quinta-feira, 3 de maio de 2012

Guiné 63/74 - P9847: Pedaços de um tempo (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493) (1): Cobumba, Pessoas, Guerra e Reflexões

1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493/BART 3873, Mansambo, Fá Mandinga e Bissau, 1972/74), com data de 28 de Abril de 2012:

Carlos,
Aqui vai um texto (reflexão sobre o meu tempo de Cobumba) que publicarás se entenderes conveniente.

Recebe um abraço, extensivo a todos que tornam possível a manutenção do Blogue, aproveito também para agradecer terem publicado o meu tempo de tropa (O Tempo Que Ninguém Queria), assim como a quantos tiveram a paciência para seguir a publicação.

António Eduardo Ferreira




PEDAÇOS DE UM TEMPO

1 - COBUMBA / PESSOAS / GUERRA / REFLEXÕES

Foi difícil, a vida dos homens da CART 3493 em Cobumba, mas a daquela gente que por lá morava não foi melhor, deixaram de ser bombardeados pelos tugas, passaram a ser por alguns dos seus que integravam as forças do PAIGC (uma mulher da população morreu vitima de uma flagelação.) 

Não deve de ter sido nada fácil de encaixar a mudança, o que eles de facto desejavam era a paz e não a continuação da guerra. (Muito tempo já passou e a esperança de muita daquela gente numa vida melhor, parece continuar a ser uma miragem.)

Havia certos dias em que as poucas pessoas que por lá estavam a maior parte do dia passavam-no junto ao seu abrigo, que seria certamente mais seguro que os nossos dado o sítio onde se localizavam (debaixo de um grande mangueiro) e a forma como eram construídos, apenas com cerca de um metro de largura. Era nossa convicção que eles estavam por ali porque tinham informações que nós não tínhamos… algumas vezes o “arraial” acontecia mesmo e nesses momentos estar perto de um abrigo podia fazer toda a diferença… também havia dias em que passavam lá grande parte do tempo mas nada acontecia, (provavelmente alguma informação que não se concretizava.)

Apesar das poucas conversas que tínhamos com a população, por vezes lá íamos fazendo algumas perguntas a que eles normalmente respondiam (aqueles que nos entendiam), certo dia perguntei ao filho do chefe de tabanca de que é que eles tinham medo quando ainda não estava lá a tropa branca, ele respondeu que era do passarinho grande (o avião), quando o passarinho aparecia se estavam na bolanha e esta tinha água (velhos e novos) deitavam-se, ficando apenas com parte da cabeça de fora, ele dizia, só com um olho fora da água. Era um menino de doze ou treze anos (o Zé) que certos dias saía com uma pequena saca onde dizia levar os livros e que ia para a escola em Pericuto que ficava do lado de lá da bolanha mas onde nós não íamos, porque apesar de ser perto era arriscado… a haver escola ou coisa parecida, teria que ser da responsabilidade do PAIGC…

Um outro com quem falei dizia que tinha sido carregador do PAIGC, transportava material de guerra à cabeça (chamava-se Miranda) o sítio mais longe onde tinha chegado foi ao Xitole, era um homem já de certa idade normalmente não saía lá da tabanca. Já perto do fim da nossa estadia naquele sítio as minas continuavam a causar-nos grandes preocupações, pois eram colocadas mesmo do lado de dentro do arame que nessa altura já circundava todos os abrigos e parte da picada. 

Devido a essa situação foi exigido ao chefe da tabanca que nomeasse alguém, que teria de andar todo o dia no carro ao lado do condutor, era uma forma de pressionar possíveis familiares que estavam do lado do PAIGC para não colocarem as minas, se é que isso poderia ter alguma influência nas ordens dimanadas do Partido. 

Recordo-me do primeiro e não sei se o único que andou comigo foi o filho do chefe, o Zé, entre eles era quem falava melhor português. Também para os condutores era uma situação estranha, andarmos todo o dia com alguém a nosso lado coisa a que não estávamos habituados. Não sei se psicologicamente isso nos terá ajudado.

Não me recordo se foi detectada mais alguma mina depois dessa exigência (nem faço ideia com que vontade) cumprida pelo chefe de tabanca. Também nunca soube se essa ordem foi pensada no Comando da Companhia ou veio de outro sítio, o certo é que aconteceu e chegou ao conhecimento do PAIGC, pois na rádio que transmitia em seu nome através da voz daquela a quem chamávamos a “Maria Turra” esse assunto foi muito falado. A esta distância no tempo dá para entender melhor como era difícil a vida daquela gente, que tinha de parecer estar bem com os dois lados (PAIGC e a Tropa Portuguesa), mas na verdade isso não era possível.

Coisas a que a guerra obriga. Como seria bom acabar com as guerras! E erradicar a palavra de todos os dicionários para que os vindouros não a chegassem a conhecer e assim não pudessem pensar que com ela, resolviam os grandes problemas que afetam a humanidade e deixassem de morrer tantos inocentes, existissem tantos estropiados, tantas viúvas, tantas crianças órfãs e outros para quem o viver perdeu o sentido.

Na guerra todos saem perdedores, uns mais do que outros é certo, mas todos sofrem as terríveis consequências que dela resultam. Pensar assim é uma utopia, eu sei, mas permite-me acreditar naquilo que eu gostava que acontecesse e não tenho dúvidas que o mundo assim seria um mundo melhor.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9683: O tempo que ninguém queria (António Eduardo Ferreira) (4): De Cobumba para Bissau e regresso à Metrópole

1 comentário:

Anónimo disse...

António a escola até podia não ser do PAIGC, porque tambem podia ser muçulmana.

Mas o PAIGC chegava a obrigar as famílias a largar da mão os filhos para os mandar para os países do leste.

Iam crianças quando faziam a 4ª classe e vinham com curso universitário.

Acontecia virem e não encontrarem os pais ainda vivos.

Antº Rosinha