1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2010:
Queridos amigos,
Despeço-me nostalgicamente dos livros do Armor Pires Mota que me proporcionaram tão gratificante companhia.
Ele fica com a obrigação de escrever mais, confio que não nos irá desapontar.
Acabei agora um livro do Álvaro Guerra, que o Armor fez o favor de me emprestar. Tem parágrafos extraordinários, convém não esquecer que havia a censura e que estávamos no fim dos anos 60.
Por favor, leiam o Álvaro Guerra, também nosso camarada da Guiné.
Um abraço do
Mário
Armor Pires Mota (8)
A Cubana que dançava flamenco: O amor é mais forte do que a guerra
Beja Santos
Silas Macário é prisioneiro de guerra, na área do Morés convive com guerrilheiros do PAIGC e os seus amigos cubanos. No meio deste calvário, Usita, uma guerrilheira guineense, apaixona-se por ele, depois as contingências da guerra separa-os, Conchita, uma enfermeira cubana, descobre igualmente afecto por este estranho prisioneiro que se adaptou, resignado, a viver os sobressaltos das emboscadas e das flagelações, dos sobrevoos dos T6, a permanecer nas casamatas, a trabalhar como carregador.
E um dia Silas Macário e Usita deixaram a zona de Satambato, Usita está grávida de Silas, trata-se de uma fuga discreta, Mamadu Indjai, o marido de Usita saíra em missão. Percorrem longas distâncias através do capim alto, seguem com o macaco Mussá. Passam por acampamentos do PAIGC, parece que ninguém desconfia. Tomam uma canoa e descem o rio, há mesmo que lutar com um crocodilo mais ousado, que até devora um braço de um jovem guerrilheiro do PAIGC que os acompanha. E assim, imprevistamente, por vontade de Usita, Silas Macário é restituído à liberdade, vai até ao Copilão, como animal devora comida, mostra-se brigão, é apanhado pela Polícia Militar. É aqui que Armor Pires Mota escreve algumas das páginas mais notáveis do seu livro “A Cubana que dançava flamenco”. Aos tropeções de um sonho, avança em direcção ao Pidjiquiti, fita um par de namorados, o que ele estava necessitado era de que o ouvissem, queria soltar a língua e com ela as amarras da angústia. Apeteceu-lhe escrever à mãe e à noiva, mas aquela região de Bissau exerce sobre ele um profundo fascínio: “Silas Macário tentou ver-se ao espelho da água do Rio Grande. O sol descambava por cima de largas rosáceas de nuvens finas e frágeis. Alguns peixes com as barbatanas quebravam-lhe o rosto e sujavam-no com as ondas. Também ele já não tinha de si uma imagem nítida e segura, bem construída. Pousou ainda o olhar, transportando-o por momentos, nas asas dos jagudis que tinham honras de bons e prestáveis servidores de limpeza no código da cidade e no Forte de S. José da Amura, com os seus quatro bastiões, ideia ali plantada pelo Marquês de Pombal. Foi então que se lembrou daquele diálogo que travara com o negro.
Era um garoto que saltava no cais, de um lado para o outro, sobretudo junto dos oficiais. Como se fosse uma espécie de espião.
– Que queres ser, quando fores grande? – questionou.
– Terrorista.
A resposta deixou-o varado, por inesperada. No entanto, não deixou de lhe afagar a carapinha, ainda que com relutância esmorecida:
– Ah, meu grande sacana! Isto é lá vida para um rapaz, um homem!
– Manga di ronco – disse ainda o miúdo.
Começou por assobiar baixo e sabia, então, passados dois anos, que os guerrilheiros enterravam, por vezes, os seus mortos a cantar. Faziam daquela guerra uma espécie de religião que, aliás, levavam a sério, e ele que o dissesse com duas cicatrizes, uma na face direita e outra na coxa, do lado de dentro, e teve sorte em a bala não subir ao bico do coração”. Silas prossegue a sua viagem fantástica, encontra um pescador que pesca sol, julga que está a ser emboscado, depois vai à procura de Susana, a mulher do capitão, professora de literatura e sonhos, pede-lhe para ser uma criança nos seus braços, conta-lhe que encontrou Usita, a guerrilheira que queria um filho de um branco. Silas permanece infatigável, escreve aos repelões aerogramas, um para a mãe, outro para a noiva. Depois foi telefonar para a mãe: “Uma voz entrecortada de soluços, muitos soluços. Reconhecia-a. A palavra filho veio à tona, milhentas vezes. Como se fosse necessário desenterrá-la do fundo de um naufrágio, dos destroços que era eu. Era minha que não se continha. De contentamento. Sobretudo espanto. Mas é possível?, questionava. Como é possível, rematava, aqui e ali. Aos soluços havia de acrescentar um rio de lágrimas. Tão grande corrente que naufragavam as palavras ou eram cortadas com fragor nalguma passagem mais dura e cruel”. A mãe tinha razões para duvidar, o filho fora dado como morto, tinha sepultura no cemitério da aldeia. E voltou a escrever à mãe dizendo que foi o alferes mais feliz de toda a guerra.
Silas Macário foi chamado ao quartel-general, afinal ele era um fenómeno, um alferes ressuscitado, até a PIDE desconfiava, submeteu a duro interrogatório, os nomes e os dados batiam certo.
Dá-se o derradeiro encontro com Usita, estão aqui as páginas mais sublimes da obra, trespassadas pela mensagem fundamental do autor: a paz é sempre possível, está acima dos queixumes e dos ajustes, sobretudo desta paz em que a guerrilheira era uma terra fecundada por um branco de Lisboa.
Silas vai partir eufórico, porque o futuro é sempre diferente. Não interessa saber o que depois se passou quando um barco atracou à Rocha do Conde de Óbidos e ele voltou para uma povoação lá no centro do país. O filho nasceu livre, agora havia que o saber colher, rememorar tudo o que se passara lá bem longe, naquelas regiões do Morés, de Bissorã, Mansabá e Mansoa.
Armor Pires Mota deixa definitivamente esclarecido que é um grande escritor, esculpe e desenha dentro da melhor tradição literária, acrescenta-lhe imagens muito pessoais daquela guerra da Guiné, tudo se salda numa grande mensagem de esperança, temperada por uma fé e um humanismo cristãos que ele não ilude nem deixa ao acaso.
Resta esperar ainda mais dele, qualquer dia o blogue vai comparecer na cerimónia do lançamento da nova edição da “Estranha Noiva de Guerra”.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 13 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5811: Notas de leitura (65): Armor Pires Mota (7): A Cubana Que Dançava Flamenco - A consagração de um grande escritor (Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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