Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 > Finais de 1969 ou princípios de 1970 > O ex-furriel Henriques, que na altura usava um pera, à revelia do RDM, e óculos esfumados (na época, estavam na moda)... Esses óculos irão desaparecer, para sempre, sob o efeito de cone de fogo de um bazuca, no decurso da Op Boga Destemida, em 9 de Fevereiro de 1970 (1)... Em homenagem às cangalhas, que lhe terão possivelmente salvo a vista, e que ficaram para sempre enterrados no capim e na terra vermelha de Gundagué Beafada, aquele tuga nunca mais usou óculos na vida... Não sei se irá conseguir cumprir a promessa até ao fim dos seus dias... (LG).
Foto: Luís Graça (2005)
Originalmente publicado no início do Blogue-fora-nada, post de 21 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXIII: Os anjos da morte
Texto que se recupera por várias razões: (i) não referir a palavra paraquedistas no título; (ii) não mencionar o nome do autor; (iii) vir a propósito da tabanca de Candamã, aqui belissimamente evocada pelo Torcato Mendonça (2) ; (iv) na altura não existir sequer, disponível on line, a carta de Duas Fontes; e, por fim, (v) prestar a homenagem aos nossos camaradas paraquedistas que honram, com a sua presença e o seu testemunho, a nossa tertúlia.
Não se veja neste texto qualquer crítica às tropas especiais, e muito menos aos paraquedistas. É um texto datado, circunstancial, que já não reflecte necessariamente as ideias e os sentimentos do seu autor, em relação à guerra em que participou, como todos os outros que aqui estão ... Esse tuga que escrevia o seu diário, com bastante irregulariadade, entre dois uísques, via e vivia com tristeza as baixas que aconteciam de um lado e do outro... Não foi refractário, não foi desertor, mas foi soldado contra a sua própria guerra... (LG) .
Excertos do Diário de um Tuga [Luís Graça, ex-furriel mil Henriques, Atirador de Armas Pesadas de Infantaria, CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971].
Bambadinca, 20 de Agosto de 1969:
Nisto os páras são bons. Têm de ser bons. Tiram efeito do factor surpresa. Do terror que vem dos ares. Como os anjos do céu das visões místicas de Santa Teresinha, empunhando espadas de fogo, eles caem fulminantes sobre o objectivo e em poucos minutos desbaratam o IN ou obrigam-no a uma retirada desastrosa. Os seus contactos com tudo o que mexe no chão são breves mas mortais. Vejo nos meus camaradas, milicianos, uma secreta, inconfessável, admiração por esta tropa de elite ou a elite da tropa...
A nós, tropa-macaca, puseram-nos no anfiteatro, em semicírculo, nas proximidades da bolanha do Rio Biesse [vd. carta de Duas Fontes]. Eles são os actores, nós os espectadores. Quando muito somos simples figurantes. É uma peça de teatro com três actos. Acto final: um heliassalto, a presa, os roncos... Eles são chitas, especialistas nos 100 metros. Nós, somos chacais, verdadeiros corredores de fundo. Eu cheiro a merda que tresando, aqui postado na orla da mata.
Há um mês que andamos pela região de Camará [, a nordeste de Mansambo, no regulado do Corubal, no limite do Sector L1,] em patrulhamentos ofensivos. De dia e de noite, ao calor e à chuva, como uma matilha de cães a reconhecer o terreno, a bater a coutada, a farejar a caça, para depois virem os anjos do céu, em formação, em voso raso sobre os palmares, cair sobre as pobres presas encurraladas.
A primeira vaga é lançada a oeste da bolanha, penetrando os paras logo de imediato na espessa mata que se estende para sul e onde há dias tínhamos localizado um acampamento. Eles vêm de Bafatá, de helicóptero. Impecáveis no seu fato camuflado de arcanjos da morte. Frescos, perfumados (3).
Devido ao mau tempo, os T-6 não puderam bombardear previamente a zona. De qualquer modo, o helicanhão, aterrador como um dragão alado, lança o pânico entre os guerrilheiros, pondo-os em debandada, enquanto na estrada as forças de Mansanbo [, CART 2339, ] fecham o cerco, cortando uma possível retirada para Biro, do outro lado da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole.
Cinco minutos depois é capturado um guerrilheiro armado de RPG-2. Do interrogatório sumário, os paras arrancam-lhe poucas informações. Diz apenas chamar-se Malan Mané, pertencer a um bigrupo (reforçado, ou sejam, oitenta homens), comandado por Mamadu Indjai e disperso em pequenos grupos pela mata. Pelo apelido, Mané, parece-me ser mandinga. Ficará aqui preso em Bambadinca, depois de esprimido pelos paras e pelos pides (4).
Sucedem-se mais duas vagas de helicópteros e os páras passam então a percorrer a mata no sentido norte-sul. Ouvem-se tiros de rajada, para além do matraquear do helicanhão: são feitos dois mortos e capturadas três armas automáticas. Fraco resultado, fraco ronco, para tanto aparato bélico. Afinal, trata-se de uma operação a nível de agrupamento, envolvendo o sector L1 (Bambadinca) e o COP 7 (Bafatá). E, no mínimo, o combate não é leal: há um guerrilheiro para cinco combatentes nossos...
Quanto a acampamentos ou arrecadações de material, nada de importante é detectado. Passado o efeito de surpresa, os guerrilheiros, dispersos em pequenos grupos, conseguem fugir da zona do heliassalto, e retiram-se muito provavelmente na direcção de Biro.
O pano cai sobre o palco: a tropa especial regressa a Bafatá, a tropa-macaca segue para Bambadinca e Mansambo.
PS - Soube-se mais tarde que Mamadu Indjai, o mítico comandante do Sector 2 no meu tempo, foi ferido com gravidade em trocas de tiros com as forças de Mansambo e evacuado. Fiquei com uma secreta admiração por este homem que nunca chegarei a conhecer. Nem sei se hoje está vivo ou morto, depois das lutas fraticidas que ocorreram no seio do PAIGC antes e depois da independência. Lisboa, 21 de Maio de 2005.
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 9 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXXVIII: Violenta emboscada em L (Op Boga Destemida, CCAÇ 12, CART 2520 e Pel Caç Nat 63, em Gundagué Beafada, Fevereiro de 1970)
(2) Vd. post de 11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1167: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Candamã, uma tabanca em autodefesa
(3) Vd. post de 30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969) (Luís Graça)
(4) Vd. posts de:
9 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga (Luís Graça);
e
8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12 (Luís Graça)
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