terça-feira, 9 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7249: In Memoriam (60): Morreu Fatumatá, Mulher Grande de Sinchã Sambel (ex-Contabane), mãe do Régulo Suleimane Baldé (Paulo Santiago)




MORREU A FATEMÁ!


1. Mensagem de Paulo Santiago* (ex-Alf Mil do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72), com data de 8 de Novembro de 2010:

Telefonema que recebi, às 23.00 horas de ontem, do Zé Teixeira, que recebera a mesma notícia do Carlos Nery, que, por sua vez, a recebera de um antigo milícia.

MULHER GRANDE, GRANDE SENHORA, que conheci há 40 anos, tendo-a visitado em 2005  (*) e 2008.

Viúva do Régulo de Contabane, Sambel Baldé, mãe do actual Régulo, Suleimane Baldé, ex-1.º Cabo do PEL CAÇ NAT 53, que tive a honra de comandar.

A Fatemá ficou na memória de inúmeros militares que foram passando por Contabane, Aldeia Formosa e Saltinho, onde na outra margem do rio Corubal, nos anos de 70-71, foi construído o Reordenamento de Contabane, hoje chamado Sinchã Sambel.

O meu convívio, mais intenso, com a Fatemá decorreu no período em que vivi naquele Reordenamento, Maio a Agosto de 72. Nos dias em que não havia saídas para o mato, quase sempre, a seguir ao jantar tinha longas conversas com o Sambel e a Fatemá.

Ela lembrava-me a minha avó Clementina que me enviou o bolo-rei mais delicioso que até hoje comi, apesar de muito duro quando o recebi em Bambadinca, história que já contei.

A Fatemá era dotada de grande jovialidade e simpatia. Ainda hoje quando encontro algum ex-militar da CCAÇ 2701, sabendo que estive recentemente na Guiné, vem a pergunta - e a Fatemá ainda é viva? Como é que ela está?

Em Fevereiro de 2005, acompanhado pelo meu filho João, apareci de surpresa em Sinchã Sambel, a Fatemá fez-nos uma recepção que jamais esqueceremos. Sem o saber desencontrara-me do Suleimane que tinha vindo, dias antes para Lisboa, e a Fatemá, naquele dia foi régulo e chefe de tabanca. Ela mobilizou toda a aldeia para receber os visitantes. Foi uma tarde, prolongou-se pela noite, de fortes emoções onde pontificava aquela figura matriarcal que no final nos ofereceu um cabrito.


Sinchã Sambel, 2005 > Fatemá e Paulo Santiago, ladeados por amigos. Por de trás, João Santiago, filho do Paulo, que também quis sentir as emoções de seu pai ao voltar à Guiné da sua juventude.



Na Guiné, onde a esperança de vida é muito baixa, a Fatemá era uma excepção notável, e com certeza única, tempos atrás ultrapassara os cem anos. O Suleimane, ontem, quando lhe telefonei disse-me que a mãe tinha 114 (!?) anos, e sendo assim, nasceu no séc XIX, passou pelo séc XX e vem morrer no séc XXI. Soube envelhecer com dignidade, para quem nunca soube o que era botox ou pilling, a Fatemá tinha uma pele lisa, com muito poucas rugas, e para além deste aspecto exterior, possuía uma cabeça cheia de memórias. Em 2005, falou-me dos militares portugueses que foi conhecendo ao longo dos anos da guerra, uns que eu conhecia, outros não. Curiosamente, esqueceu o comandante da CCAÇ 3490, ou fez por bem não o mencionar.

Em Março de 2008, encontrei-a muito prostrada, muito apática, e já não me reconheceu

Ontem à tarde, segundo o Suleimane, "ficou-se"... morreu de velhice.

Hoje, às 10.00 horas, seria enterrada.

Que Alá a tenha em descanso.

Aguada de Cima, 8 de Novembro de 2010
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7208: In Memoriam (59): A todos quantos deram graciosamente a sua vida (José Teixeira)

(*) Sobre a viagem de 2005, vd o conjunto de sete postes que o Paulo escereveu na notável série As emoções de um regresso:



5 comentários:

Luís Graça disse...

Paulo: A ternura com que falas desta mulher, que bem podia ter sido tua avó ou bisavó... Os laços de afecto que deixaste por onde passaste... Eu não sei se isto é muito "português", só sei que é de um grande português, cidadão e homem, de sue nome Paulo Santiago e cuja presença, entre nós, muito honra a Tabanca Grande...

Há mais postes onde evocas a Fatemá... Por exemplo, fui buscar este excerto:

"Jamil [ Nasser, comerciante libanês do Saltinho,] desistiu da abertura de uma casa em Mampatá, mas a ideia foi aproveitada por um outro comerciante do Xitole, o Rachid. Passou-se para o Reordenamento de Contabane, na outra margem do rio, e estou a ver a Fatemá, mulher do Régulo Sambel, mãe do meu 1º Cabo Suleimane, a "pendurar-se" ao pescoço do Spínola e a cobri-lo de beijos."(...)

13 de Abril de 2010
Guiné 63/74 - P6150: O Spínola que eu conheci (8): O Militar que foi meu Comandante-Chefe (Paulo Santiago)


http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2010/04/guine-6374-p6150-o-spinola-que-eu.html

Anónimo disse...

A minha memória sobre a FATEMÁ, não é tão objectivamente clara como a que aqui aparece do camarada Santiago.
Há coisas da Guiné que me escapam hoje e penso mesmo que me escaparam sempre para minha desgraça pessoal porque tenho isso como uma lástima que não me aumenta razões para a consideração de outros nem de mim por mim próprio.
Tentando entender porque terá sido isso, quero crer que se deve a uma certa rejeição pela guerra e pelas razões da guerra e, nesse tempo, mesmo pelos seus interpretes no terreno, apesar de também eu a ter assumido.
Por isso Fatemá,era apenas a mais prestigiada das mulheres de Sambel. tenente de segunda linha, homem que permaneceu a nosso lado, creio que até ao fim da guerra.
Dele, lembro cartas que escrevi para um seu filho que estava em Lisboa e que ele queria em Contabane para casar com uma mulher "negociada" pelo pai, coisa que gerou conflito de posturas porque o filho, tendo escolhido mulher, outra, já não aceitava a decisão do pai.
Lembro também do posto rádio que montei em sua casa com AN-GRC9 para apoiar uma incursão da minha companhia na estrada que ligava a Madina do Boé, operação que deu apenas uma vítima, cobra com mais de 4 metros apanhada pelos soldados e cozinhada em Aldeia Formosa.
E também me lembro do embaraço desse dia, obrigado a partilhar o arroz de chabéu com galinha na mesma malga de madeira onde comiam Sambel e as suas mulheres da forma tradicional da Guiné.
Sei que muito soldado português partilhou experiências destas sem quaisquer dificuldades, mas para mim não foi agradável, coisa que, como disse já, sinto hoje como postura verdadeiramente lamentável na medida em demonstra a pouca adaptação que terei tido nesta experiência.
Abraço
José Brás

Anónimo disse...

Morreu Mulher Grande!

Que descanse em paz no lugar que desejava.

É assim, as palavras do Paulo e os comentários do Luís e do Zé Brás, dizem tudo do amor desta Tabanca aquele CHÃO.

Fraterno abraço para toda a família.

Máio Fitas

Zé Teixeira disse...

não me lembro da Fatemá, quando trilhei as picadas de Quebo e Mampatá. Recordo o Régulo Sambel, seu marido e a sua dedicação e fidelidade a Portugal.
O Seu filho, o nosso amigo Suleimane,actual Régulo de Contabane, esse sim, como soldado Milicia partilhou comigo algum...as aventuras em Mampatá. Hoje prezo muito a sua amizade e a da sua esposa, a Ádada que conheci ainda bajuda.Que bonita que era e ainda é!
Tal como o Paulo Santiago, tive a felicidade de conviver com a Fátemá em 2005, quando a Ádada me reconheceu, passados trinta e cinco anos ( que belo e feliz momento!)
Estava a saborear este encontro, quando vejo surgir à porta da sua morança a velhinha Fatemá, que se dirige a mim com um sorriso, para logo me abraçar e com as lágrimas nos olhos me pedir, Branco na volta, branco na volta !
Por mais que lhe dissesse que agora só lá íamos para matar saudades, ela insistia: Branco na volta!
Seguiu-se uma amena conversa, interrompida aqui e além pelos seus bisnetos que queriam brincar comigo ao fotógrafo.
Voltei em 2008. Notei que estava mais parada, porque os anos não perdoam. Retenho a imagem de uma mulher linda, apesar da idade, lúcida e sobretudo, tal como o filho e outros familiares que conheço, muito ligada a Portugal e aos portugueses que por lá passaram.
Com a sua morte perdeu-se um forte elo de ligação, com os portugueses que pisaram aqueles trilhos do Regulado de Contabane.

Hélder Valério disse...

Caro Paulo Santiago

Não conheci a Fatemá. Não estive nessa zona, embora estivesse na Guiné nas datas que indicas.

No entanto, pela forma como te referes, tanto à sua personalidade como às atenções que ela própria também te dedicou passados todos os anos que decorreram desde que falavas com ela até que lá voltaste, acho que se trata de uma justa homenagem a quem tanto te impressionou.

É de atitudes como esta que a sociedade portuguesa está, também, carenciada. Solidariedade, amizade, reconhecimento.

Um abraço
Hélder S.