1. O nosso Camarada Manuel Reis (*), ex-Alf Mil At Inf da CCAV 8350, (Guileje, 1972/74), enviou-nos a seguinte mensagem, com data de 9 de Fevereiro de 2010:
Camaradas,
Este texto é a descrição, em linhas gerais, do percurso da C.CAV 8350, Piratas de Guileje. É omissa a parte referente a Guileje e Gadamael, por todos já deveras conhecida.
Narrativa de alguns acontecimentos que marcaram o percurso da C. CAV. 8350.
Aos meus furriéis e soldados que nunca esquecerei
Nos meados do mês de Julho, cuja data não consigo precisar, a Companhia foi enviada para Cacine para aguardar embarque numa L. D. G. com destino a Bissau. Para trás, ficara Guileje e Gadamael. Connosco vão, para sempre, as marcas desses dias atribulados.
A estadia de dois ou três dias em Cacine foi maravilhosa. Com a compreensão e amabilidade da maioria dos camaradas da Companhia aí sediada, pode-se descomprimir um pouco.
Para o Juvenal Candeias e Catarino (a quem desejo uma rápido restabelecimento) e extensivo a toda a Companhia fica o meu sincero agradecimento por tudo o que nos propiciaram, num momento tão difícil.
Ao cair da tarde, sentado junto de uma das frondosas árvores e com o olhar perdido nas águas tranquilas e cálidas do rio Cacine, o meu pensamento voava para Coimbra, terra que me perfilhou e me fez homem.
Eram momentos únicos, em que tentava libertar a mente de um pesadelo, que ainda hoje subsiste.
Aqui as noites eram passadas num salutar convívio, em que a partilha de opiniões nos convidava a entrar pela noite dentro. Os temas abordados eram, inevitavelmente, o aproximar do fim da guerra. Tivemos a oportunidade de conhecer alguns pormenores da invasão à Guiné-Connakry e algumas das causas do seu fracasso. Foram dos momentos mais agradáveis que vivi no teatro de operações da Guiné.
Ao entrar para a L.D.G. deparo com o Comandante, meu conterrâneo, meu amigo, meu companheiro nos tempos estudantis de Coimbra. Luís Pato é o seu nome, esse mesmo, do bom vinho bairradino… Nada mau para começar, pensei…
Colocados no Cumeré fomos submetidos a instrução de reabilitação, orientada pelos Oficiais da Companhia de Comandos. Aqui valeu-nos o bom senso do Alferes, Comandante da Companhia, em substituição do Capitão, evacuado para a Metrópole. Após nos ouvir sobre o estado físico e anímico do que restava de uma Companhia, alterou o plano de instrução de modo a que este se adaptasse à situação física e psíquica dos militares da C.CAV 8350.
Todos os dias éramos bombardeados sobre possíveis hipóteses de colocação, que as Chefias Militares destinavam para a Companhia, que ia desde a colocação no local mais próximo de Guileje, considerando uma possível preocupação, até ao desmembramento total da mesma. Esta hipótese não vingou, dizia-se ser perigosa, pelo efeito contagiante que poderia exercer sobre os camaradas de outras companhias. Isto era o que se dizia, desconheço o seu fundo de verdade.
Após o mês de instrução são revelados os resultados dos exames médicos complementados com análises laboratoriais ao sangue, fezes e urina e são conclusivos: 87,5% dos camaradas são declarados inoperacionais. O registo é mental e pode não ser rigoroso. No entanto, tenho-o como tal.
As Chefias são obrigadas a alterar, temporariamente, os planos que projectavam para a C.CAV. 8350.
À Companhia é atribuído o sector de Quinhamel, zona onde a guerra não se fazia sentir. Como este sector ainda se encontrava ocupado por uma Companhia em rotação, fomos colocados num barracão rodeado por charchos. Julgo chamar-se Bisquita, o local da localização do barracão, onde não era possível dormir durante a noite, devido à imensidão dos mosquitos que penetravam, com relativa facilidade, através dos mosquiteiros. Andava-se de noite e dormia-se de dia.
Bem, assim ainda nos coçávamos, caso contrário não fazíamos mesmo nada!…
Em Bisquita ocorreu uma situação que não devo omitir pelo respeito e consideração que sempre me mereceram os meus soldados e furriéis. Este acontecimento mostra, ainda, até onde ia o espírito de união do grupo que, ao contrário do que constava em toda a Guiné, era sólido. Tinha sido forjado no sofrimento imposto pela guerra e moldado pelo desprezo a que fomos lançados. Soubemos resistir.
O acontecimento roça a banalidade, mas a atitude destes homens ultrapassa esses limites, é dignificante.
Todos sentíamos necessidade de nos ausentar daquele cenário de guerra, as chagas estavam vivas, mas os míseros pesos que os soldados auferiam, eram insuficientes para se deslocarem até à Metrópole e se libertarem um pouco do stress acumulado.
Seis ou sete soldados, do meu grupo, conseguiram que os familiares lhes angariassem a quantia necessária para a viagem e o dinheiro foi enviado, via postal, para o S.P.M. 2728 (o código postal). As sucessivas alterações de colocação da Companhia terão contribuído para que o dinheiro não aparecesse.
Era necessário confirmar a viagem e não havia dinheiro para o fazer. Sentia-me impotente por um lado e revoltado por outro. A situação parecia inultrapassável e ainda, por cima, eu também vinha de licença, nesse mesmo voo, o que me impedia de libertar as minhas economias.
Após falar com os meus furriéis, no dia de pagamento, descrevi ao grupo a situação, que alguns camaradas estavam a viver, já conhecido da maioria, e sugeri-lhes que emprestassem uma determinada quantia, que eu ficaria responsável pelo empréstimo de cada um.
A adesão foi total. Todos se mostraram disponíveis, com excepção de um soldado, que passadas umas horas veio ao meu encontro manifestar o seu desejo de também colaborar. As férias daqueles camaradas, na Metrópole, só eram possíveis com a colaboração de todos.
A maior ajuda, em termos monetários veio dos furriéis, que sem eles, a ideia não poderia avançar. A sua colaboração foi determinante.
A história termina com a chegada dos vales postais no próprio dia da viagem o que permitiu regularizar a situação antes da partida para férias.
Passados os três meses de permanência em Quinhamel fomos colocados em Cumbijã, onde se encontrava o nosso amigo e Capitão, Vasco da Gama, com a sua Companhia. Fomos acolhidos cordialmente e a ele e à sua gente estamos gratos, para sempre.
Nunca cheguei a saber qual a missão que nos estava destinada em Cumbijã e Colibuia. Recordo-me das operações, tipo bombeiro, a apagar fogos aqui e ali. Reordenamento de Colibuia, protecção à construção da estrada Aldeia Formosa-Buba nas imediações de Nhala, elaboração de 53 processos relativos a mortos e feridos em Guileje e Gadamael, para além dos patrulhamentos de rotina.
Deixo uma palavra de gratidão ao Capitão Reis, Comandante da C.Cav. 8350, em nome dos camaradas feridos em combate e dos familiares dos mortos. Sem a sua determinação e perspicácia, dificilmente conseguiam a pensão que, por direito, lhes assistia.
Aqui, em Cumbijã, terras do Vasco da Gama, nos vai encontrar o 25 de Abril.
A guerra, que vitimara tantos camaradas, transforma-se em PAZ.
As vivências eram outras. O inimigo deixara de o ser. Havia que preparar a entrega do aquartelamento de Cumbijã.
Foi um período complicado, pelo envolvimento a que me obrigava, para que nada sucedesse de anormal e que pudesse manchar todo o processo.
Foram os encontros no mato, desarmados, com os grupos de guerrilha do PAIGC, foram as reuniões de carácter político com os Comissários do PAIGC., foi o desarmamento dos nossos Milícias, sendo esta a situação muito dolorosa.
O aquartelamento de Cumbijã foi entregue no dia 19 de Agosto de 1974, ao PAIGC, com toda a dignidade, na presença do Comandante de Companhia, Capitão Santos Vieira.
Falei no trajecto da C.CAV. 8350 e relatei alguns episódios. Outros episódios, vividos neste trajecto, esperarão a sua vez.
Um grande abraço para todos os camaradas.
Manuel Reis
Alf Mil At Inf da CCAV 8350
Fotos: © Casimiro Carvalho (2010). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
6 comentários:
Caro Manuel Reis
Um relato 'sofrido', ainda se nota, mas pleno de vigor.
Cabeça erguida, espinha direita!
É bem verdade que a vocês calhou uma das 'favas' daqueles bolos...
E é de lamentar que ainda hoje se façam sentir as consequências.
Um abraço solidário
Hélder S.
Olá Reis
são gratificantes as tuas recordações, apenas uma correcção não era "BESQUITA" mas sim "BEJIMITA".
Em 5 de Junho lá estarei.
Um abração.
V. Alfaiate
Olá Alfaiate:
É sempre bom ouvir-te (ler-te).
Obrigado pela tua ajuda, pois não tinha a certeza.
Aproveito para fazer outra correcção: O Comandante de Companhia de Cacine era Margarido e não, como erradamente referi, Catarino.
Lá contamos contigo no dia 5.
Um abraço amigo.
Manuel Reis
Caro amigo,
Quando passaste por Quinhamel terás estado em Bigemita! Parece que te estou a ouvir dizer: "é isso mesmo!"
Também por aí andei no fim da comissão e olha que mesmo perto de Bissau não deixava de ser um grande "buraco"!
Quanto à tua passagem por Cacine, foram óptimos os dias de camaradagem e,falo por mim e tenho a certeza que posso também falar pelo Margarido (os editores referem erradamente Catarino) tivemos um enorme prazer em ter-vos connosco!
Um grande abraço para ti, grande amigo, e continua a escrever que é sempre gratificante ler-te!
Juvenal Candeias
RECORDANDO...
ERA BIJEMITA...
EU FUI BRINDADO, QUANDO ESTAVA NA SEGURANÇA DA ABERTURA DE UMA ESTRADA EM NHALA, COM A TRASFERÊNCIA PARA PAÚNCA, EM ABRIL DE 74, E DEU-SE O 25 QUANDO EU ESTAVA A ESTAGIAR PARA A AFRICANA CCAÇ 11.
J CARVALHO
PIRATA
RECORDANDO...
QUANDO VOCÊS ESTAVAM EM QUINHAMEL - BIJEMITA EU ESTAVA EM PRÁBIS (BÓR) E SÓ QUANDO ESTAVA EM COLIBUIA (BUBA - NHALA) É QUE FUI DESTACADO PARA RENDER INDIVIDUALMENTE O FUR MIL OP ESP CLAUDIO MOREIRA A PAÚNCA.
ABRAÇO
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