1. O Tony Borié*, que entrou há tempo para a Tabanca Grande, ofereceu-se para para publicar, no todo ou em parte, um livro em formato eletrónico (o chamdo e-book) que ele elaborou com as suas memórias de há quase meio século. Chamou-lhe Do Ninho de d´'Aguia até à África... É um caminho, coletivo, que todos nós também conhecemos. Mas é também um caminho, único, individual, singular... O caminho que nos levou, das nossas terras, até a um país, em África, na África Ocidental, a alguns milhares de quilómetros de casa... Combinámos com ele editar, no nosso blogue, todas as semanas, o livro eletrónico (que nunca foi publicado em papel, é portanto um inédito).
Há tempos eles explicou-nos a génese deste livro:
(...)"Eu relacionava-me bem com os meus camaradas, em especial do batalhão de artilharia 645, e de um pelotão de morteirosde que não me recorda o número, mas dormia na mesma camarata deles, e vivia todas as suas peripécias. Esse pelotão teve três mortos, se não me engano, e eu chorei-os como se fossem meus irmãos. Eu tinha acesso a todos os reportes de toda a movimentação de tropas que se fazia na região do Oio e é com esses elementos de que me vou lembrando, que escrevi o livro. Não menciono nomes verídicos nem lugares, mas toda a história se passou na região do Oio e é verídica. Houve esses ataques e houve essas minas que rebentaram, e houve esses camaradas que desapareceram para sempre, embrulhados num camuflado todo roto e ensanguentado, e alguns, com um ar de crianças no rosto"- (...)
Ele vai-nos mandando um número de páginas que pode ser variável (4 a 8), é preciso é que cada poste (ou parte) corresponda a um "episódio", "situação", "cena" ou "pequena história"... para não se perder o fio à meada... Como ele estás nos EUA há quatro décadas (vive hoje na Florida), é normal aparecer um ou outro erro de português, ortográfico (ou até de simples processamento de texto) que vamos procurar detectar e corrigir, com a plena anuência e bom vontade do autor, a quem agradecemos desde já o seu companheirismo e generosidade. O título da série é dele: os substítulos serão, em princípio, da responsabilidade do editor de serviço. (CV)
2. Do Ninho D'Águia até África (1): Mobilização e partida
por Tony Borié (EUA, Florida)
O comboio das dez e meia da manhã levou o Tó d’Agar, da vila até à cidade. No quartel da cidade, vai “às Sortes”. Os doutores ordenam-lhe que tire a roupa, e inspeccionam o seu corpo nu, de diversos ângulos. Mandam abrir a boca, mostrar os dentes, dar saltos, baixar-se, abrir e fechar as pernas, ler algumas letras, curvar-se e metem-lhe o dedo no ânus, que bastante lhe dói, verificam as mãos e os pés, se tem cinco dedos, tudo isto entre outras coisas. Falam entre si, numa linguagem, talvez técnica, mas incompreensível. No final, o que tem cara de mais velho, dos ditos doutores, ordena-lhe que se vista, e entrega-lhe um papel com o seu nome, que tem um carimbo a letras vermelhas, onde se lê “Apurado para todo o serviço militar”.
Algum tempo depois, recebe uma carta registada, na casa de seus pais, a notificá-lo para se apresentar num quartel militar da província, a fim de ser incorporado no exército de Portugal.
O Tó d’Agar, depois de passar por esse quartel militar da província, onde recebe uma instrução básica, que era concentrada em saber defender-se, e como deve matar. Matar de diferentes maneiras, usando diferente partes do corpo, onde pode produzir uma morte rápida, ou prolongada. A instrução foi baseada em saber matar. O militar que proporcionava a instrução, tinha regressado, há pouco tempo, de uma comissão numa província do ultramar, contava histórias de combate, exemplificava, em cada instruendo, o local do corpo, em que devíamos acertar com uma bala, ou com uma faca. Fazia isso, com tal precisão, e com os olhos vidrados de raiva, que até assustava os instruendos.
Terminada essa instrução básica, é transferido para os arredores da capital, onde recebe um pequeno treino de especialização. Durante este treino, dizem-lhe constantemente que é um filho da Pátria, que deve dar a vida por ela, que a partir do final, quando receber todo este treino de especialização é um militar fora do normal, que não pode dormir na mesma caserna, com outros militares, pois pode ter insónias, e revelar segredos de Estado a que vai ter acesso no futuro, e fazer perder uma guerra, e mais um blá, blá, blá, que, quando acaba o treino, vem com um peso no corpo, como se carregasse com dez milhões de portugueses às costas!
Entretanto, rebenta outra rebelião de independência, noutra província do então ultramar português. É mobilizado. O chefe do governo de Portugal dizia na rádio e na televisão, também do governo, para que o povo português, visse e ouvisse:
- VAMOS PARA A GUERRA, E EM FORÇA!
Não teve tempo, nem para se despedir da família na sua aldeia do vale do Ninho d’Águia.
Sem dar por nada, tem umas botas novas calçadas, e está vestido de amarelo, com um saco às costas e uma mala de cartão, no cais da alfândega de Lisboa, esperando a sua vez de entrar para o navio que havia de o levar para a província da Guiné, onde começava uma guerra traiçoeira e imprevista. Chora sem lágrimas, para dentro, pensando que já é um homem. O navio apita três vezes, chamando todos para bordo. O apito é rude e de aflição, não é um apito bonito, como era o comboio das seis e meia, na sua aldeia do vale do Ninho d’Águia.
O primeiro dia no alto mar é de surpresa e admiração. Tanta água, de um lado e do outro, não dá para compreender, não há terra à vista, de vez em quando, passa um barco, lá ao longe, e apita. Ao terceiro, ou quarto dia, viam-se peixes voadores, saíam da onda, e voavam uns segundos, desaparecendo noutra onda, alguns iam de encontro ao barco. O convívio com futuros colegas de companhia começa a fazer-se. Alguns perguntam:
- De onde és? Como te chamas?
Se o nome é difícil de pronunciar, passa a chamar-se pelo nome da terra ou região onde nasceu. Assim, aparece em cenário de guerra, o primeiro cabo Bolinhas, o Açoriano, o Lisboa, o Matateu, o Setúbal, o Corcunda, o Morteiro. O Tó d’Agar passou a chamar-se “o Cifra”, talvez por causa da especialidade.
Passados uns tantos dias, chegam ao porto de destino. Era manhã cedo, um nevoeiro fraco, mas quente, muito quente e húmido, não corria nenhuma aragem, era abafado. Lá ao longe, algumas casas, um intenso arvoredo, verde e de outras cores, rente à água, com árvores gigantes aqui e ali. O cais de desembarque, via-se a umas tantas centenas de metros do barco. Não se podia atracar, apesar de o barco ser pequeno. Os militares iam sendo desembarcados, em lanchas, que os transportavam, assim como todo o equipamento militar, ao cais.
Esta operação, demorou um dia. Já em terra, e deslocados para uma área, onde se via a tal vegetação verde e de outras cores, rente à água, com árvores gigantes, aqui e ali, começou a organização, dentro da desorganização. É distribuída uma ordem, num papel, género da “ordem do dia”, onde era comunicado: O Agrupamento número tal vai juntar-se à Companhia de Infantaria número tal, que está estacionada no espaço número tal, e o Pelotão de Morteiros, número tal, fica agregado à Companhia de Infantaria número tal, que se deve encontrar na zona tal, e por aí adiante. Tudo em campo aberto. Com a movimentação de militares e viaturas, passado uns tantos dias, o local do acampamento estava coberto de lama, e com ela, milhares de mosquitos. Neste cenário, viveram quase três semanas, até serem enviados para o interior da província, e possível cenário de guerra.
Neste espaço de tempo, não havia água potável, nem para beber, ou lavar simplesmente a cara. Era em bidões vazios de gasóleo ou óleo, que se lavavam, e enchiam com água turva dos rios e pântanos próximos, esperava-se umas horas para que algumas impurezas assentassem no fundo, e depois essa água, era utilizada. Viviam à base de ração de combate. Pela manhã, em determinada área, ferviam água, e faziam café, muito forte, que distribuíam com um naco de pão, ou um biscoito. Um pouco retirado do acampamento, abriam-se valas no chão, que serviam de latrinas. Aqui começava a lei da sobrevivência. Tudo era motivo para discussão entre militares, e às vezes havia mesmo confrontos físicos. Neste maldito acampamento, com algumas centenas de militares, houve um suicídio, e vários casos de febre constante, que, diziam, era a doença do paludismo.
O Cifra, que é como o Tó d’Agar passa a ser conhecido em cenário de guerra, ao fim de aproximadamente três semanas, sai do acampamento, e vai para o interior da província, onde se começava a desenrolar o conflito. O Comando do Agrupamento a que pertence, instalou-se numa vila do interior, nas instalações do que diziam ser um antigo convento de padres de uma ordem religiosa francesa, quase em ruínas, onde já se encontrava alguns militares, que iniciaram a construção de um aquartelamento, que mais tarde, viria a ser o principal e mais importante posto avançado para o interior da província. (,,,)
(Continua)
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 13 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10150: Camaradas da diáspora (11): Tony Borié, ex-1º cabo cripto, Comando de Agrupamento nº 16 (Mansoa, 1964/66), a viver na Flórida, EUA
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
... Parabéns, Tony! Vou acompanhar a tua "novela"... Sei que inventaste os nomes das terras, mas conheço uma Penha de Águia, freguesia do concelho de Figueira de Castelo Rodrigo... E também uma fraga, ou penha da águia, nessa aldeia fantasmagórica de xisto, que é a aldeia da Pena, no concelho de São pedro do Sul...
Inspiraste-te por aí... Quente ou frio ? Boas pescarias. LG
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http://www.cm-fcr.pt/concelho/freguesias/Paginas/PenhadeAguia.aspx
http://www.guiadacidade.pt/pt/poi-aldeia-da-pena-20734
Caro Tony
Também estou com curiosidade em lêr a tua "novela". Nós já nos conheçemos, pois o meu nome passou por ti no Agp.16 algumas vezes, pois a minha companhia dependia de ordens do vosso lado.
Uma pequena rectificação, nós eramos de artilharia e não de cavalaria, claro que não tem importância, estas coisas passam devido aos anos passados.
Um abraço do amigo Rogerio Cardoso
Cart,643-AGUIAS NEGRAS
... Obrigado, Rogério, vamos corrigir!... LG
Amigo Tony
Acabei de me lembrar, que o pelotão de morteiros 81, que estava sediado em Mansôa,e de que tu falas, era comandado pelo Ten.Queiroz Lima, hoje Coronel. Por curiosidade, tinha sido meu instrutor em Mafra na EPI, e diga-se de passagem que era uma excelente pessoa.
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