escritor se notabilizou. Basta ver o parágrafo inicial: "Rumorosa, às sacudidelas bruscas, a ventania corre livremente. Em tropel desabalado arremete contra a empena, trespassa a telha-vã. Gemendo, arrasta-se pelo interior escudo do casebre. E demora, insiste, num ganido assobiado".
Os seres humanos envolvidos são Amanda Carrusca, Júlia, António de Valmudaro, o Palma, Bento e Mariana, filhos de Júlia e António, mas também um agricultor poderoso e uma GNR torcionária. Não sei como é que a censura deixou passar o livro, tais as brutalidades com que o autor investe acusadoramente sobre os proprietários agrícolas. Por exemplo: "Aquela raça dos lavradores antigos acabou-se. Os de hoje, se muito têm, mais desejam. Moram nas vilas, põem casa às amantes na cidade, não dão um passo sem ser de automóvel, inventam festas, não há cinemas nem teatros a que faltem. E para um estadão destes é preciso dinheiro e mais dinheiro. Nunca se fartam. Por isso é que eles açulam os feitores às canelas do pessoal, que nem o deixam respirar".
Para subsitir, o Palma vira contrabandista. Elias Sobral, o agricultor que acusara o Palma de roubo, depois de um safanão que este lhe dera na venda do Mira, faz queixa à guarda. A tragédia consuma-se quando os guardas vão buscar o Palma. A mensagem é dada por Amanda Carrusca nesse Alentejo que já faz greves e onde há reuniões clandestinas onde ela grita para os camponeses em fúria: "Um homem só não vale nada!".
Deito-me pronto a dormir, rezo à pressa agradecendo a Deus o dia buliçoso, o estar com saúde mesmo com sinais de dermatite e com os pés a inchar. Esta madrugada lá irei a Mato de Cão onde se vai passar uma história inacreditável, quando fomos confundidos com os perigosos guerrilheiros. Não resisto a contar.
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 29 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1129: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (14): Procurar em vão a nossa alma
(...)"À noite acabo a leitura de Rebeca, de Daphne du Maurier. A minha mãe ofereceu-me o seu exemplar antes de eu partir, dizendo:- É uma obra prima, acredita, aliás tu já viste o filme. - O que era verdade. Já vira num cineclube a Rebecca de Hitchcock, Óscar de Melhor Filme em 1940, o primeiro de Hitchcock na América, com Laurence Olivier e Joan Fontaine nos principais papéis, e Judith Anderson num desempenho magistral da governanta, que lhe valeu o Óscar secundário.
"Romance inesquecível que gira angustiantemente à volta de Rebeca, que nunca parece. Obra de mistério e suspense, é uma ficção que resvala para a literatura policial já que há um assassínio que, neste caso, nunca será desvendado. Mais tarde, irei reler assiduamente o livro que tem uma bela capa de Bernardo Marques, um desses artistas magistrais que mudaram o desenho gráfico das edições em Portugal" (...).
(2) Vd. post anterior, de 11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1165: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (16): O meu baptismo de fogo
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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