Olá amigo Carlos Vinhal,
Bom, acho que já te chega de folgas e comesainas, ao que parece bem animadas por sinal, nesse belo pedaço do ainda nosso Portugal.
É hora de trabalho para ti, que és um ”Mouro do mesmo” e de que estou certo, por norma gostas.
Como tal, cá vai mais um lanço de “Viagem…”que, já sabes, varres para a valeta se assim considerares.
Um abraço para ti e um outro para a”Juventude de outrora” e de agora que nos vai seguindo
Luís Faria
Viagem à volta das minhas memórias (52)
Bula – guerra das minas ( 2 ) Os “ Eleitos ”
Apeados dos Unimog, após a segurança estar montada e percorrida a pouca distancia até à zona de trabalho estabelecida no campo minado, os ”eleitos” munidos do equipamento preparavam-se para umas horas de trabalho de alto desgaste, onde a atenção e tensão seriam quase constantes, intervaladas por momentos de descanso e descompressão individuais e subjectivos na escolha do momento e duração, que só o próprio poderia e saberia determinar e quantificar.
Mentalização feita, azimutes tirados, zona de actuação definida e localização primária conseguida, era chegada a altura de a atenção não se dispersar. Depois e em seguimento do “lançamento” da “vara-medida” que deveria localizar o engenho ou a sua proximidade, a pica ligeira de verga de aço começava a funcionar com sensibilidade e moderação de força - de modo a não provocar inadvertidamente um eventual rebentamento caso acertasse em espoleta mais sensível (como veio a acontecer) - explorando a faixa de terreno que íamos pisar no curto trajecto até consumar a localização do engenho, dando então lugar à actuação da faca.
Com a atenção no máximo e tensão controlada em função da menor ou maior dificuldade do que se nos parecia apresentar, começava o manuseamento da faca (a minha tinha-a comprado na “Casa Barral”- Porto), uma espécie de “arte” que deveria ser executado com respeito e desapaixonadamente, com sensibilidade, sem facilidades e aplicando os saberes adquiridos, “desbagando” os cachos em quadrado com “AUPS” nos vértices e uma portuguesa ao centro, enfileirados e sequenciais.
Disposição das minas e dos cachos
(parece-me ser o posicionamento dos cachos)
(parece-me ser o posicionamento dos cachos)
Sendo que grande parte das minas estava localizada nos locais previstos ou na proximidade, muitas havia no entanto em situação para todos os gostos: umas afastadas e completamente a descoberto, outras com camadas de terra encimada e difíceis de detectar, outras desviadas q.b., outras enterrados de viés (bem perigosas por sinal) muitas enraizadas em tufos e arbustos, outras incorporadas em formigueiros … enfim, tornando-se variadíssimas vezes um trabalho “cú de boi” encontrá-las, desactiva-las e levantá-las.
Os intervalos de descanso para esticar o corpo e aliviar as costas, falo por mim, faziam-se quando se achasse mas eram por norma de pouca duração, tempo de uma golada de água e uma cigarrada enquanto o pensamento esvoaçava por outras bandas. O trabalho tinha que ser feito.
Quando um desses “cú de boi” aparecia, bom aí podia acontecer que a paciência se começava a esgotar, os suores davam para alagar, os palavrões sucediam-se, a atenção começava a querer dispersar-se, o desânimo ameaçava rondar, o facilitismo começava espreitar. Era chegado o momento de espairecer, de descomprimir e travar tendências negativas para aquela função onde o perigo estava sempre à espreita. Demorasse o tempo que demorasse, só nós próprios é que podíamos sentir e saber o momento de recomeçar a labuta, não podendo haver lugar a pressões e muito menos a imposições. Éramos, continuo a falar por mim, os decisores em causa própria e não devia nem podia ser de outra maneira, sob pena de acontecimento grave.
Nos ”cú de boi” era bom tomarem-se estas precauções preventivas, eu tomava-as, pois uma das coisas passíveis de acontecer e que não queria, seria por exemplo, exasperado pelo esforço e ao mesmo tempo contente por ter conseguido encontra-la e levanta-la, agarrar na mina e “fungá-la” no chão ou no caixote de recolha acompanhada talvez dum “cabrona f.d.p.” ainda por cima sem antes a neutralizar, ou pinchar em cima dela a chamar-lhe nomes feios, dar-lhe uma biqueirada à guarda-redes… exagero o que digo?… pois será, mas aconteceu!
Devíamos dar o nosso melhor contributo para a nossa própria segurança e para isso também era, sempre o soube e pratiquei, indispensável manter o equilíbrio físico e mental em todos os momentos, na tentativa de minimizar os riscos de um trabalho extenuante por ser em contínuo, num campo de minas com aquela dimensão e densidade. Daí e a meu ver, a importância dos descansos autónomos.
Deitados, acocorados ou de joelho no chão conforme as situações, os “mineiros encartados” iam avançando com e ao seu ritmo, “lavrando” os seus terrenos com minúcia e destreza por norma consciente, descobrindo e colhendo uma a uma as sementes de mutilação, neutralizando-as de imediato, ao que me parece recordar apondo-lhes as protecções de segurança, tampas nas plásticas, cavilhas nas metálicas portuguesas retirando-lhes depois o sistema de detonação e acomodando-as de seguida e separadamente em recipientes de recolha próprios .
Esta espécie de rotina, que não deveria ser rotineira, sucedia-se mina a mina, cacho a cacho durante horas a fio até final da jorna, altura em que se regressava às viaturas que nos levariam de regresso ao quartel onde a tarde e a noite eram nossas, pois tínhamo-las ganho e bem ganho. Era chegada a hora dum belo “banho à Nharro”(sem ofensa), duns bons canecos, talvez do dedilhar na viola, de escrever um “bate-estradas”, duma bela sorna com leitura à mistura e à fresca do ar movimentado pela ventoinha… pois na manhã seguinte teríamos que estar recuperados e frescos para mais do mesmo, tendo sido esta a nossa vida durante dias e mais dias nos finais de uma comissão que já não tinha sido fácil.
Faca de mato em acção e mais uma "AUPS" recuperada
© Foto de Carlos Vinhal
No dia a dia renovava-se a esperança de que não houvesse qualquer acidente, o que nem sempre aconteceu. Logo nos primeiros dias do início, inadvertidamente o primeiro desastre aconteceu e infelizmente mais se seguiriam ao longa daquela ”caminhada” não ocorrendo outros por… sabe-se lá porquê!
Sorte, destino? Cá por mim acredito que por Graça Divina.
Luís Faria
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 1 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9690: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (51): Bula - A guerra das minas
10 comentários:
Camarigo Luís Faria
É arrepiante saber que, depois de se safarem do IN, nas inúmeras operações efectuadas, já bem perto do final da comissão ainda tiveram que arriscar a vida dessa forma.
Como leigo, pergunto. E esse levantamento era mesmo necessário? Esses milhares de minas (pois recordo que foi esse um número indicado salvo erro, pelo teu camarada) eram mesmo indispensável como defesa?
Abraços
Jorge Picado
Meu caro Sampaio Faria, era assim que eu te tratava.Lembras-te? És daqueles que todos gostaria-mos de ter como amigos eu tenho a sorte, o privilégio de seres um dos meus melhores amigos, de todos os tempos. Graças a Deus e...à tua perícia, saíste ileso. Obrigado por isso. Fui testemunho dos teus desabafos, prestei muitas vezes, protecção, com o meu Grupo de Combate que havias eleito como um dos teus preferidos, para o fazer.À distância recomendada mas sempre concentrado no que se passava a vários metros à minha frente, assisti, com um sentimento de impotência e raiva, a alguns acontecimentos que relataste. Tu e outros amigos nossos, que lá estiveram, alguns menos afortunados, não foram bons! FORAM OS MELHORES.
Um abração, para parar de escrever, pois os dedos nas teclas, já estão emocionados.Os dedos...
AQUELE ABRAÇO.
JORGE FONTINHA
O Jorge Picado coloca uma questão pertinente: as minas eram mesmo necessárias à defesa?
As minas funcionavam como meios para neutralizar e denunciar progressões, mas, mais ainda, para afectar física e moralmente o IN.
Relativamente à defesa de aquartelamentos, era frequente o rebentamento provocado por animais domésticos, sobretudo cabritos.
De resto, as minas serviam para neutralizar percursos, principalmente em estacionamentos provisórios, o que se referia por colocação de portas, enquanto o pessoal pernoitava num trilho. De manhã removiam-se, e a tropa seguia caminho.
Tenho na ideia de que o medo de quem as mandava colocar, era a mais evidente prova de desprezo pelos comandados. Eram esses que tornavam a situação mais difícil, e minavam a confiança e a moral da tropa.
Sobre o texto, quero dar os parabéns ao Luís pelo magnífico relato, susceptível de provocar arrepios a um leitor alheio àqueles perigos.
Abraços
JD
Meti água,
Não sei se alguém fazia portas com minas, eu fi-las com armadilhas: granadas e cordão de tropeçar.
desculpem o lapso.
JD
Amigo Jorge Picado
Fico contente por voltar a encontrar-te por estas bandas.É bom.
Respondendo a tua questão e no meu entender,aquele campo de minas(se a memória não me falha muito,10.000 a passar)estendiam-se por uma quilometragem respeitavel com intuito de evitar movimentações IN de passagem de uma zona de actuação para outra,importantes.Talvez me venha a referir a isso mais tarde.
Repito que foi um dos períodos mais difíceis porque passei e já tinha(mos) passado por muito mesmo.
Abraço
Luis Faria
Amigo José Dinis
Respondendo à tua pergunta,dentro da minha perspectiva à altura e complementando a resposta dada (à mesma pergunta)ao J Picado,julgo que esse campo de minas não se destinaria a defesa do quartel(Bula) mas antes a impedir movimentações de passagem IN,obrigando-os de certo modo a que os seus itinerários os levassem às nossas emboscadas dia´rias de 24 horas,coisa que ao que sei nunca aconteceu.Eles lá sabiam...e bem!!!!
Um abraço
Luis Faria
Fontinha,Jorge
Claro,meu amigo,são os dedos emocionados!!!!Continuas e continuarás o Sentimentalão de sempre.És tu,tu mesmo,amigo!
Realmente o quarto Grupo,continua ainda hoje a também ser MEU!Pois...se foi um dos que ajudei a formar e a "ensaiar"!!E depois toda aquela guerra em bi-grupo porque passamos.Sinto na verdade que continua a ser tambem meu,o 4ºGRCOMB da 2791-FORÇA.Continuam hoje,na sua benevolência a fazer-me festa e a considerar-me um dos seus,relembrando-me e contando-me coisas que não recordava e que revivo em conjunto,nas várias vezes ao ano que alguns da companhia se reunem para tomar uns copos e petiscos.São do 2º,4º e 3ºe por vezes do 1º,tudo GRCOMB que integrei.Tu sabes mas apareces pouco a essas "brincadeiras" de Amizade e prazer!
Grande abraço
Luis faria
José Dinis
Há momentos esqueceu-me de responder " às portas com armadilha"
Fiz uma vez uma em P.Matar,em zona muito de risco e durante um estacionamento relativamente curto.Os tiros ouviam-se nas proximidades,a mata era densa mas com clareiras...
Abraço
Luis Faria
A minha mais profunda admiração por todos os "minas e armadilhas".
A minha admiração é principalmente para quando tinham que as levantar.
Claro que também tinham que as colocar,fazia parte da missão..mas estar ali só perante a mina e ao mais pequeno erro...bummm..ainda hoje me dá "calafrios".
Um alfa bravo
C.Martins
Caro Luís, viva !
Mais uma vez dou uma espreitadela ao blog, rodopio o botão do rato 1/2 dúzia de vezes e detenho-me nesta tua dissertação àquelas aventuras danadas que vivemos conjuntamente.
Venho aqui para te mandar um abraço e faço-o com a possibilidade de ser extensível a toda a rapaziada que o queira receber.
Falaste de minas e provocaste-me aquele ódio de estimação que elas ainda hoje me causam.
Regredindo àqueles anos 1970/72, plantados que fomos em terra Balanta, acampados em Bula e na área que hoje chamaríamos de grande Bula ( à semelhança do grande Porto ou grande Lisboa )- Augusto Barros, Mato Dingal e João Landin - dou por mim, uma vez mais, a suar frio e a acelerar o ritmo cardíaco enquanto desfilam em frente aos meus olhos fechados as mais dilacerantes cenas de gritos de dôr por partes do corpo arrancadas brutalmente pela deslocação de ar e perante a impotência de evitar o mal que se instalara já....
Aproveito, entretanto, para mandar uma boca sobre o croqui que desenhaste sobre a disposição das minas nos cachos pois não está correcto.
A incorrecção está no facto de mencionares ( se bem entendo o desenho ) 5 minas por cacho quando elas eram apenas 4 : a célebre portuguêsa colocada na perpendicular à linha imaginária entre os dois pontos escolhidos como referência do troço e a 1 metro e 1/2 dessa linha ; depois e em relação a esta mina, havia outra a 1 metro e 1/2 para a esquerda, outra a 1 metro e 1/2 para a direita e outra ainda a 1 metro e 1/2 para a frente.
Estas 4 minas desenhavam um semi-círculo cujo seguinte mantinha a mesma estrutura mas do lado oposto à tal linha imaginária e assim sucessivamente ao longo de 9 kms e em duas fiadas mais ou menos paralelas.
A densidade de minas por metro quadrado era imensa e tornava-se tarefa quase impossível atravessar o campo sem accionar uma delas.
Já muito se escreveu sobre o número que tu referes como tendo sido um total de 10.000 engenhos.
Eu faço um desafio : se calcularem haver 12 minas colocadas por cada 10,5 metros e se depois multiplicarem por 2 ( foram 2 fiadas paralelas ), verão que o total foi de 20.000 minas !!
Quanto à finalidade daquele campo de minas, tens razão nos teus argumentos pois aquela arma de guerra tinha como finalidade primeira o dificultar dos reabastecimentos entre o IN instalado em Ponta Matar e o de Choquemone ( este mais saltitão ).
A esta distância ponho-me a pensar no confrangedor amadorismo com que encetámos aquela tarefa a qual era observada pelo inimigo empoleirado nas árvores de tal modo que só apanhámos indivíduos avulso enquanto o Nino passava com várias dezenas de guerrilheiros e não accionavam uma única !
Sirva-nos a experiência para sermos fervorosos pedagogos na abolição de tão execrável material de guerra nos conflitos que por aí andam ...
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