quarta-feira, 6 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8056: Episódios da Guerra na Guiné (Manuel Sousa) (3): Minas entre Jumbembem e Lamel

1. Terceiro dos Episódios da Guerra na Guiné, trabalho do nosso camarada e Manuel Sousa (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74), enviado em mensagem do dia 15 de Março de 2011:


EPISÓDIOS DA GUERRA NA GUINÉ 1973/1974 (3)

MINAS ENTRE JUMBEMBÉM E LAMEL

Por volta do dia 20 de Maio de 1974, um ano após os acontecimentos de Guidage, um mês depois do 25 de Abril, o PAIGC, aproveitando a indefinição e a fragilidade políticas de Portugal, intensificou a sua acção na Guiné, a que o quartel de Jumbembém não foi excepção.
O limite do subsector era numa linha de água designada por rio Lamel, situada a cerca de 3Km para o lado de Farim, cuja ponte, de pedra e cimento, estava frequentemente sabotada por parte do PAIGC.


Ponte de Lamel. Foto de Carlos Silva revelada a partir de um slide do ex-Alf Rebelo da CCaç 2548. Com a devida vénia a ambos.

A passagem das viaturas muitas vezes só era possível sobre troncos de árvore que se colocavam sobre a referida ponte, para suprir a sua destruição parcial.
Tratava-se de uma zona perigosa, porque era ali nas proximidades da ponte que os guerrilheiros do PAIGC passavam do Senegal para uma das suas “zonas libertadas”, Bricama, e vice-versa.

Num desses dias de Maio, durante a noite, foram ouvidas em Jumbebém algumas explosões para o lado de Lamel, presumindo-se que se trataria de mais uma sabotagem à ponte, pelo que foram feitos uns disparos de obus naquela direção, a que se chamava o batimento da zona.

No dia seguinte foi recebida informação, através dos pilotos de dois helicópteros que deslocaram a Jumbembém, que a ponte estava destruída e a picada estava obstruída por abatimento de árvores.
Já sabíamos o “barril de pólvora” que nos esperava aquando da realização da próxima coluna.

Talvez logo no dia seguinte, não me recordo bem, foi organizada a coluna a Farim, com a prévia picagem da picada até Lamel.
Nesse dia a picagem esteve a cargo do 3.º Pelotão, a que eu pertencia, reforçado pelo 4.º creio, e entre os quatro homens destinados a picar, eu, mais uma vez, estava incluído.

À saída do quartel, um dos quatro picadores, sabendo o que nos esperava, fez tudo para ir a picar em último.
Coloquei-me então eu à frente, do lado direito, outro atrás, do lado esquerdo, outro mais atrás, do lado direito e o tal que fez questão de ir em último mais atrás, do lado esquerdo.
Como “picas” usávamos, nesta altura, umas varas com cerca de 4 ou 5 metros de comprimento, as chamadas “canas da índia”, que nos permitia estar o mais longe possível de eventuais explosões de minas ao serem tocadas.

Sensivelmente a meio do percurso, próximo do chamado “Alto de Lamel”, apercebo-me da existência de rastos de bota diferentes das que nós usávamos, ao longo da picada, junto ao capim, que segui atentamente.
A dada altura, cerca de 20 metros depois, aqueles rastos deixaram de se ver, desfeitos aparentemente por um arbusto.
Ali parei e olhei mais em pormenor a picada e vi um quase imperceptível rebaixamento, portanto na rodeira do lado direito, muito alisado.

Passei a palavra para trás para o Alferes Macedo, Comandante do 4.º Pelotão, especialista em minas e armadilhas, se deslocar até mim.

Depois de lhe ter relatado a situação, mandou-me recuar e colocou um pequeno petardo junto ao tal rebaixamento que, com a sua detonação, originou o rebentamento duma potente mina anti-carro, abrindo uma enorme cratera na picada.

Reiniciámos novamente e progressão e, a cerca de 20 metros depois, ouvi uma pequena explosão atrás de mim, o que me levou a baixar imediatamente, pensando tratar-se de alguma emboscada.
Apercebi-me então que foi uma outra mina que explodiu na rodeira do lado esquerdo, acionada pelo tal militar que fez tudo para ser o último da picagem.

Por sorte a mina fazia parte de algum lote antigo e já não se encontrava em condições, rebentando apenas o dispositivo anti-pica, deixando o explosivo da mina anti-carro à vista, uma espécie de gesso em fragmentos.

Prosseguimos mais uma vez, e já com as tais árvores que obstruíam a picada à vista, a cerca de 200 metros, vejo indícios idênticos ao anterior.

Repetiu-se o mesmo procedimento, com a explosão de outra mina, originando, também, uma profunda cratera.

Continuámos e, a escassos metros, ouço outra pequena explosão a trás, concluindo-se que fo mais uma mina que rebentou na rodeira, do lado esquerdo, depois de passar o tal último picador, debaixo da roda da frente de uma Berliet da coluna que vinha atrás. Felizmente também com deficiência, à semelhança da anterior, rebentando apenas o pneu da viatura.

Chegámos então às árvores caídas na picada, a escassos 200 metros da ponte e, junto a uma delas, fora da picada, tinha explodido uma mina anti-carro, accionada por um javali.

A partir dali as viaturas saíram fora da picada e atravessaram o rio, na altura sem água, ao lado da ponte, restabelecendo-se a ligação com Farim, cujos picadores já estavam do outro lado à espera.

Não houve qualquer contacto com o IN, contudo tudo se passou sob um estado de tensão só imaginável por quem por ali passou.

Passados alguns dias iniciaram-se os contactos com o PAIGC, no sentido de se acabarem as hostilidades

Aqui fica o meu testemunho destes dois dos vários episódios de guerra em que estive envolvido.

Uma nota final:
Por tudo aquilo que vi no teatro de guerra da Guiné, admirei a disciplina, a coragem e até a valentia das chamadas forças especiais, Marinha (Fuzileiros), Força Aérea (Pára-quedistas) e Comandos, sendo o seu contributo importante nos momentos mais críticos da guerra nesta província, como no caso de Guidage.
Mas, sem querer aqui esgrimir argumentos a favor ou contra qualquer ramo das Forças Armadas, porque todas elas deram o seu melhor nas missões que lhe foram atribuídas, não queria deixar uma referência especial para o Exército, a que eu pertencia:

Como força de quadrícula, ou seja, cada unidade ou sub-unidade era instalada no terreno, num sector, cuja missão era:

- De defesa desse sector (operações e patrulhamento, colunas, construção de valas e instalações abrigo, vedações de arame farpado, etc.);

- De logística (construção e manutenção de infra-estruturas, manutenção de viaturas, alimentação, reabastecimentos, etc.);

- De âmbito social, em relação às populações sob a sua responsabilidade (construção de tabancas, apoio sanitário, apoio alimentar, etc.

Com estas características o Exército tornava-se mais vulnerável. O IN sabia que estávamos ali, sabia que utilizávamos as picadas de acesso. Portanto podia surpreender-nos a qualquer momento.

Enquanto as forças especiais eram forças de intervenção e de reserva, ou seja, estavam bem instaladas em Bissau, no caso da Guiné, bem alimentadas, e nas suas operações surpreendiam o IN, com resultados sensacionais, regressando de novo à base, o Exército estava sempre no terreno, como acima disse, sob desgaste físico e psicológico, mais vulnerável às investidas do IN.

Só para dizer, e não vejam isto como “puxar a brasa à minha sardinha”, é uma constatação, que o Exército foi a força que mais sofreu física e psicologicamente, no caso da Guiné que conheço.

Aqui deixo um abraço para todos aqueles que, como eu, ali deram o corpo ao manifesto e a sentida homenagem a todos os que, infelizmente, não tiveram a sorte de voltar, em especial aos que fiz questão de identificar neste trabalho, que comigo conviveram de perto.

Um abraço.
Manuel Sousa
Fevereiro de 2011
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8044: Episódios da Guerra na Guiné (Manuel Sousa) (2): Afinal, os Anjos acompanham-nos

4 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro camarigo Manuel Sousa

Fizeste bem em relatar estas tuas memórias. Certamente ainda haverá mais alguma coisa para recordar.

Estes foram os momentos difíceis, aqueles que estão associados às operações, às deslocações, às minas e armadilhas. às emboscadas, às patrulhas, às colunas. São nestas circunstâncias que se ganham as amizades e cumplicidades profundas que guardamos na memória ao fim de tantos anos.
Mas creio que também haverá outros momentos da vivência do dia-a-dia que te poderás lembrar, até como forma de se completar o retrato da passagem dos dias.

Finalmente, também acho que fizeste bem em homenagear, recordando, os teus (e nossos) infortunados camaradas. Eles já foram mas nós fazemos perdurar a sua lembrança.

Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Manuel Sousa.
Mais uma vez os meus sinceros parabéns,pelo teu relato.Bastante conhecedor da zona,basta dizer que fui condutor da 3331 e fazia-mos a coluna entre Cuntima e Farim.Por Deus nunca embrulha-mos mas, a passagem por Lamel,dava-nos enorme dor de cabeça.Adorei ver a ponte de Lamel velha.Hoje temos uma nova,vais ao seit do Carlos Silva e facilmente a encontras.Um abraço amigo.Caetano ex-Condutor da 3331 em Cuntima,71/72

Carlos Silva disse...

Amigos & Camaradas

O nosso camarada M Sousa já teve a gentileza de enviar-me os textos que agora estão a ser publicados e que eu já publiquei no meu Site.
A propósito das fotos, já lhe expliquei, que tem interesse indicar a sua autoria, até para se localizar no tempo, sendo assim mais relevante para documentação histórica.
Tal como diz o Caetano a propósito do local mítico de Lamel, onde dormi/dormimos dezenas, centenas de noites, pelo menos os operacionais das Unidades principalmente sedeadas em Jumbembem e Farim, para ver no meu Site que foi concebido e estruturado por mim, que relativamente à Guiné, está estruturado por regiões; sectores e por Unidades que constitui um livro autónomo, de forma sistematizada e cronológica, de facto estão publicadas várias fotos desde 1964 podendo ver-se assim a sua evolução, com a indicação da autoria, local e ano.
Isto para dizer, que a foto publicada é minha e revelada a partir de um slide do ex. Alf Rebelo da minha CCaç 2548. E está publicada em várias páginas do meu site, incluindo na pág do BCaç 4512/72 do M Sousa.
Aliás, correcção já por mim feita nas fotos publicadas no Site, e uma delas duma jangada, também aqui publicada em Post anterior.
Isto para dizer que de facto, tem muito interesse em revelar a autoria, não só pelos fundamentos atrás invocados, mesmo para um dia poder servir para publicação nalgum livro e que tem de ter autorização como sabem, tal como aconteceu com a foto do liv do Armor Pires de Mota – Estranha Noiva de Vida. Ora não se sabendo quem é o autor, não poderemos pedir autorização e a Editora não se arrisca a publicar.
Este comentário apenas tem por objectivo prestar informações. Até porque nem tenho problemas em facilitar e permitir a publicação de fotos como sabem, pois até já há muitas fotos minhas que estão publicadas em vários livros de camaradas.
Um abraço amigo
Carlos Silva

Carlos Silva disse...

Correcção

O titulo do livro é: Estranha Noiva de Guerra"
Carlos Silva