segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2356: O meu Natal no mato (2): Bissorã, 1973: O Milagre (Henrique Cerqueira, CCAÇ 13)

1. Mensagem do nosso camarada Henrique Cerqueira, que mora na Foz do Douro (1):

Amigo Luís Graça, se vires que esta história tem algum interesse publica no nosso blogue e se achares por bem podes corrigir algo do Português.

Omito nomes para que só seja entendida a história,se achares que como historia não vale nada,não há problemas porque me fez muito bem escrever hoje fim de tarde friorento e até te digo estou aliviado e feliz, e seja o que Deus quiser.

Um abraço, um dia ainda te hei-de conhecer, isto vai lá devagarinho é que há muitos anos que não mexia na ferida.

Um bom natal para ti e para as pessoas que mais amas, assim como para todos os tertulianos e camaradas de todas as nossas Guinés.

Henrique Cerqueira


2. O meu Natal no mato (2) > Um milagre em Bissorã, 1973

por Henrique Cerqueira (CCAÇ 13)

Protagonista Principal:

Henrique Cerqueira, Fur Mil Atirador, BCAÇ 4610/72, em regime de voluntariado na CCAÇ 13 até Julho de 1974.

Protagonista secundário:

Regime de Marcelo Caetano e restantes (A BESTA)

Introdução:

Capitão, Alferes, Médico... não se sintam culpados, vocês foram vítimas da BESTA e com a vossa atitude permitiram o meu "Milagre de Natal", daí esta minha introdução que só os protagonistas entenderão.

Quanto á história tentarei que a entendam, pois que não sou escritor e só vou narrar o que está gravado na mente. Além disso prometi escrever algo para a tertúlia e sendo assim aqui vai e ao jeito do correr da pena.É que amanhã já não arrisco.

Véspera de Natal do ano de 1973. Nesse ano e contra mares e marés consegui ter a minha mulher Dulcinea (Ni para os amigos) e meu filho Miguel, de dois anitos, junto de mim. Vai daí pensei eu que atendendo a circunstâncias relacionadas com o Natal de 1972 e eu explico essas circunstâncias.

No ano de 1972, Natal e Ano Novo, cá o rapaz ficou a Patrulhar nessa noite de Natal só como Graduado e com o seu grupo de combate. Pois que aceitou (que remédio) que o seu Alferes fosse passar o Natal aos Açores e, como tinha mais um furriel no grupo, mas que por acaso era Guineense, esse também foi autorizado a ir para Bissau.

Cá o Henrique até nem se chateou pois que para levar um balázio na mona tanto faz ter mais furriéis ou mais Alferes junto e, como ainda era a noite em que a única falta era a da família e como os ditos atrás até tiveram passes e autorização,porque não???

E assim se passou o Natal de 1972. O Alferes veio dos Açores. O Furriel veio de Bissau e mais tarde até vieram, de prenda atrasada, mais dois Furriéis para o Grupo.Como vêem, até foi um Natal feliz para todos, ná é ?!...

Bom o ano de 1973 foi correndo - correndo devagarinho...devagarinho - , , mas lá chegou a outro Natal, o de 1973. Ah! esse, sim, ia ser o meu Natal Feliz na Guiné. Calma, malta, isto tem de ir devagarinho´, é que estou a abrir o ficheiro(mona,tola, massa encefálica,etc.). É que isto, malta, também é Guiné.

Bom, andemos.Dia 24/12/1973 chegou e então logo pela manhã e como sabia que o plano de protecção ao comando estava traçado e que mais uma vez o meu grupo estava escalado para Patrulha até pelo menos a meia-noite, este rapaz que acreditava que ainda havia Natal para todos, o que faz? Vai, muito alegre e contente, falar ao Aferes e pedir dispensa para a patrulha da noite e até disse que o único motivo de tal pedido era pelo simples facto de ter a mulher e filho junto dele.

Errado... Errado... O Alferes até parecia que estava à espera de tal pedido, pois que de imediato e de rajada me disse:
- Não, senhor, nem pense ,você não tem privilégios, não é mais que outros, por tal há que ir pró mato.

Ainda tentei falar ao coração do meu "camarada", depois até lhe lembrei o Natal de 1972. Qual quê?! Nem pensar, o grupo esse ano ia todinho para o mato patrulhar ou seja UM Alferes, três Furriéis e vinte e tal Soldados.

Meti o rabinho entre pernas (que é como quem diz sufoquei as lágrimas) e vim para a minha tabanca e pensei…..(ainda pesava !..):
- Parto um pé e prontos, não vou ao mato!!!

Merda, a pedra era torrão ferruginoso, desfez-se no pé e só ficou a arder... Merda, merda, assim não podia ser. Ainda pensei num tirito no pé,mas não se tornou viável, tinha muitos mirones e depois as balas eram caras, não é?? Então cá o rapaz que ainda não estava Homem feito,resolveu escrever um bilhetinho e mandou ao Capitão a dizer que estava doentinho.

Porreiro, mudou de folha e até coincide com a mudança de tudo e em especial com a minha grande mudança nesse dia e até para todo o sempre.

Passados mais menos uns trinta minutos vejo a se dirigir para a minha tabanca uma Delegação de Respeito, ou seja: Um Capitão, um Alferes e um Médico e creio ainda que mais atrás vinham alguns mirones "aramistas" e então começaram as "negociações" (hé…hé..deixa-me rir!).

1º Você não está nada doente, o que quer é se baldar;

2º Não tem privilégio nenhum só porque teve o atrevimento de trazer a família para junto de si (a palavra atrevimento eles pensaram e eu só agora escrevo, é da minha autoria neste texto)

3º Como toda aquela conversa me estava a enojar, pois que todos sabiam que eu sempre fui voluntário para tudo que não era desejável, sabiam ainda o que se tinha passado no Natal de 1972, nunca tinha contestado ordens de superiores,sempre tinha respeitado todos os camaradas Furriéis e todos os soldados do grupo ou de outros agrupamentos, assim como apesar da minha juventude eu tinha uma óptima relação com os civis e até no aspecto de Humanização e ainda após todos aqueles anos já longos de Guinè não havia nada a apontar na minha folha de serviços e como já estava farto da treta dos três e após ameaça de ficar preso no domicílio, ser despromovido, e ainda recambiado para a Fronteira, eu então tive... o MEU MILAGRE DE NATAL!

Fiquei Homem de verdade e aceitei o valor da proposta e, como tal nessa noite de Natal de 1973, em Bissorã eu fiquei preso, comi rabanadas que fritei em conjunto com a Ni ,comi arroz doce, tive muitos amigos em casa, tocámos viola, cantámos chorámos e rimos, enfim houve Natal esse ano,eu tive o Natal que queria,o Milagre aconteceu e deu-me coragem para me revoltar contra o sistema da altura e até venci a BESTA porque: Não fui para a Fronteira, não fui despromovido, não fui preso e vivi em companhia da Ni e do Miguel mais todos os intervenientes desta história o FIM GLORIOSO DA BESTA COM A CHEGADA DO 25 DE ABRIL...

Não fiquem todos contentes por ter acabado a história, é que até Julho de 1974 ainda tive de enfrentar mais algumas BESTEIRAS e assim consolidar o meu amadurecimento como Homem.

É assim que eu, a Ni e o Miguel desejamos um muito Feliz Natal a todos os Tertulianos e em especial ao Capitão e Alferes que foram pessoas marcantes na minha vida.Um bom ANO para todos e para quem mais amam na vida.

Henrique Jorge Cerqueira da Silva

Ex-Furriel Miliciano
Batalhão 4610/72
3º Companhia no Biambe
4º Grupo de Combate da CCAÇ 13, 1972/74

Dulcinea (NI: Minha Mulher e mobilizada por mim para Bissorã em 1973/74

Miguel Nuno: Meu filho de dois anos mobilizado pela NI para Bissorã em 1973/74

3. Comentário de L.G.: Henrique, grande leão, fiquei muito sensibilizado por arranjares tempo e coragem para nos contares esse belíssimo milagre de Natal, no já longínquo ano de 1973 e nesse lugar não menos distante que era Bissorã. Um homem é um homem, e um bicho é um bicho: eis a conclusão (moral) que a gente pode tirar do teu relato, onde a emoção ainda se sente à flor da pele... Um homem, armado com a poderosa arma da razão, é um homem livre e frontal, capaz de enfrentar o medo, a ameaça, a prepotência...

Como sabes, nenhum camarada, neste blogue, deve fazer julgar o comportamento (militar) de outro camarada no TO da Guiné... Não sou (nem quero ser) juiz, não vou dizer que fizeste bem ou que fizeste mal. Não tenho dúvida em concordar contigo: nunca mais esquecerás esse Natal que te ajudou a tornar-te um homem de corpo inteiro... A tua Dulcineia e o teu Nuno tiveram muito orgulho em ti nessa noite, e vejo que continuaram a admirar-te pela vida fora... Deixa-me ainda dizer-te que é uma atitude de nobreza, da tua parte, não mostrar hoje qualquer rancor ou desejo de vingância, em relação ao Capital, ao Alferes e ao Médico, também eles vítimas de um sistemas iníquo e prepotente... Aquele abraço. Luís.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 26 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2219: Tabanca Grande (37): Apresenta-se Henrique Cerqueira, ex-Fur Mil (BCAÇ 4610/72 e CCAÇ 13, 1972/74)

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